Padre Antonio Vieira e a Doçura de Ser Escravo
Escravidão no Brasil - Debret
Nasceu em
Lisboa em 1608. Morreu em Salvador, em 1697. Com seus sermões, tornou-se uma
referência, tanto pela maestria e beleza com que esgrimia ao valer-se da língua
portuguesa quanto pelas ideias que defendia, enfrentando preconceitos de então,
justificando outros. Combateu a escravidão indígena no Brasil, enfrentou a
feroz Inquisição portuguesa por quem foi implacavelmente perseguido, defendeu
os judeus e o que considerava dinamismo do capital que eles podiam aportar em
Portugal. Gostava da Corte, envolveu-se na política e na diplomacia, foi
intransigente defensor da escravidão dos negros, contra qualquer negociação com
o Quilombo dos Palmares, propôs que a Coroa portuguesa entregasse Pernambuco
aos holandeses e chegou a enveredar pelos caminhos da profecia, um dos motivos
pelos quais foi perseguido pela Inquisição.
Essas
impressões foram recolhidas do livro Antônio Vieira: Jesuíta do Rei (Companhia
das Letras, 352 págs., R$ 44,00), de autoria do professor titular do
Departamento de História da Universidade Federal Fluminense Ronaldo Vainfas. Lê-se
de uma sentada, como se diz na Bahia. É, além de tudo, muito bem escrito,
escapando do peso de quaisquer hermetismos acadêmicos ou revanchismo pessoal.
Quando
lemos sobre personagens do passado somos tomados por conceitos do presente, e queremos
exigir de personagens de outrora uma postura correspondente ao que
contemporaneamente consideramos correto. O professor Ronaldo Vainfas foge disso
e, por isso, consegue revelar um Vieira multifacetado, que poderíamos chamar
hoje de contraditório. Mas só teríamos o direito de fazê-lo se desconhecêssemos
as circunstâncias históricas de então, o caldo cultural vigente no século XVII,
os “valores” da própria Igreja Católica. Vieira, foi, aí sim, um personagem
complexo, rico, polêmico, e isso o livro consegue inegavelmente demonstrar.
Para que
não nos enganemos quanto à força cultural e ideológica que os séculos
acumularam contra os negros, nos ocuparemos aqui da ideia quanto à escravidão
africana, tão solene e fortemente defendida pela Igreja Católica e pelo Papa,
sob a alegação de que o cativeiro era uma espécie de benção para os pretos – há
um capítulo denominado Paraíso dos Pretos, tratando exclusivamente dessa
visão míope e também perversa. A escravidão, no raciocínio do catolicismo,
tinha o condão de trazer os negros para a luz do cristianismo, como acentua
Vainfas. A Igreja e os Jesuítas, ordem à qual Vieira pertencia, e na qual
permaneceu até morrer, adotaram dois pesos e duas medidas na questão
escravista.
Como diz
o autor, no caso dos índios, escravidão e catequese se opunham. No caso dos
africanos, complementavam-se. Embora fosse uma contradição insolúvel do ponto
de vista moral, contornava-se o problema com uma sólida base teológica. A
escravidão era má, porém justa e necessária para a ordem do mundo. Para os
índios, buscar a salvação e não permitir a escravidão deles. Para os negros,
cativeiro. A Igreja vai buscar referências em São Tomás de Aquino, desde,
portanto, o século XIII. No decorrer do século XV, construiu-se a ideia de que
os africanos em particular eram os mais vocacionados para a escravidão por
descenderem de Cam, o filho maldito de Noé, cuja linhagem fora condenada ao
cativeiro. Cam teria sido o povoador do continente africano. Os índios, que
nada tinham a ver com Cam, deviam ser preservados do cativeiro, como lembra o
autor. “Contradição moral e ideológica. Coerência teológica.”
Na Bahia,
naquela primeira metade do século XVII, vivia-se a fase da implantação da
escravidão africana e surgiam, portanto, os primeiros quilombos de escravos
fugidos, reprimidos logo nos primeiros anos daquele século. A elite baiana
estava incomodada com a resistência negra. Era necessário acalmar os negros,
acostumá-los à escravidão. Vieira estava na Bahia, depois de ter vivido alguns
anos em Pernambuco. Não se sabe quais as razões que o levaram a pregar sobre a
escravidão, o que ele faz em 1633 – é o segundo sermão público de Vieira, então
com apenas 25 anos. E o faz num engenho do Recôncavo Baiano para uma
“confraria” de escravos negros, sem que se saiba exatamente a natureza dessa
confraria. O sermão integra a coleção de 30 sermões de Vieira dedicados à
Virgem, no ciclo conhecido como Maria Rosa Mística.
O autor
defende a possibilidade de que o pedido para que Vieira fizesse o sermão tenha
sido dos senhores de escravos com o apoio do governo colonial, empenhados em
acalmar os ânimos negros. Certamente outros religiosos de menor destaque também
tenham feito pregação com o mesmo teor. O sermão de Vieira, então, seria a
parte visível de um movimento mais amplo de doutrinação de escravos no mundo
rural baiano, encabeçado, na política, pelo governador Diogo Luís de Oliveira,
pelo bispo D. Pedro da Silva e Sampaio e pelo provincial da Companhia de Jesus,
Domingos Coelho. Aqui fala-se de política, mas é evidente que havia distinção
entre as elites que o autor chama de governativas e as espirituais. Nesse
momento, constituíam um único corpo, unitário, a favor da escravidão negra. O
sermão de Vieira cai como uma luva naquele cenário, e não é ocasional, nem
nasce apenas de um rompante espiritual do sacerdote.
Trata-se
de um sermão dirigido exclusivamente aos escravos, chamados por ele de etíopes
– termo que designava genericamente os africanos – ou de pretos, ou, ainda, de
negros da Guiné. O sermão, destaca o autor, se apóia no mote dos filhos de
Maria. A Paixão de Cristo transformara Maria em mãe de toda a humanidade –
assim Vieira deu início ao sermão. E, anotem, de todos os devotos de Maria no
mundo, os pretos eram os mais gloriosos. Os pretos deviam agradecer a Deus por
terem sido retirados das brenhas do mundo gentio em que viviam em terras
etíopes “para serem instruídos na fé”, vivendo como cristãos, seguros, por
isso, da salvação eterna. A glória dos pretos residia na condição de escravos.
“Somente assim cumprir-se-ia seu glorioso destino, enquanto devotos de Nossa
Senhora do Rosário, que fez deles seus filhos prediletos no mundo”, explica o
autor.
Aqui na
terra, haveriam de enfrentar os mistérios dolorosos para continuarem a ser os
preferidos de Maria. O sermão escravista de Vieira, que o autor considera uma
peça literária de rara beleza, mescla o temporal e o espiritual, as dores de
Cristo na cruz e a dureza do cotidiano escravo nos engenhos. Imitação de Cristo
– era essa a gloriosa vida dos negros escravos na construção de Vieira, um
argumento de grande força persuasiva numa época em que a preocupação dominante
era a salvação da própria alma.
Em um engenho
sois imitadores de Cristo crucificado – dirá o jesuíta. “A Paixão de Cristo,
parte foi de noite, sem dormir, parte foi de dia, sem descansar, e tais são as
vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem
comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os
ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isso se
compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá
merecimento de martírio”.
Imaginemos
os negros, escravos, reunidos numa manhã ou numa tarde, quem sabe de domingo,
tentando entender aquela engenhosa dialética, aquela impressionante
transformação de dor em glória, olhando para aquele pregador tão cheio de artes
e manhas, e de convicções, aquele sacerdote que os punha tão próximos de Cristo
aproximando-os tanto daquele que morrera na Cruz, e com o qual eles se
encontrariam mais tarde, depois de mortos, no Paraíso. Não seria o caso mesmo
de aceitar o sofrimento? A resposta nossa hoje é não. E então?
Podemos
afirmar que foram obrigados, coagidos a aceitar o escravismo colonial pela
violência e pela repressão. Mas as elites não dispensavam o discurso, o
convencimento, a tentativa de acalmar ímpetos de insubmissão, que ocorrerão,
mais tarde, para além dos muitos quilombos, na Revolta dos Malês ou na
Revolução dos Alfaiates. Ali, naquele momento, Vieira se dirigia a africanos já
cristianizados, e pode ser que assimilassem alguma coisa do discurso, sem que
possamos saber se os convencia.
Falará de
labaredas saindo aos borbotões, os negros banhados em suor diante da fornalha,
as caldeiras ou lagos ferventes, e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de
tréguas, nem de descanso – uma impressionante semelhança com o inferno
construído pelos católicos ou, se quisermos, uma encarnação precisa de todas as
dores que se anunciavam para a danação eterna.
Mas, como
a escravidão era o paraíso dos pretos, então, todo esse inferno se converterá
em paraíso, como diz Vieira em seu sermão, um documento essencial para que se
entenda o espírito dominante de então e para que se esclareça o papel do
jesuíta como um escravista, como um sólido ideólogo da escravidão, como um
religioso que assumiu compromissos com aquela ordem hedionda. Vai criticar os
senhores de escravos em sermões futuros, por desleixos na condução espiritual
dos escravos e nos excessos de violência que praticavam – como se isso não
fosse, de fato, a regra. Mas, como diz o autor, corretamente: “uma vez escravista,
sempre escravista: “Vieira foi grande defensor da escravidão africana no Brasil
até o fim da vida.
O maior
de todos”.
Parafraseando Emiliano José, na Carta Capital.
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