Um país em que os congressistas não têm poder de decisão sobre seus salários
O Riksdag, o Parlamento sueco
Quem mais
tem o privilégio fabuloso de aumentar o próprio salário, a não ser o dono do
negócio? Diz a Constituição brasileira que soberano é o povo, mas os venerandos
parlamentares do nosso Congresso, que é o segundo Congresso mais caro do mundo,
acabam de aprovar seu auto-aumento salarial para a próxima legislatura.
Como um peru natalino, a engorda dos vencimentos é preparada agora
para ser submetida à aprovação pelo Senado, antes do alegre período festivo que
dará início ao recesso parlamentar. Ganha um jeton quem adivinhar o resultado
da votação.
O reajuste, de 26%, eleva os salários de deputados federais e
senadores para R$ 33,7 mil. No mesmo pacote, os parlamentares aprovaram aumento
de 14,6% nos salários dos juízes do Supremo Tribunal Federal, que também passam
a receber R$ 33,7 mil mensais – reinará, enfim, a equiparação há tempos
desejada pela maioria dos congressistas.
O impacto dos reajustes promete mais uma espetacular sangria nos
cofres do dinheiro público, que financia as contas dos congressistas e dos
homens da lei deste país das maravilhas. Enquanto isso, no mundo real, o piso
salarial dos professores mal chega a R$ 1,7 mil, e o salário mínimo proposto
para 2015 é de 790 reais.
Os números da insatisfação: atualmente, o salário dos 513
deputados e 81 senadores é de R$ 26,7 mil mensais. A isso, soma-se verba de até
R$ 45 mil para gastos com atividades parlamentares, incluindo passagens aéreas,
gasolina e alimentação. Além disso, todos os congressistas têm direito a
apartamento funcional com mais de 200 metros quadrados ,
ou auxílio-moradia no valor de R$ 3,8 mil por mês – pago inclusive para
deputados eleitos pelo Distrito Federal que têm residência própria em Brasília.
Também contam com verba para contratar servidores em seus
gabinetes – na Câmara, a verba é de R$ 78 mil por mês para contratar até 25
funcionários. No Senado, cada senador pode contratar até 55 funcionários, a um
valor estimado de R$ 82 mil mensais.
Talvez diante de uma filosófica preocupação com a imagem do
Congresso, optou-se por um reajuste destinado a garantir a correção
inflacionária dos subsídios parlamentares nos últimos quatro anos. Os juízes do
STF queriam mais – a proposta de aumento apresentada ao Congresso elevaria seus
salários para R$ 35,9 mil -, mas um acordo costurado pela Câmara com o STF
reduziu o valor para o mesmo patamar do salário dos congressistas.
Para ministros de Estado, presidente e vice-presidente da
República, o reajuste proposto pelo Executivo ao Congresso foi de 15,7% – o que
vai elevar os salários para R$ 30,9 mil. Ou seja: os parlamentares passarão a
ganhar mais do que a presidente da República.
”Se eles (Poder Executivo) querem optar por um valor menor, é um
direito deles”, disse ao repórter do UOL o líder do PMDB na Câmara, Eduardo
Cunha.
Há quem discorde.
“Eu acho que a gente já ganha o suficiente. Não precisa de
aumento”, disse o deputado Tiririca (PR-SP).
Como sempre, o reajuste salarial concedido pelos parlamentares a
si próprios passa a gerar um efeito cascata nas assembléias estaduais e
municipais, a beneficiar os interesses de quem representa os interesses do
cidadão. A cena se repetirá no Judiciário.
Vai-se, assim, chicoteando o decoro.
Para um cidadão sueco, imaginar o auto-aumento de seus
representantes seria um Ragnarök, o fim do mundo da mitologia nórdica.
Na Suécia, um dos lugares mais caros do mundo, os parlamentares
ganham um salário que equivale a cerca de R$ 20,6 mil mensais. Nenhum deputado
tem direito a verba indenizatória para pagar assessores, aluguel de escritório,
consultorias ou divulgação de mandato. Nenhum parlamentar tem direito a carro
com motorista, plano de saúde privada, aposentadoria vitalícia nem imunidade
parlamentar.
Quem decide os salários dos parlamentares suecos é um comitê
independente, chamado Riksdagens Arvodesnämd. Este comitê é integrado por três
pessoas: um presidente, que via de regra é um juiz aposentado, e dois
representantes públicos, em geral ex-servidores públicos ou jornalistas.
Quando
entrevistei o atual presidente do órgão, durante a preparação do livro ”Um País Sem Excelências
e Mordomias”, o
jurista Johan Hirschfeldt destacou que a decisão do comitê é soberana: não pode
ser contestada, e não necessita ser submetida a votação no Parlamento.
”Os parlamentares não têm nenhum poder de decisão no processo. E
não sei se ficam satisfeitos ou não com o reajuste salarial, porque nenhum
parlamentar nunca telefonou para pedir mais, nem reclamar”, disse Hirschfeldt,
que é ex-presidente da Corte de Apelação de Estocolmo.
Telefono agora para Hirschfeldt, e pergunto qual foi o percentual
do reajuste salarial concedido neste ano de 2014 aos parlamentares suecos.
”2,1%”, responde o jurista do outro lado da linha. ”Um pouco acima
da inflação”.
O comitê mantém reuniões periódicas de consultas e análise, e se
reúne uma vez por ano para tomar sua decisão – embora o reajuste salarial dos
parlamentares não seja obrigatoriamente anual.
”Geralmente, tentamos estabelecer um percentual de reajuste que
reflita as tendências e variações econômicas da sociedade como um todo”,
explica o jurista.
É preciso destacar, aqui, que no mais igualitário sistema sueco as
diferenças salariais são menos exorbitantes: descontados os impostos, por
exemplo, um deputado do Parlamento sueco recebe, em valores líquidos, cerca de
50 por cento a mais do que ganha um professor do ensino médio.
O presidente do comitê responsável pelo reajuste salarial dos
deputados suecos prossegue:
”Antes de iniciarmos nossas discussões, analisamos diferentes estatísticas e
informações sobre a evolução dos salários das diferentes categorias
profissionais em nossa sociedade.
Esses números incluem acordos coletivos realizados através dos
sindicatos, assim como variações salariais do funcionalismo público, dos
governos locais e também do setor privado.
Também incluímos em nossas análises as estatísticas do Banco
Central, os números da inflação e o desenvolvimento geral da economia em nosso
país. Todas estas informações formam a base de uma decisão sobre um eventual
aumento de salário para os parlamentares”, ele detalha.
Pergunto a Hirschfeldt se o comitê se orienta a partir de algum
parâmetro-base, no que se refere às variações salariais das diferentes
categorias trabalhistas.
”Na Suécia, a variação do salário de um trabalhador da indústria
metalúrgica é geralmente considerado um patamar para a discussão de reajustes
tanto no setor público como no privado. É, digamos assim, um parâmetro
informal”, diz o jurista.
É este parâmetro informal que norteia especialmente o índice de
reajustes de salários nos órgãos estatais e nas autoridades regionais, destaca
o jurista:
”É preciso ser cuidadoso. Não se pode usar, para a esfera pública,
índices de reajuste superiores àqueles aplicados no setor privado”.
A independência do comitê que determina os reajustes salariais dos
parlamentares, segundo afirmam jornalistas suecos com quem conversei, é
absoluta – apesar de os integrantes serem nomeados pela Mesa Diretora do
Parlamento.
”Não há nenhum político entre nós. Somos um comitê independente,
com independência garantida pela Constituição. A Mesa Diretora do Parlamento
não pode nos dar nenhuma diretriz”, confirma o presidente do órgão.
Aumentos de salário dos ministros e do primeiro-ministro da Suécia
também são decididos por um comitê independente, o Statsrådsarvodesnämden. Os
nomes dos três integrantes do comitê – também presidido por um juiz aposentado
– são propostos pela Comissão de Constituição do Parlamento, e submetidos a
votação no Parlamento. Comitês independentes regulam ainda os salários dos
diferentes Ombudsman (ouvidores) e auditores nacionais da Suécia.
O salário dos parlamentares suecos se alinha, aproximadamente, aos
vencimentos de um juiz de primeira instância – embora não exista nenhum tipo de
vínculo formal. Já o salário de um juiz da Suprema Corte sueca é de 100 mil
coroas suecas – o equivalente a aproximadamente R$ 35 mil. Mas na Suécia,
juízes do Supremo não recebem auxílio-moradia, auxílio-alimentação,
auxílio-transporte, abono de férias ou qualquer outro benefício. Nem têm
direito a carro com motorista ou plano de saúde privada.
E os juízes? Quem determina o salário dos juízes suecos? – quero
saber. ”É um caso peculiar”, diz o jurista.
Como assim?
”O salário dos juízes, na Suécia, são estabelecidos segundo os
mesmos princípios do mercado de trabalho em geral. Temos o
sindicato dos juízes, e um comitê nacional de administração dos tribunais – que
decide inclusive os salários dos juízes da Suprema Corte. Os reajustes são
negociados entre as duas partes. E se não houver acordo, os juízes podem entrar
em greve.
Mas greve de juízes é algo de que não se tem memória na Suécia.
”O sistema sueco tem muitas tradições”, diz Johan Hirschfeldt. ”E
uma destas tradições é o bom-senso e a integridade dos representantes da
Justiça. Porque a confiança dos cidadãos nos juízes é um elemento-chave do
nosso sistema”, destaca Johan Hirschfeldt.
Sobre o sistema de auto-aumento que vigora entre os representantes
dos cidadãos no Brasil, o jurista prefere exercitar a discrição sueca.
”Não me parece apropriado emitir minha opinião sobre o sistema de
um outro país, como o Brasil. O que posso dizer é que para nós, na Suécia,
delegar decisões sobre reajustes salariais das autoridades do país a comitês
que sejam de fato independentes é a forma mais justa e íntegra de lidar com
essa questão.”
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