Roger Waters: “Você pode estar vendo Israel com lentes cor de rosa” respondendo a carta de Caetano Velozo, na qual tentava justificar sua participação em show em Israel
Ouvido de mercador
Querido
Caetano,
Obrigado por tomar seu tempo para responder à minha carta. Diálogo é realmente
importante. Eu vou responder aos pontos que você levantou. Temo que você possa
estar vendo a política israelense com lentes cor-de-rosa. O fato é que, por
muitas décadas, desde a Nakba (catástrofe, expropriação do povo palestino) em
1948, as políticas coloniais e racistas de Israel têm devastado a vida de
milhões de palestinos.
O movimento BDS, ao qual estou pedindo que se junte, é um movimento global que
demanda liberdade, justiça e igualdade para os palestinos. Está aumentando
rapidamente por causa da crescente consciência internacional sobre a opressão
que os palestinos têm suportado nesses últimos 67 anos. O atual regime de
extrema direita de Netanyahu é apenas o último governo perpetrando atos cruéis
de injustiça e colonização. Mas isso não é um problema apenas da direita. Foi,
na verdade, o partido de esquerda Trabalhista que fundou o programa de
assentamentos ilegais e que também falhou em acabar com a ocupação das terras palestinas
e fazer a paz.
Em sua carta, você diz que Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir acreditavam em
Israel antes de morrer. Até pode ser, mas isso foi naquele tempo, talvez à
época eles não soubessem ou não compreendessem a brutalidade da ocupação das
terras palestinas e a subjugação de seu povo. No entanto, eu sei o seguinte, os
assoalhos respingados de vinho e café do Café Flores e do Les Deux Magots hoje
reverberariam com o som de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir revirando-se
em seus túmulos ao ouvirem seus nomes usados em vão e pregados ao mastro da
ocupação e opressão do povo palestino.
Você menciona o arcebispo emérito Desmond Tutu, ele está entre os que abraçam o
BDS, já que ele observou as ações de Israel e tem profunda empatia com o povo
palestino. Há, como ele apontou a você, um apartheid nos territórios ocupados
que é tão definitivo e desumanizante como o que havia na África do Sul do
apartheid, quando leis de passagem infames e racistas estavam em prática. Assim
como na África do Sul, palestinos e seus direitos legais são definidos por sua
origem racial ou religiosa. Você consegue imaginar uma coisa dessas no Brasil
ou na Inglaterra ou nos EUA ou na Holanda ou no Chile, ou? Não. Por que
não?
Porque é inaceitável, é por isso que não.
Caetano, se posso fazer uma pergunta, por que você não rejeitaria a
cumplicidade com tamanha injustiça agora, assim como você certamente teria
rejeitado o racismo branco contra a população negra da África do Sul nos anos
80?
Sua carta sugere que você acredita que seu futuro show em Tel Aviv pode ajudar
a mudar a política israelense. Eu sugeriria que essa é uma posição ingênua.
Infelizmente, não é apenas o governo israelense que precisa de uma mudança de
mentalidade. Pesquisas indicam que impressionantes 95% do público judeu
israelense apoiaram os bombardeios a Gaza em 2014 (561 crianças mortas), 75%
não apoiam um Estado palestino baseado nas longamente negociadas fronteiras de
1967, e 47% acreditam que os cidadãos palestinos de Israel devem ser destituídos
de sua cidadania.
Não, Caetano, tocar em Tel Aviv não vai mover o governo israelense ou a maioria
dos israelenses nem um centímetro, mas vai ser visto como sua aprovação tácita
ao status quo. Sua presença lá será usada como propaganda pela direita e proverá
cobertura e apoio moral às políticas ultrajantemente racistas e ilegais do
governo israelense.
É um dilema, eu sei, mas se você quer realmente influenciar o governo
israelense, você se unirá a nós na linha de piquete do BDS. Nós estamos tendo
um efeito poderoso, como você pode ver pela reação deles, os agressores vindo
com toda a força para tentar esmagar nossas vozes de dissenso e nos silenciar.
Nós não seremos silenciados, somos fortes, e, juntos, nós podemos ajudar a
libertar não só o povo palestino do jugo da opressão israelense, mas também o
povo israelense da opressão de seu próprio excepcionalismo e dogma, que é fatal
a ambos os povos.
Eu imploro a você para não proceder com sua participação em Tel Aviv. Em vez
disso, tome a oportunidade de visitar Gaza e Cisjordânia e ver por você mesmo o
que Sartre e Simone de Beauvoir não viveram para ver. Eu acredito que sua
resolução de tocar em Tel Aviv se dissolverá em um mar de lágrimas e
arrependimento.
Caetano, eu não conheço você, nunca nos encontramos pessoalmente, mas eu
acredito que você tem boas intenções e não carrego nenhum ressentimento. Se
você for a Tel Aviv, apesar de nossos apelos sinceros, e se você visitar Gaza
ou os territórios ocupados, você pode muito bem ter uma epifania. Se você o
fizer, por favor, nos procure, a todos nós, não só nas comunidades palestinas e
judaicas, mas todos nós em solidariedade no Brasil e em outros lugares, todos
nós no BDS por todo o mundo trabalhando por justiça e direitos iguais na Terra
Santa. Nós iremos abraçá-lo.
Eu lhe agradeço de novo por se juntar a essa conversa. Por favor, vá e veja as
coisas por si mesmo, mas sem se apresentar lá, sem cruzar a linha de piquete do
boicote palestino. Talvez a UNRWA (agência da ONU para os refugiados
palestinos) possa ajudar, eles certamente me ajudaram quando eu estava
procurando a realidade. Vá e veja por você mesmo, você não terá que usar sua
imaginação. A realidade é devastadora para além de qualquer coisa que você
possa imaginar. Obrigado,
Seu colega,
Roger Waters
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