COLOTE DA GLOBO V - EXCLUSIVO: “Estamos, sim, diante de um caso escandaloso”, diz tributarista sobre sonegação da Globo
O advogado tributarista Machione: “Estamos, sim, diante de um caso escandaloso de sonegação”
No dia 2
de janeiro de 2007 , quando o processo da TV Globo desapareceu dos
escaninhos da Receita Federal, no Rio de Janeiro, a empresa devia ao Fisco mais
de R$ 615 milhões, incluindo juros e multas, pela sonegação de impostos devidos
pela aquisição dos direitos de transmissão da Copa do Mundo em 2002. Quase oito
anos depois, ainda permanecem sem resposta duas perguntas essenciais: a Globo
quitou o débito? Se quitou, quanto deixou nos cofres da Receita Federal?
A resposta está no inquérito da Polícia Federal registrado sob número
0017221-36.2014.4.02.5101 na 8ª Vara Federal Criminal no Rio de Janeiro. Mas é
impossível ter acesso a ele. O inquérito foi arquivado sob segredo de justiça.
Para o público, só está disponível a decisão da juíza, que atendeu à
manifestação do Ministério Público e da Polícia Federal.
A decisão, assinada pela juíza Valéria Caldi Magalhães, tem uma só
página e a palavra Globo ou Globopar não aparece uma única vez.
“Tratando-se de procedimento meramente investigativo, em que exerce o
Judiciário apenas tarefa anômala de fiscalização das manifestações ministeriais
de arquivamento ou de garantia de direitos individuais constitucionalmente
assegurados, incumbe à autoridade que conduziu as investigações adotar as
medidas necessárias à atualização de registros que ela própria inseriu”,
escreveu a juíza.
Um criminalista a quem mostrei a sentença disse que o Poder Judiciário
se comportou como Pôncio Pilatos (“lavou as mãos”), mas no direito brasileiro o
caminho é esse mesmo. Quem investiga é a Polícia e o Ministério Público.
No inquérito da Globo, a juíza deixou uma brecha para que a
investigação seja retomada, ao escrever que sua decisão era “sem prejuízo do
disposto no art. 18 do CPP”. Em bom português, se surgirem fatos novos,
retoma-se a investigação.
O inquérito foi aberto para apurar se houve o crime definido pelo
artigo 1º da lei 8137/90. Diz a norma que é crime “suprimir ou reduzir
tributo”, mediante algumas condutas, como “elaborar, distribuir, fornecer,
emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato”. A pena
é de dois a cinco anos de reclusão, mais o pagamento de multa.
O advogado tributarista Jarbas Machione, a quem mostrei o processo da
Receita Federal que multou a Globo por sonegação, diz não ter dúvida. “Estamos,
sim, diante de um caso escandaloso de sonegação”, afirmou.
A Globo utilizou empresas controladas por ela mesma no Uruguai,
Ilha da Madeira, Holanda, Antilhas Holandesas e Ilhas Virgens Britânicas para
simular negócios que existiam apenas no papel. “O objetivo é claro: não pagar
imposto no Brasil”, afirma Machione.
O advogado diz que a utilização de empresa em diferentes países era uma
estratégia para dificultar o rastreamento da operação. “Na época, se acreditava
que, se se fizesse o dinheiro circular por vários países, criava mais barreiras
e tornava a fiscalização muito difícil, senão impossível”, diz.
O ex-prefeito de São Paulo Paulo Maluf também usou essa estratégia, no
caso dele, segundo o Ministério Público do Estado de São paulo, para esconder o
dinheiro da corrupção. Mas, assim como a Globo, Maluf acabou descoberto.
“Posso apostar que a denúncia contra a Globo partiu de fora para
dentro. São acordos internacionais, em que autoridades estrangeiras, ao tomarem
conhecimento de uma operação suspeita sob seus domínios, comunicam à autoridade
do país conveniado”, afirma o advogado.
No Brasil, quem faz o intercâmbio com a comunidade internacional é o
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), criado em 1998, ainda na
gestão de Fernando Henrique Cardoso, como parte de um movimento mundial
coordenado de combate à lavagem de dinheiro.
O alvo inicial era cortar as fontes de financiamento do terrorismo e do
narcotráfico, mas nas grandes lavanderias de dinheiro sujo as autoridades
encontraram corruptos e sonegadores, como, ao que tudo indica, foi o caso da
Globo.
No Brasil,
o pagamento do tributo extingue a punibilidade. Mas não isenta o acusado de
responder por lavagem de dinheiro. O advogado Jarbas Machione não tem dúvidas
quanto à sonegação, mas diz que não encontrou no processo da Receita Federal
elementos para apontar a ocorrência de outros crimes.
Em 2012, a
Tribunal Federal da Suíça revelou que dois dirigentes da Fifa, João Havelange e
Ricardo Teixeira, receberam R$ 45 milhões de suborno para favorecer a empresa
que adquiriu os direitos de transmissão da Copa do Mundo em 2002 e também em
2006 para o território brasileiro.
O processo estava em segredo de justiça, mas as autoridades suíças
decidiram tornar pública a informação, em nome do “relevante interesse
público”. É óbvio que a empresa em questão se trata da Globo, mas os jornais
que deram a notícia na época não citaram o nome da empresa da família Marinho.
O jornalista Andrew Jennings, que escreveu dois livros sobre
corrupção na Fifa, “Jogo sujo” e “Jogo cada vez mais sujo”, esteve no Brasil em
julho e participou de uma conferência na Bienal do Livro em São Paulo. Eu estive
lá e fiz uma pergunta a ele: “Existe corrupção para a aquisição de direitos de
transmissão de TV da Copa do Mundo?”
“Sim”, ele disse. “O jogo para ficar com o direito de transmissão
é muito pesado na Ásia, menos na Europa, pouco na América do Norte e muito na
América do Sul.” E no Brasil? “Também”, disse, sem dar mais detalhes.
A seu lado, o jornalista Juca Kfouri pediu a palavra e, em
português, comentou, sabendo que Jennings o acompanhava pela tradução
simultânea. “Não sei por que o Andrew Jennings não quis se aprofundar no tema.
Mas ele sabe que a transmissão da Copa é um jogo de tubarão”, disse.
Nas manifestações de junho de 2013, quando surgiram na internet as
primeiras denúncias de que a Globo sonegou os impostos na aquisição dos
direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002, algumas manifestações
aconteceram em frente à emissora, em que cartazes foram erguidos para protestar
contra a sonegação.
Na Inglaterra, a indignação contra a evasão fiscal provocou
protestos mais barulhentos. Os ingleses foram à porta da cafeteria Starbucks,
acusada de não recolher os impostos devidos no país, o que provocou a abertura
de uma investigação pelo Parlamento Britânico, em que não apenas executivos da
Starbucks tiveram que prestar esclarecimentos, mas também representantes da
Amazon e da Google.
“No Brasil, o grito hoje é contra a corrupção, o que está correto,
mas só seremos uma nação verdadeiramente moderna quando a população considerar
a sonegação tão nociva quanto a corrupção e protestar, como fizeram com a
Starbucks em Londres”, afirma o tributarista Jarbas Machione.
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