O Judiciário no Brasil, segundo Comparato (final)
Sede do STF, Brasília. Corte máxima do Judiciário aprovou união civil
gay, mas reconheceu golpe militar de 1964, mantém anistia aos torturadores e,
em desafio ao Estado laico, conserva, no plenário de seus ministros, crucifixo
cristão…
Há alternativas
para evitar que poder permaneça submisso às elites. Mudança crucial: STF não
pode manter condição de órgão impermeável à democracia e ao controle cidadão
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O Judiciário no Brasil, segundo Comparato (2)“Em todo o Brasil a Justiça pode ser comprada”, escreveu, no início do século XIX, visitante estrangeiro. Regra marcou ação dos juízes, do Império à República
Por Fabio Konder Comparato
As Reformas Necessárias
Por todo o exposto, é evidente que algumas reformas se impõem, a
fim de eliminar velhos defeitos de funcionamento das instituições de Justiça no
nosso país.
Eis as que, em minha
opinião, parecem mais importantes.
a) Ampliar e aprofundar
os instrumentos de controle do Poder Judiciário
Sem dúvida, a criação do
Conselho Nacional de Justiça representou um avanço no aperfeiçoamento do
sistema de controles da magistratura. A atual estruturação do órgão, no
entanto, padece de sérios defeitos.
Em primeiro lugar, ele
não é convenientemente estruturado para exercer suas atribuições em todo o
território nacional. O Conselho deveria contar com unidades auxiliares em cada
Estado da federação.
Ademais, o órgão é
majoritariamente formado por integrantes da própria magistratura sujeita a
controle. Por esta razão, ao que parece, o Conselho tem evitado
sistematicamente, mesmo nos casos de graves delitos, aplicar aos magistrados,
sobretudo os membros de tribunais superiores, a pena de demissão prevista no
art. 42, inciso VI, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
Assinale-se, ainda, que
os integrantes do Supremo Tribunal Federal não se submetem ao controle do
Conselho Nacional da Magistratura.
Na realidade, aliás, os
Ministros de nossa mais alta Corte de Justiça não estão sujeitos a
responsabilidade alguma no exercício de suas funções, quer jurisdicionais quer
administrativas. Esse status de total irresponsabilidade foi transposto da
Constituição norte-americana, a qual, nesse particular, suscitou a severa
crítica de Thomas Jefferson.
“Ao pretender
estabelecer três departamentos, coordenados e independentes, de modo que cada
um deles possa controlar os outros e ser por eles controlado (“that they might check and balance one
another”), a Constituição atribuiu a um só deles o direito de
prescrever regras para a atuação dos demais, e o fez justamente em favor
daquele que não é eleito pela nação e permanece independente dela. Pois a
experiência já mostrou que oimpeachment estabelecido pela Constituição não
chega a ser nem mesmo um espantalho”.[28]
Tampouco entre nós, esse
remédio constitucional inspira qualquer espécie de temor no seio do Supremo
Tribunal Federal. Isto, sem falar no fato de que os anais de jurisprudência de
todo o período republicano não registram caso algum em que os magistrados de
nossa mais alta Corte tenham sido acusados de atos criminosos e, em
consequência, constrangidos a responder a processo penal. Teríamos, no entanto,
a ousadia de afirmar que fatos semelhantes aos que suscitaram a ira de Dom
Pedro II em relação ao Supremo Tribunal de Justiça do Império jamais ocorreram
no período pós-monárquico?
Ora, é sumamente
constrangedor verificar que nem mesmo o cumprimento das disposições do
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal pode ser imposto aos seus
Ministros.
Tomemos, por exemplo, a
norma do art. 337, § 2º desse Regimento, referente ao processamento dos
embargos de declaração: “Independentemente de distribuição ou preparo, a
petição será dirigida ao relator do acórdão que, sem qualquer outra
formalidade, a submeterá a julgamento na primeira sessão da Turma ou do
Plenário, conforme o caso”.
Pois bem, em caso de
repercussão nacional e internacional, qual seja a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 153 sobre a lei de anistia de 1979, o relator dos
embargos de declaração ao acórdão publicado em maio de 2010, até o momento em
que escrevo estas linhas – ou seja, há quase 5 (cinco) anos! – apesar de várias
vezes solicitado pelo embargante, não submeteu o recurso a julgamento.
Outro exemplo de
flagrante desrespeito a norma constante do Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal ocorreu durante o julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 4.650, intentada pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, objetivando o financiamento empresarial de campanhas
eleitorais. Em sessão plenária realizada em abril de 2014, após o sexto voto
pela procedência da ação – ou seja, quando já se havia atingido a maioria
decisória – o Ministro chamado a votar em sequência pediu vista dos autos, e
até o início do ano judiciário de 2015 ainda não os havia apresentado para
prosseguimento da votação. Ora, o art. 134 do Regimento Interno dispõe,
textualmente: “Se algum dos Ministros pedir vista dos autos, deverá apresentá-los,
para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subsequente”.
Dispõe a Constituição
Federal (art. 5º, inciso XXV) que “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O que não é então permitido à lei será
por acaso tolerado individualmente a membros de nossa mais alta Corte de
Justiça? Ao que parece, por trás do antojo constitucional existe embuçado um
outro ordenamento, atribuindo a cada Ministro do Supremo Tribunal o poder
discricionário de suspender, indefinidamente, o processamento de um recurso, ou
o julgamento já iniciado no mérito de qualquer causa, segundo o seu próprio
alvitre.
b) Instituir
instrumentos de controle vertical, interno e externo, dos órgãos judiciários
Tradicionalmente, no sistema das assim chamadas democracias
representativas, tal como a nossa, os órgãos estatais não são obrigados a
prestar contas diretamente ao povo da antijuridicidade de seus atos ou
omissões.
Uma exceção a essa regra, entre nós, tem sido a ação popular. No sistema da Constituição de 1824, como visto, qualquer cidadão, na qualidade de substituto processual do povo, podia intentá-la contra juízes de direito e oficiais de justiça, “por suborno, peita, peculato e concussão”. A Constituição Federal de 1891, contudo, não reproduziu essa disposição.
A partir da Constituição
de 1934 (art. 114, alínea 38), qualquer cidadão tornou-se parte legítima para
pleitear em juízo a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao
patrimônio público. A Constituição vigente estende o cabimento dessa ação aos
casos de dano ao patrimônio de que o Estado participe, bem como “à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural” (art.
5º, inciso LXXIII). Mas essa ação é incabível contra atos ou omissões dos
órgãos judiciários.
Sem dúvida, é permitido
a qualquer cidadão denunciar perante o Senado Federal os Ministros do Supremo
Tribunal Federal pelos crimes de responsabilidade que cometerem (Lei nº 1.079,
de 1950, art. 41). Tal denúncia, porém, jamais ocorreu, nem se imagina que, se
um dia fosse feita, os Senadores da República tivessem a coragem de recebê-la e
processá-la.
Nessas condições, a fim
de cobrir as lacunas no campo do controle vertical dos membros da magistratura,
parece sumamente recomendável a criação de ouvidorias públicas perante os
órgãos de Justiça de todo o país, sem exceções.
Os ouvidores,
necessariamente bacharéis em direito, seriam eleitos pelo povo para o exercício
dessas funções por prazo determinado, podendo ser reeleitos. Eles teriam
competência para abrir e presidir inquéritos, quando houvesse suspeita de
violação pelo magistrado dos deveres e proibições expressos na Lei Orgânica da
Magistratura Nacional (artigos 35 e 36). Se as investigações oficiais
confirmarem a suspeita, os ouvidores proporiam, perante o Conselho Nacional da
Magistratura, a aplicação das sanções nela previstas. Na hipótese de o
inquérito concluir pela prática de crime, caberia ao ouvidor representar ao
Ministério Público para a abertura da ação penal cabível.
Ainda no nível do
controle vertical, é indispensável deixar expresso na Constituição que o Poder
Judiciário nacional tem o dever de cumprir as decisões tomadas pelas cortes de
justiça internacionais, quando o Estado Brasileiro aceitou oficialmente a elas
submeter-se.
De se lembrar, a
propósito, o Caso Gomes Lund e outros v. Brasil
(“Guerrilha do Araguaia”), no
qual o nosso país foi condenado unanimemente. A Corte Interamericana de
Direitos Humanos, prolatora da decisão em 26 de novembro de 2010, decidiu que
“as disposições da Lei de Anistia brasileira, que impedem a investigação e
sanção de graves violações de direitos humanos, são incompatíveis com a
Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir
representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem
para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou
semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos
humanos consagrados na Convenção Americana, ocorridos no Brasil”.
Ora, vários órgãos
judiciários brasileiros, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, têm se
recusado a cumprir essa decisão internacional; o que levou um partido político
a propor, em 15 de maio de 2014, a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 320, a qual recebeu parecer em grande parte favorável da
Procuradoria-Geral da República. A inexecução da mencionada sentença
condenatória foi, afinal, oficialmente reconhecida pela própria Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em Resolução de 17 de outubro de 2014.
c) Mudança na cúpula do
sistema judiciário
Deve ser lembrada, neste
tópico, a Proposta de Emenda Constitucional nº 275/2013, atualmente em
tramitação na Câmara dos Deputados.
Seu objeto precípuo é a
transformação do Supremo Tribunal Federal em uma Corte Constitucional,
modificando sua competência e a forma de nomeação de seus Ministros. Ademais, a
PEC em questão determina o aumento do número dos Ministros componentes do
Superior Tribunal de Justiça, bem como amplia sua competência.
A organização do Supremo
Tribunal Federal, com efeito, padece de graves defeitos, tanto na forma de sua
composição quanto no tocante ao âmbito de sua competência.
São reproduzidas, a seguir, as razões justificativas da
mencionada Proposta de Emenda Constitucional.
Em todas as nossas Constituições republicanas, determinou-se, segundo o modelo norte-americano, que a nomeação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal seja feita pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal.
Em todas as nossas Constituições republicanas, determinou-se, segundo o modelo norte-americano, que a nomeação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal seja feita pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal.
Nos Estados Unidos, o
controle senatorial funciona adequadamente, já tendo havido a desaprovação de
doze pessoas indicadas pelo Chefe de Estado para a Suprema Corte. Algumas
vezes, quando o Chefe de Estado percebe que a pessoa por ele escolhida não será
aprovada pelo Senado, retira a indicação.
No Brasil, ao contrário,
até hoje o Senado somente rejeitou uma nomeação para o Supremo Tribunal
Federal. O fato insólito ocorreu no período conturbado do início da República,
quando as arbitrárias intervenções militares decretadas por Floriano Peixoto em
vários Estados suscitaram o acolhimento, pelo Supremo Tribunal, da doutrina
extensiva do habeas-corpus, sustentada
por Rui Barbosa. Indignado, o Marechal Presidente resolveu, em represália,
nomear para preencher uma vaga na mais alta Corte de Justiça do país o doutor
Barata Ribeiro, que era seu médico pessoal.
Literalmente, não houve
violação do texto constitucional, pois a Carta de 1891 exigia que os cidadãos
nomeados para o Supremo Tribunal Federal tivessem “notável saber e reputação”;
o que ninguém podia negar ao Dr. Barata Ribeiro. Foi somente pela Emenda
Constitucional de 1926, e em razão daquele episódio, que se resolveu
acrescentar o adjetivo “jurídico” à expressão “notável saber”.
Mas essa qualificação
aditiva não mudou a prática das nomeações para o Supremo Tribunal Federal.
Perdura até hoje a hegemonia absoluta do Chefe de Estado no cumprimento dessa
atribuição constitucional. Tal não significa que as pessoas nomeadas não
estejam necessariamente à altura do cargo; mas o fato é que, sendo essa escolha
feita tão-só pelo Chefe de Estado, este cede facilmente a seus sentimentos
pessoais em sua decisão final, além de sofrer toda sorte pressões, em função da
multiplicidade de candidaturas informais.
No que diz respeito à
competência do Supremo Tribunal Federal, ocorre outra grave deficiência. A
Constituição Federal de 1988 atribuiu-lhe, como objetivo precípuo, “a
guarda da Constituição” (art. 102). Mas a consecução dessa finalidade maior é
simplesmente obliterada pelo acúmulo de atribuições para julgar processos de
puro interesse individual ou de grupos privados, sem nenhuma relevância
constitucional.
A fim de corrigir esses
graves defeitos no funcionamento do Supremo Tribunal Federal, a PEC nº 275/2013
determina seja ele transformado em uma autêntica Corte Constitucional, com
ampliação do número de seus membros e redução de sua competência.
A nova Corte seria,
assim, composta de 15 (quinze) Ministros,[29] nomeados pelo Presidente do
Congresso Nacional, após aprovação de seus nomes pela maioria absoluta dos
membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a partir de listas
tríplices de candidatos, oriundos da magistratura, do Ministério Público e da
advocacia. Tais listas seriam elaboradas, respectivamente, pelo Conselho
Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Transitoriamente, os
atuais Ministros do Supremo Tribunal Federal passariam a compor a Corte
Constitucional, com o acréscimo de mais quatro novos membros, nomeados como
acima indicado.
O novo sistema de
nomeação tornaria bem mais difícil do que é hoje exercer com êxito algum lobby em favor de determinada candidatura;
além de estabelecer, já de início, uma seleção de candidatos segundo um
presumível saber jurídico.
Nos termos da PEC nº
275/2013, a competência da Corte Constitucional seria limitada às causas que
dissessem respeito diretamente à interpretação e aplicação da Lei Maior,
transferindo-se todas as demais à competência do Superior Tribunal de Justiça.
De acordo com a Proposta
em foco, o Superior Tribunal de Justiça teria uma composição semelhante à da
Corte Constitucional, mas contaria doravante com um número mínimo de 60
(sessenta) Ministros; ou seja, quase o dobro do fixado atualmente na
Constituição. Os atuais Ministros do Superior Tribunal de Justiça seriam
mantidos, providenciando-se a nomeação dos futuros Ministros na forma do
disposto no art. 104 da Constituição Federal, com a nova redação constante da
proposta.
Conclusão
Em passagem famosa de O
Espírito das Leis, [30] Montesquieu, ao aceitar o ensinamento de
John Locke a respeito da necessária tripartição de poderes na sociedade
política, conclui: “Des trois puissances dont nous avons
parlé, celle de juger est en quelque façon nulle”. A assertiva
parece flagrantemente contraditória, pois como reconhecer no Judiciário um
Poder do Estado, e ao mesmo tempo negar-lhe todo poder?
Na verdade, a
incongruência verbal é superada quando se estabelece a distinção, que o próprio
Montesquieu fez, entre o poder estatuinte (la
faculté de statuer) e
o poder impediente (la
faculté d’empêcher).[31] Em Roma, por exemplo, os tribunos da plebe
não tinham poder algum de criar leis ou ordenar a prática de atos jurídicos;
mas a tribunicia potestas (sempre temida pelo patriciado)
compreendia, entre outras competências, a de vetar qualquer ato de titular de
cargo público, contrário aos interesses da plebe.
Com base nessa distinção
conceitual, percebe-se, desde logo, que ao Judiciário não compete nenhum poder
estatuinte de criar normas gerais ou organizar serviços públicos. Mas ele
possui no mais alto grau o poder impediente de corrigir e reparar, não apenas
os desmandos dos demais órgãos públicos (e também dos particulares dotados de
poder na sociedade), mas também em tese o de suprir as omissões
inconstitucionais dos órgãos estatais no exercício de suas funções.
Ora, para que isto
suceda plenamente é indispensável o estabelecimento de um sistema efetivo de
controle dos órgãos judiciários, como frisado acima. Ainda aí, importa lembrar
a sábia lição de Montesquieu: [32] “É uma experiência eterna que todo homem que
dispõe de poder” – e devemos acrescentar, todo órgão estatal dotado de poder,
mesmo constitucional – “é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra
limites”.
Saberemos um dia atender
a essa exigência fundamental para a verdadeira instituição do Estado de Direito
em nosso país?
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