Acordo com ditadura possibilitou eleição de Havelange à Fifa
A associação entre
esporte e política durante o regime militar brasileiro possibilitou a eleição
de um dos presidentes da Fifa (Federação Internacional de Futebol) que mais
tempo esteve à frente da entidade: João Havelange. Essa é uma das conclusões do
mestrado “A Bola e o Chumbo: Futebol e Política nos anos de chumbo da Ditadura
Militar Brasileira”, apresentado na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas) da USP.
Segundo o cientista
político Aníbal Chaim, autor da pesquisa, a aproximação entre o poder político
e o esportivo ocorreu no momento em que os governantes militares vivenciavam
uma situação de insegurança e indefinição quanto ao futuro. Menos de duas
semanas antes da publicação do AI-5 (Ato Institucional), que dava ao presidente
da República poderes excepcionais, o então presidente do Brasil, Arthur Costa e
Silva, se reuniu com João Havelange, na época presidente da CBD (Confederação
Brasileira de Desportos) — atual CBF (Confederação Brasileira de Futebol)
—, e os dois fecharam um acordo que previa investimento do Estado no futebol
nacional.
Do lado do governo, o intuito era associar sua imagem à do futebol brasileiro
em busca de estabilidade política e aceitação popular do regime, já que o
esporte era a representação nacional com maior poder simbólico junto ao povo,
principalmente pelas conquistas da Copa do Mundo em 1958 e 1962. Para
Havelange, o acordo seria o apoio necessário para alcançar seu plano pessoal:
ser eleito presidente da Fifa.
“João Havelange usou dinheiro da ditadura militar para se eleger para a Fifa,
mas isso não quer dizer que a ditadura tenha lhe dado dinheiro diretamente com
esse objetivo, isso não aconteceu. O investimento do governo na seleção e no
futebol brasileiro, de forma geral, foi a chance de ouro para que Havelange
obtivesse um suporte financeiro robusto o suficiente para executar seus
projetos com vistas à conquista do cargo de presidente da federação
internacional”, explica Chaim.
Financiamento
O primeiro resultado concreto do acordo com o governo militar foi a criação da
Loteria Esportiva, que seria a principal fonte de recursos financeiros da CBD.
“Com esse dinheiro, Havelange promoveu uma rigorosa preparação física para os
jogadores da seleção de 1970. O principal objetivo do governo militar era
associar-se ao sucesso do ‘Brasil’, fosse esse o país representado pelo Estado
que dirigiam, fosse esse a seleção nacional de futebol. Não seria possível
fazer propaganda de um time fracassado”, ressalta o pesquisador.
O tricampeonato no México converteu o futebol brasileiro em um valioso
instrumento de promoção do regime militar, já sob o comando de Emílio
Garrastazu Médici que assumiu a presidência da República em 1969. Após a
conquista da Copa de 1970, o presidente da CBD lançou sua candidatura à Fifa e
começou a promover excursões pelo mundo com a seleção brasileira e o Pelé com o
objetivo de cativar potenciais eleitores para assembleia da entidade.
“Para chegar ao poder, ele teria duas alternativas: uma delas seria conquistar
os presidentes das grandes confederações de futebol da Europa, o que seria uma
tarefa muito difícil. A outra seria investir maciçamente no apoio de dirigentes
esportivos dos países de terceiro mundo, ou seja, desafiar a hegemonia europeia
na Fifa. Havelange optou pela segunda. A estratégia foi, então, utilizar o
futebol brasileiro e seu astro maior, o ‘Rei Pelé’, como moeda de troca para a
obtenção de votos dos países de terceiro mundo”, conta Chaim.
Excursões
De acordo com o pesquisador, a prática da cobrança por parte da CBD para
promover amistosos da seleção no exterior não era novidade. Na época, o preço
praticado era de cerca de US$ 50 mil por jogo. Entretanto, para os jogos em que
o dirigente brasileiro pretendia usar para construir apoio político, esse valor
era reduzido para US$ 30 mil. “Como essa contava não fechava, era preciso
utilizar dinheiro da CBD para cobrir o déficit com hospedagem, alimentação,
transporte dos jogadores”.
Além das deficitárias excursões para o exterior, o dirigente brasileiro lançou,
em 1972, a ‘Taça da Independência’, um torneio comemorativo em alusão aos 150
anos da Independência do Brasil. As principais seleções do mundo foram
convidadas, mas as europeias, percebendo propósitos de Havelagne boicotaram a
competição. “Eles acreditavam que, mais que um evento comemorativo, o torneio
planejado por Havelange pretendia demonstrar para o mundo inteiro sua
capacidade de liderar a organização de uma competição esportiva de alcance
mundial, o que seria o passo final para consolidar seu prestígio político
perante seus pares de todo o mundo”, relata.
Com a desistência dos europeus, participaram da Taça da Independência apenas os
países cujos dirigentes já tendiam a apoiar o brasileiro para a Fifa, como os
sul-americanos, os árabes e um combinado de jogadores de diversos países da
África. “A África foi o principal lastro de votos do Havelange na eleição de
1974 à Fifa. Estimou-se que, dos 68 votos recebidos por Havelange no dia da
eleição, 30 eram oriundos do continente africano. Com a debandada de seleções
como Inglaterra, Itália e Alemanha, o apelo esportivo do torneio foi baixo e se
mostrou um fracasso financeiro, mas por outro lado gerou uma base de eleitores
importantíssima para o pleito da Fifa em 1974”, segundo Chaim.
Dívidas
Ernesto Geisel, presidente que sucedeu Médici, desembolsou US$ 4 milhões para
bancar o rombo que Havelange havia deixado na CBD. O regime militar iniciou investigações
na confederação esportiva entre 1971 e 1972 e descobriu que o dinheiro da CBD
financiava as excursões do Santos e da seleção fora do Brasil, além disso, por
imposição de Havelange, era cobrado um preço inferior ao oficial. De acordo com
o pesquisador, até mesmo Pelé, que havia celebrado uma aliança com o dirigente,
baixava em US$ 4 mil o valor de seu cachê em jogos internacionais do Santos que
interessavam ao candidato brasileiro à Fifa.
“É importante salientar que a CBD teve, a partir de 1970, o dinheiro oriundo da
Loteria Esportiva como principal fonte de financiamento. Foi com o dinheiro
dessa loteria que a CBD promoveu a maioria de suas atividades desde o início do
ano de 1970. Pelo fato de a Loteria Esportiva ser um programa do governo federal
para apoio ao esporte do Brasil, o mau uso de sua verba poderia render a
Havelange sérios problemas com o governo. O governo militar tinha plena
consciência do uso privado da verba pública que era feito pelo máximo dirigente
esportivo do país, mas mesmo assim não o repreendeu por isso.”
Toda a pesquisa foi realizada a partir de informações de jornais, como
a Gazeta Esportiva e Folha de S.Paulo.
Fonte: Opera Mundi
Comentários
Postar um comentário
comentário no blogspot