“Ajuste fiscal”? Por que não seguir a Europa
Rumo à direita? Stiglitz alerta: “Quando cidadãos votam por mudança política, mas ficam sabendo que sua escolha é inútil, democracia é corroída”
Desemprego, recessão, crise profunda da
democracia. Um Nobel de Economia desmascara o falso êxito das políticas de
“austeridade” – as mesmas que conservadores querem no governo Dilma
Por Joseph Stiglitz por E-mail
Tradução: Mariana Bercht Ruy
Um mito,
acompanhado por uma fieira de jargões, espalha-se com rapidez no Brasil
pós-eleições: o de que precisamos de um “ajuste fiscal”, de um “aperto de
cintos”, para “recolocar ordem na economia”. Após um período de “descontrole”
das contas públicas e “gastança”, os “agentes econômicos” (leia-se grandes
bancos e empresas) teriam “perdido a confiança” no Estado e deixado de
investir. Para seduzi-los novamente, seria preciso voltar às políticas mais
ortodoxas. Elevação das taxas de juros. Corte de investimentos públicos. Contenção do
salário-mínimo, da bolsa-família e de direitos previdenciários como o
seguro-desemprego.
Repetido
como mantra, esse discurso tem encontrado pouca resistência. Aécio Neves, que o
sustentou durante a campanha eleitoral, foi derrotado pelos eleitores — num
segundo turno em que Dilma
investiu, para vencer, no tema de “Mais” mudanças e direitos. Porém, fechadas
as urnas, foi como se elas nada tivessem dito. A mídia apresenta o “ajuste
fiscal” como se não fosse uma opção política — mas uma necessidade objetiva e
inescapável. A própria presidente reeleita pareceu abandonar, logo depois
da vitória, seu discurso. Ainda em outubro, o Banco Central elevou as taxas de
juros. Em 6 de novembro, ao conceder entrevista a oito veículos da velha mídia,
Dilma anunciou corte de gastos. Um dia depois, o ministro da
Fazenda, Guido Mantega,revelou que o
governo já os prepara.
Mas o
“ajuste fiscal” é uma escolha tão óbvia, para os governantes, como mobilizar as
equipes de Defesa Civil, em caso de tragédia? No texto a seguir, Joseph
Stiglitz, Nobel de Economia, demonstra que não. Ele examina o caso da Europa.
Lá, com nome de “austeridade”, politicas de corte de direitos sociais e
desmonte de serviços públicos estão sendo adotadas desde 2009. Cinco anos
depois, os economistas conservadores veem sinais de “sucesso”. Stiglitz zomba.
Todas as crises terminam um dia, ele lembra. Ao fazer o balanço, o que importa
é aferir que sacrifícios foram exigidos, das sociedades, para enfrentá-las. Na
Europa, o panorama é trágico. Além da corrosão dos direitos sociais,
houve desgaste grave da democracia — desmoralizada quando os governos
prometem “Mais” e entregam “mais do mesmo”. E não é só: voltam a surgir no
horizonte sinais de que todo o sacrifício foi inútil. Mesmo países como a
Alemanha parecem enfrentar, agora, estagnação — e contribuem para jogar lenha
na fogueira de uma possível tempestade econômica mundial.
A
redefinição da política econômica tornou-se um tema central. Árido
aparentemente — porque interessa ao pensamento conservador reduzi-lo a
algo para especialistas — ele pode ser compreendido por todos que se
disponham a algum esforço. Vale a pena. Das escolhas que o Brasil fizer, neste
terreno, dependerá, também, nosso futuro político, social e cultural. “Outras
Palavras” insistirá no assunto. Vale, por enquanto, escutar Stiglitz. (A.M.)
“Se os fatos não se encaixam na teoria,
mude a teoria”, diz o velho ditado. Mas muito comumente é mais fácil manter a
teoria e mudar os fatos. É o que a chanceler alemã Angela Merkel e outros
líderes europeus pró-austeridade parecem pensar. Mesmo com os fatos a um palmo
do nariz, eles continuam negando a realidade.
A
austeridade falhou. Mas seus defensores estão prontos a declarar vitória com
base na evidência mais fraca de todas. A economia não está mais em colapso;
logo, as medidas de austeridade só podem estar funcionando! Mas se essa for a
referência, poderíamos dizer que pular de um penhasco é a melhor forma de
descer uma montanha.
Toda crise
chega a um fim. O sucesso não deve ser medido pelo fato de a recuperação em
algum momento acontecer — mas pelo tempo que se demora para chegar a ela e por
quão extensos são os danos causados pelo tombo. Vista nesses termos, a
austeridade tem sido um desastre completo e absoluto. Isso está se tornando
cada vez mais visível à medida em que as economias da União Europeia voltam a
encarar estagnação — ou, talvez, um triplo mergulho em recessão, com o
desemprego mantendo-se em altos patamares e o PIB real per capita ainda abaixo
dos níveis pré-crise, em muitos países. Mesmo nas economias de melhor
desempenho, como a Alemanha, o crescimento desde 2008 tem sido tão lento que,
em qualquer outra circunstância, seria considerado desanimador.
Os países
mais atingidos estão em
depressão. Não existe outra palavra para descrever economias
como a da Espanha ou da Grécia, onde quase uma em cada quatro pessoas – e mais
de uma em cada duas, entre os jovens – não consegue encontrar trabalho. Dizer
que o remédio está funcionando porque o índice de desemprego decresceu em
alguns pontos percentuais, ou porque se pode ter um vislumbre de crescimento
magro, é semelhante a um barbeiro medieval que diz que a sangria está
funcionando, já que o paciente ainda não morreu.
Extrapolando
o crescimento europeu modesto a partir dos anos 80, meus cálculos demonstram
que a produção na zona do euro hoje está mais de 15% abaixo do ponto em que
estaria, se a crise financeira de 2008 não tivesse acontecido. Isso implica uma
perda de 1,6 trilhão de dólares apenas esse ano, e uma perda acumulada de mais
de US$ 6,5 trilhões. Ainda mais perturbador é que essa diferença está
aumentando e não diminuindo (como se esperaria depois de uma crise, quando o
crescimento é tipicamente mais rápido do que normalmente conforme a economia
retoma terreno perdido).
Em outras
palavras, o longo período de recessão está diminuindo o crescimento potencial
da Europa. Jovens que deveriam estar desenvolvendo habilidades não estão. Há
evidências contundentes de seus rendimentos, ao longo da vidas, serão muito
menores do que se vivessem num período de pleno emprego.
Enquanto
isso, a Alemanha força outros países a seguir políticas que enfraquecem suas
economias – e suas democracias. Quando os cidadãos votam repetidamente por uma
mudança política (e poucas políticas importam mais aos cidadãos que aquelas que
afetam seus padrões de vida), mas ficam sabendo que estes temas são decididos
em outro lugar, e que, portanto, sua escolha é inútil, tanto a democracia
quanto a fé no projeto europeu são corroídas.
A França
votou para mudar de rumo três anos atrás. Em vez disso, os eleitores receberam
outra dose de austeridade pró-corporações. Uma das propostas mais antigas na
economia é o multiplicador do orçamento equilibrado. Significa
que aumentar conjuntamente os impostos e as despesas estimula a economia.
E se os impostos incidem sobre os ricos e as despesas beneficiam as
maiorias, o multiplicador pode ser particularmente alto. Mas o dito governo
socialista francês está reduzindo a tributação das empresas e cortando gastos –
uma receita quase garantida para enfraquecer a economia, mas também para ganhar
elogios da Alemanha…
A esperança,
afirma-se, é que impostos mais baixos para pessoas jurídicas estimulem o
investimento. Isso é pura bobagem. O que está reduzindo o investimento (tanto
nos Estados Unidos como na Europa) é a ausência de demanda, não os impostos
elevados. Na verdade, como a maior parte dos investimentos é financiada por
dívidas, e como o pagamentos de juros é dedutível dos impostos, o nível de
tributação das empresas tem pouco efeito na decisão de investir.
Da mesma
forma, a Itália está sendo encorajada a acelerar a privatização. Mas o primeiro
ministro Matteo Renzi tem o bom senso de reconhecer que vender empresas a preço
de banana faz pouco sentido. Também as decisões do setor privado deveriam ser
influenciadas por donsiderações de longo prazo, não por exigências financeiras
de curto prazo. A decisão deveria ser baseada em onde essas atividades são
realizadas de forma mais eficiente, servindo aos interesses da maioria dos
cidadãos da melhor forma possível.
A
privatização dos sistemas de Previdência, por exemplo, já provou ser
dispendiosa naqueles países que a experimentaram. O sistema de saúde quase
inteiramente privado norte-americano é o menos eficiente do mundo. Existem
questões difíceis, mas é fácil demonstrar que vender empresas estatais por
preços baixos não é uma boa forma de aumentar a força financeira a longo prazo.
Todo o
sofrimento na Europa – infligido a serviço do euro – é ainda mais trágico por
ser desnecessário. Apesar das evidências de que as medidas de austeridade não
funcionam continuarem se acumulando, a Alemanha e outros falcões dobraram a
aposta, apostando o futuro da Europa em uma teoria há muito desacreditada. Por
que fornecer aos economistas mais fatos para provar isso?
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