O ódio é à democracia!...
Pra onde iriam os mineiros, cariocas, sulistas e centro oestinos que votaram em Dilma e sem os votos dos quais ela não teria saído vitoriosa?
O antidemocratismo manifestado em ano eleitoral não é resultado de um sistema ainda imaturo, mas de um processo que se consolida e começa a incomodar.
"Nordestino não sabe votar".
"Pobres merecem o que têm". "Abaixo o Bolsa Esmola".
"Vão pra Cuba". "Muda para Miami". "Os empregados
deveriam ser proibidos de participar". "Paulista é uma raça
egoísta". "Deveríamos nos separar do resto do país". Não, não é por
acaso que as manifestações de ojeriza à política, ao contraditório e ao voto
das populações mais pobres tenham se intensificado ao longo desta eleição, a
sétima desde a reabertura democrática. A democracia brasileira é jovem, mas não
é uma criança. Parte do ódio que ela provoca é antes o resultado de sua
maturidade do que de seu ineditismo: quem vocifera não são os que desconhecem
seu funcionamento, mas os que o conhecem muito bem – a ponto de, em pleno 2014,
falarem em golpe, impeachment ou cegueira coletiva para deslegitimar um resultado adverso.
A polarização, cada vez mais acentuada entre os dois principais
partidos do País, levou candidatos, eleitores-internautas,
internautas-eleitores e parte da mídia a se comportar como torcedores de
arquibancada nas últimas semanas, em especial no último domingo, 26 de outubro,
quando a presidenta Dilma Rousseff foi reeleita. A tônica variava, mas
tinha uma mesma base: não bastava expressar o voto, era preciso eliminar o
concorrente e quem vota no concorrente – principalmente se ele não tem o mesmo
repertório, a mesma escolaridade, a mesma (e suposta) independência material.
Daí as agressividades identificadas tanto no submundo da internet quanto nas
vozes de autoridades, personalidades e celebridades – que se engajaram na
campanha atual, com apoio de um lado a outro, como nunca antes na história.
A essa altura, atribuir a um ou a outro a primazia do primeiro
tacape será inútil. É preciso entender por que a agressividade se avoluma à
medida que o sistema democrático se constrói – pois sua construção é um exercício
permanente. Não é um fenômeno local: na Europa, onde o sistema é vigente há
mais tempo, os intelectuais se batem há tempos sobre as contradições do chamado
“reino do excesso” e das demandas pulverizadas (“mesquinhas”, segundo muitos)
de um conjunto de indivíduos, muitos representantes de minorias – e não, para
desespero das velhas oligarquias, de uma multidão uniforme.
Em um país como o Brasil, onde privilégio ao nascer e hegemonia
política e econômica foram sinônimos ao longo da história, a ascensão de determinados
grupos antes subjugados têm produzido todo tipo de ofensa ao chamado
“individualismo democrático”. Sobram patadas sobre pobres, gays, lésbicas,
negros, "comunistas", mulheres. Um exemplo foram as manifestações de
ódio contra a população nordestina, onde o PT conquistou muitos votos. A
repulsa chega com todos os disfarces, mas pode ser identificada, por exemplo,
quando um ex-presidente da República atribui um resultado adverso (para ele e
os seus) à cegueira coletiva dos “menos instruídos”.
No livro Ódio
à Democracia, recém-publicado no Brasil pela Boitempo Editorial, o filósofo
franco-argelino Jacques Rancière deixa pistas para entender este fenômeno. Um
fenômeno que, a se fiar pela experiência europeia e pelos últimos embates, será
cada vez mais comum por esses lados. A obra é uma crítica contundente à
denúncia do “individualismo democrático” – que, segundo ele, cobre, com pouco
esforço, duas teses: a clássica dos favorecidos (os pobres querem sempre mais)
e das elites refinadas (há indivíduos demais, gente demais reivindicando o
privilégio da individualidade). “O discurso intelectual dominante une-se ao
pensamento das elites censitárias e cultas do século XIX: a individualidade é
uma coisa boa para as elites; torna-se um desastre para a civilização se a ela
todos têm acesso”, escreve. Para o autor, não é o individualismo que esse
discurso rejeita, mas a possibilidade de qualquer um partilhar de suas
prerrogativas. “A crítica ao ‘individualismo democrático’ é simplesmente o ódio
à igualdade pelo qual uma intelligentsia dominante confirma que é a elite
qualificada para dirigir o cedo rebanho”.
Qualquer semelhança com os últimos capítulos da eleição não é mera
coincidência. No prefácio da mesma obra, o filósofo Renato Janine Ribeiro,
professor de ética da USP, lembra que um número expressivo de membros da classe
média ainda desqualifica os programas sociais consolidados nos últimos anos.
“Para eles, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando a
multidão ocupa espaços antes reservados às pessoas 'de boa aparência', uma
gritaria se alastra em sinal de protesto. O que é isso, senão o enorme
mal-estar dos privilegiados?”, questiona. “A expansão da democracia incomoda.
Daí um ódio que domina nossa política, tal como não se via desde as vésperas de
um golpe de 1964, condenando as medidas que favoreciam os mais pobres como
populistas e demagógicas”.
Em coro com Rancière, Janine Ribeiro lembra que a democracia não é
um Estado acabado nem um estado acabado das coisas; ela vive constante e
conflitiva expansão. “Porque a ideia de separação social continua presente e
forte”.
Ao menos nas últimas semanas, esta ideia parece ter tomado
proporções graves nas manifestações de ódio pelas ruas e redes sociais. Como se
o mesmo país fosse pequeno demais para dois (para não dizer muitos) tipos de
eleitores: um deve ser enviado a Cuba, o outro, a Miami; um deve ter o direito
de voto cassado, o outro tem o direito apenas de calar. O não-diálogo é
escancarado, sobretudo por quem costumava observar o espaço público como sua
propriedade e hoje se rebela contra o "Estado protetor" e o voto
"mesquinho" dos indivíduos. Mas a democracia, prossegue Rancière, longe de ser a forma de vida dos
indivíduos empenhados em sua felicidade privada, é o processo de luta contra
essa privatização, o processo de ampliação dessa esfera. "Ampliar a esfera
pública não significa, como afirma o chamado discurso liberal, exigir a
intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar contra a divisão
do público e do privado que garante a dupla dominação da oligarquia no Estado e
na sociedade”.
Parafraseando Matheus Pichonelli na Carta Capital
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