Enfim, uma análise profissional da direita brasileira. A de um psicanalista
O psicanalista
Thales Ab’Sáber, autor de diversos livros, faz hoje, noEstadão, uma
análise imperdível do papel desempenhado por Eduardo Cunha.
Brilhante, porque
de personagens com o atual Presidente da Câmara, a política está cheia:
conservador, ousado, oportunista e sempre à procura de portas que possa abrir
com os métodos mais espertos do que éticos.
O que diferencia e
dá importância ao homúnculo moral que preside aquela casa é o fato de que a
direita, estéril como é na produção de líderes – veja-se o caso do playboy
Aécio Neves, erigido em zelador dos bons costumes – ter de lançar mão deste
tipo de agentes políticos de baixa extração, retirados lá do pântano de um
carreirismo sabujo que começou com uma “boquinha” na Telerj de Collor e PC
Faria.
Cunha é um
personagem horrendo, mas menos tenebroso do que os interesses que, por seu
intermédio, tentam e vão se impondo.
Em parte porque
são assim, em parte porque o PT acreditou que bastavam as alianças –
necessárias – para governar – deixando que muito de sua ação se confundisse com
a “geléia geral” da política que “é assim mesmo”.
Ab’Sáber merece
ser lido com atenção e com o prazer da clareza de ideias. O pensamento
conservador brasileiro precisa, de tão minúsculo que é na sua visão de país, de
quem veja o país seus complexos e vícios patrimonialistas e elitistas.
Mesmo que seja
alguém extraído do pântano da esperteza.
Thales Ab’Sáber, no Estadão
Eduardo Cunha, do
PMDB do Rio de Janeiro, assumiu a presidência da Câmara dos Deputados em 1º de
fevereiro de 2015. Sua vitória, por 276 votos contra 136 de Arlindo Chinaglia,
o candidato do governo, foi a primeira das várias derrotas que a partir de
então, em ritmo vertiginoso, ele passaria a promover no Congresso contra temas,
pautas e princípios do governo petista de Dilma Rousseff. A organização pessoal
de Cunha, e de seus interesses conservadores amplos, imediatamente ganhou
nítido contraste com a dissolução geral da política petista que acontecia ao
seu redor.
Apesar da vitória
para a Presidência e de conquistar a maior bancada no Congresso, o Partido dos
Trabalhadores pareceu ter saído das urnas em 2014 simplesmente derrotado. A
crise de corrupção na Petrobras envolvendo possíveis propinas do cartel que
controlava a empresa endereçadas a PT, PMDB e PP e a 17 políticos investigados,
entre eles Eduardo Cunha e Renan Calheiros, além de um senador do PSDB e o
acirramento da oposição que levou Aécio Neves a meros 3% de distância da
presidente reeleita marcaram de maneira negativa o espírito do novo governo. O
desgaste total da sua política econômica, que manteve o pleno emprego no
Brasil, mas gastou todas as fichas disponíveis no limite da responsabilidade
fiscal e não conseguiu promover crescimento no último ano e meio, levou o ânimo
e a autoconcepção do governo petista à lona. O governo só parece fazer política
na plena posse de seu modelo de economia uma espécie de
social-desenvolvimentismo, ou capitalismo social, se olharmos daqui ou dali ,
e ter de realizar cortes fortes nos gastos públicos, de tipo neoliberal,
desorientou definitivamente a bússola governista para a própria política. Além
disso, logo a nova organização social à direita, a nova paixão política à
direita, prosseguiu sua feroz crítica ao governo nas ruas, criando um fator de
forte instabilidade que o PT não conhecia.
O quadro de
fraqueza de governo, de falência de projeto, de falta de predomínio sobre a
própria base, além da velha inapetência para a política parlamentar petista
uma agremiação viciada no seu bonapartismo lulista , não foi criado por
Eduardo Cunha, mas é o setting que permitiu a força e o colorido de sua atuação
surpreendente. E desde o primeiro segundo ele soube ler com grande acuidade a
situação: “Eu acho pouco provável o sucesso de uma candidatura do PT em
qualquer disputa contra qualquer um, e não vejo dentre os deputados do PMDB
nenhuma vontade de apoiar uma candidatura do PT [à presidência da Câmara] (…)
Até para a governabilidade é melhor que se tenha alguém que seja representativo
de uma maioria, que tenha capacidade de discussão e que esteja completamente
distante do centro da polarização eleitoral que aconteceu”.
Buscando
legitimidade, como nome da maioria informe em nome da sua independência e como
mediador da grande polarização eleitoral de 2014, ele se elegeu presidente da
Câmara, contra um movimento político ligeiro e desorgânico do governo.
Imediatamente declarou que só passando sobre seu cadáver o tema do aborto e o
da regulação da mídia seriam pautados na casa presidida por ele. Aliás, de modo
acintoso, e sinalizando claramente seu vínculo com um grande sistema de
poderes, também afirmou que “regulação econômica de mídia já existe no Brasil,
você não pode ter mais de cinco geradoras de televisão”. As declarações
deixavam claro, no mundo da vida e das grandes aspirações e perspectivas de
poder, a posição de compromissos de Cunha e, ainda mais, a sua forte vontade de
exercer ao máximo o seu poder, empenhando simbolicamente o próprio corpo. Ele
assumia a responsabilidade por sua pauta conservadora, ainda mais à direita do
grupo em geral voraz de parlamentares que passou a liderar, dar cérebro e
coluna, conhecido historicamente como centrão.
Sobre o aborto, a
sua posição já era tradicional. Homem ligado ao movimento político de massas
das Igrejas Evangélicas brasileiras mais precisamente à Assembleia de Deus,
ministério Madureira , em 2011 ele se tornou conhecido pela excentricidade e
desfaçatez de propor o projeto de lei do “dia nacional do orgulho hétero”, para
defender a “maioria discriminada”, segundo ele próprio. Após a novela da Globo
Amor à Vida exibir em seu último capítulo o muito aguardado beijo gay entre
Felix e Nico, ele se manifestou pronta e assertivamente, como é sua
característica, agora no Twitter: “Estamos vivendo a fase dos ataques, tais
como a pressão gay, a dos maconheiros e abortistas. O povo evangélico tem que
se posicionar”. Não se pode negar que Cunha é um político em busca de ação. Ele
se baseia na força social real da massa de evangélicos, popular e moralista, e
expressa para esse povo que o sustentou até agora uma espécie pós-moderna de
amplo populismo conservador, meio religioso, meio moral, meio midiático, que,
como se tornou comum comentar a seu respeito, não esconde o vínculo entre o
desejo de ocupar espaço na política, o caráter conservador e a ação afirmativa,
muitas vezes autoritária.
Quanto aos
negócios em grande escala de monumentos voltados à ascensão da sua própria
classe média, Eduardo Cunha é também explicitamente ativo. Além de se preocupar
pessoalmente com a limitação de cinco geradoras de televisão por cidadão
brasileiro, assim que assumiu a mesa diretora da Câmara deu início ao processo
de construção de um novo conjunto de prédios ligados ao Congresso nos quais
estão previstos maiores gabinetes, estacionamento, um auditório, um novo
plenário, mais amplo e para mais deputados, desbancando o prédio icônico e
tombado, patrimônio da arquitetura mundial, de Oscar Niemeyer? E um
shopping de luxo para os congressistas e suas mulheres. O valor total do
empreendimento imobiliário, que envolverá muitas das empreiteiras que
investiram forte nas campanhas dos próprios deputados, está orçado em R$ 1
bilhão. Os luxos e os mimos de Cunha aos seus pares deverão ser construídos no
período de maior aperto fiscal e orçamentário do País dos últimos 15 anos, que
atingirá em cheio a vida econômica e a classe trabalhadora brasileira. Eles dão
indício do tipo de responsabilidade e comprometimento em jogo. O governo de
Cunha para o Congresso se expressa na máxima brasileira do político
conservador, sob suspeição, que justifica e legitima sua prática social
meramente ao fazer construções de imenso porte. E as obras, agora, são
gabinetes de luxo e shopping center particular, no mundo dos chiques entre si
do parlamento brasileiro. Trata-se de um sintoma mais que perfeito do tempo.
E, além do negócio imobiliário bilionário para o maior conforto da própria
classe, há indícios importantes, segundo promotores públicos, com declaração
explícita do delator Alberto Youssef na Operação Lava Jato, de Eduardo Cunha
ter recebido propinas e tentar chantagear a empresa japonesa Mitsui & Co.
quando os pagamentos, ligados aos grandes desvios acontecidos na Petrobrás,
cessaram.
Eduardo Cunha é,
portanto, uma mistura de Severino Cavalcanti e pastor Marco Feliciano que deu
certo. Hábil com a linguagem, sempre de prontidão e com imenso gosto pelo
poder, mais estruturado em sua bases, ele se tornou rapidamente, voando baixo
sob a ruína da política petista, o homem de que a direita brasileira havia
muito tempo não dispunha. Uma verdadeira liderança, produtiva para os próprios
interesses de classe, com um aceno conservador nítido ao novo público político
produzido nas igrejas, nas rádios e nas televisões evangélicas. É egresso dessa
nova elite, popular, telerreligiosa, empreendedora, ativa e pós-moderna.
Politicamente, em
dois meses de direção da Câmara, liderou duas derrotas históricas, em
velocidade de blitzkrieg, que sinalizaram claramente a atual alienação política
do governo dito de esquerda: a aprovação na Comissão de Constituição e Justiça
da proposta de diminuição da maioridade penal no Brasil e a aprovação em
plenário de uma ampla lei de terceirização do trabalho no Brasil,
produzindo a maior derrota nas leis trabalhistas brasileiras desde a sua
instauração por Getúlio Vargas. Em uma frente, a pauta conservadora visava à
sociedade civil e noutra, se articulava aos maiores interesses empresariais,
que aproveitaram o homem muito disposto no Congresso e a falência do governo
para tramitar da noite para o dia, sem debate, um projeto de imenso impacto social,
parado havia 11 anos. Cunha valeu-se do vácuo de governo para governar o
Brasil, desde o Congresso.
Na última semana,
com requintes de arbítrio, tentou fazer o mesmo com a reforma política: aprovar
a da sua preferência, sem discussão. Pela primeira vez foi derrotado, em parte.
Havia mais interesses em jogo do que a sua liderança agressiva podia dar conta.
Sua política acelerada e afirmativa, que já enfiou vários gols no time do
governo perdido em campo, é também um modo de colocar no ataque os interesses
dos seus políticos denunciados na Lava Jato, entre eles ele próprio e Renan
Calheiros; não apenas frente ao Planalto, para quem pretendem transferir toda a
responsabilidade das próprias possíveis propinas, mas também, agora, frente ao
Ministério Público e a Justiça, que estão na mira dos canhões da Casa. Há algo
de rei nu em Cunha. Daí, também, tanta movimentação.
E é apenas o
elemento da virtual Justiça democrática, com a novidade radical no panorama
brasileiro que é o juiz Sérgio Moro, o dado que diferencia hoje a situação de
um político como Eduardo Cunha de outros políticos brasileiros da mesma
estirpe, desde um Bernardo Pereira de Vasconcelos, no Império, até um Carlos
Lacerda, no pré64. Seria realmente interessante, e importante, vermos um dia a
Justiça brasileira julgar alguém como ele, quando houver motivos, com a mesma
diligência e rigor com que se julgou José Dirceu e a cúpula petista no episódio
do mensalão.
Apenas para, como
costuma dizer o nobre deputado, garantir a plena autonomia dos poderes no
Brasil.
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