Herois do Nosso Tempo - O prisioneiro que apavora o Império Americano (1)
Rara aparição: em 2014, Julian Assange recebe Noam Chomsky na
embaixada do Equador em Londres, e o abraça no terraço do edifício
Por que Washington teme quem revelou seus segredos e criou Wikileaks. As acusações esfarrapadas. Submissão da Suécia, dignidade do Equador. O 20/8, data crucial
Por John
Pilger ! Tradução: Inês
Castilho
Reportagem em duas partes
O cerco à Embaixada do
Equador, no bairro londrino de Knightsbridge, é tanto um emblema de injustiça
bruta quanto uma farsa cansativa. Há três anos, um cordão policial em torno do
prédio onde se refugiu Julian Assange não serve a outro propósito exceto ostentar
o poder do Estado. Já custou o equivalente a 65 milhões de reais. A presa é um
australiano que não foi acusado de crime algum, um refugiado cuja única
segurança é o aposento oferecido por um país sul-americano corajoso. Seu
“delito” é ter iniciado uma onda de revelações incômodas, numa era de mentiras,
cinismo e guerra.
A perseguição a Julian
Assange está para recrudescer, porque entra num estágio perigoso. A partir de
20 de agosto, três quartos da acusação dos promotores do caso contra Assange,
relativa a má conduta sexual em 2010 desaparecerão, quando expirarem as
limitações a sua defesa. Porém, intensificou-se a obsessão de Washington para
liquidar Assange e o WikiLeaks. Na verdade, é o poder vingativo de Washington
que representa a maior ameaça — como podem atestar Chelsea Manning e os prisioneiros de Guantánamo.
Os norte-americanos
perseguem Assange porque o WikiLeaks expôs seus crimes épicos no Afeganistão e
no Iraque: as mortes de dezenas de milhares de civis, que eles esconderam; e
seu desprezo pela soberania e leis internacionais, como demonstrado, de forma
brilhante, nos despachos diplomáticos vazados. O WikLeaks continua a expor a
atividade criminosa dos EUA: acabou de publicar documentos altamente sigilosos
interceptados — relatórios de espiões estadunidenses detalhando telefonemas
privados dos presidentes da França e da Alemanha, e outros altos funcionários,
relativos a assuntos políticos e econômicos internos da Europa.
Nada do que Assange fez
é ilegal sob a Constituição dos EUA. Como candidato à presidência em 2008,
Barack Obama, um professor de direito constitucional, louvou os denunciadores
como “parte de uma democracia saudável [e eles] precisam ser protegidos de
represálias”. Já em 2012, a campanha para reeleger Barack Obama presidente
gabava-se em seu site de ter perseguido mais denunciadores em seu primeiro
mandato do que todos os outros presidentes norte-americanos juntos. Antes mesmo
que Chelsea Manning tivesse ido a julgamento, Obama declarou-o culpado. Chelsea
foi depois sentenciada a 35 anos de prisão, tendo sido torturada durante sua
longa detenção antes de ser julgada.
Há poucas dúvidas de que, caso os EUA coloquem as mãos sobre
Assange, um destino semelhante o espera. Ameaças de prisão e assassinato de
Assange tornaram-se moeda corrente dos extremistas políticos nos EUA, depois da
calúnia absurda do vice-presidente Joe Biden, para quem o fundador do WikiLeaks
era um “cyber-terrorista”. Aqueles que duvidam do grau de crueldade que Assange
pode esperar deveriam lembrar-se do pouso forçado imposto ao avião do
presidente Evo Morales, da Bolívia em 2013, porque os EUA supuseram
erroneamente que ele transportava Edward Snowden.
De acordo com documentos
divulgados por Snowden, Assange figura numa “lista de alvos de caçada humana”.
As tentativas de Washington para colocar as mãos sobre ele, dizem despachos
diplomáticos australianos, é “sem precedentes em escala e natureza”. Em
Alexandria, Virginia, um júri secreto passou cinco anos tentando achar um crime
pelo qual Assange possa ser processado. Não é fácil. A Primeira Emenda da
Constituição dos Estados Unidos protege editores, jornalistas e denunciantes.
Frente a esse obstáculo
constitucional, o Departamento de Justiça dos EUA tramou acusações de
“espionagem”, “conspiração para cometer espionagem”, “conversão” (roubo de
propriedade do governo), “fraude e abuso de informática” (pirataria
informática) e “conspiração” em geral. A Lei de Espionagem prevê prisão
perpétua e pena de morte.
A possibilidade de
Assange defender-se nesse mundo kafkiano foi prejudicada pelo fato de os EUA
declararem seu caso segredo de Estado. Em março, um tribunal federal de
Washington bloqueou a divulgação de qualquer informação sobre a investigação de
“segurança nacional” contra o WikiLeaks, porque ela estava “ativa e em curso” e
seria prejudicada a “acusação pendente” contra Assange. A juiza, Barbara J.
Rosthstein, disse que era necessário mostrar “deferência apropriada ao
Executivo em matéria de segurança nacional”. Tal é a “justiça” de um tribunal
de fachada.
O papel de apoio nessa
farsa sinistra está na Suécia, e é interpretado pela procuradora Marianne Ny.
Até recentemente, Ny recusou-se a cumprir um procedimento europeu de rotina,
que exigia que ela viajasse a Londres para interrogar Assange e fazer o caso
avançar. Durante quatro anos e meio, Ny nunca explicou de forma convincente por
que razão recusou-se a ir para Londres; e as autoridades suecas nunca
explicaram por que se recusaram a dar a Assange garantias de que não iriam
extraditá-lo para os EUA sob um acordo secreto firmado entre Estocolmo e
Washington. Em dezembro de 2010, o jornal britânico The Independent revelou que os dois governos haviam
discutido sua futura extradição para os EUA.
Contrariamente à sua
reputação de bastião em defesa das liberdades, nos anos 1960, a Suécia
aproximou-se tanto Washington que permitiu as prisões secretas executadas pela
CIA e a deportação ilegal de refugiados. A prisão e subsequente tortura de dois
refugiados políticos egípcios em 2001 foi condenada pela Comitê contra a
Tortura da ONU, a Anistia Internacional e o Human Rights Watch; a cumplicidade
do Estado sueco está documentada em processo civil bem sucedido e em despachos
vazados pelo WikiLeaks. No verão de 2010, Assange tinha voado para a Suécia
para falar sobre revelações do WikiLeaks relativas à guerra no Afeganistão – em
que a Suécia tinha soldados sob comando dos EUA.
“Documentos divulgados
pelo WikiLeaks depois que Assange mudou-se para a Inglaterra”, escrever Al
Burke, editor da versão online doNordic News Network, um estudioso dos múltiplos riscos
que Assange enfrenta, “indicam claramente que a Suécia é submetida
consistentemente a pressão dos Estados Unidos, em assuntos relativos a direitos
civis. Existem todas as razões para temer que, se Assange fosse mantido sob
custódia pela autoridades suecas, ele poderá ser transferido para os Estados
Unidos sem a devida consideração de seus direitos legais.”
Por que razão a
promotora pública sueca não resolveu o caso de Assange? Muitos na comunidade
jurídica da Suécia acreditam que seu comportamento é inexplicável. Antes
implacavelmente hostil a Assange, a imprensa sueca já chegou a publicar
manchetes tais como: “Vá para Londres, pelo amor de Deus.”
Por que ela não foi?
Mais precisamente, por que ela não permite o acesso do tribunal sueco a
centenas de mensagens de SMS que a polícia extraiu do telefone de uma das duas
mulheres envolvidas nas alegações de má conduta sexual? Por que ela não as
passou aos advogados suecos de Assange? Ela diz que não está legalmente
obrigada a fazê-lo até que uma acusação formal seja lançada e ela tenha
interrogado o acusado. Mas então, por que ela não o interroga? E se ela o
fizesse, as condições que iria exigir dele e de seus advogados – que não
pudessem desafiá-la – tornariam a injustiça que comete uma quase certeza.
Por uma questão
processual, o Supremo Tribunal da Suécia decidiu que Ny pode continuar a
obstruir a divulgação crucial das mensagens de SMS. O tema vai agora para o
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O que Ny teme é que as mensagens SMS
destruam sua acusação contra Assange. Uma das mensagens deixa claro que uma das
mulheres não queria qualquer fazer qualquer queixa contra o fundador do
Wikileaks, “mas a polícia estava ansiosa para colocar as mãos nele”. Ela ficou
“chocada” quando eles o prenderam só porque ela “queria que ele fizesse um
teste [HIV].” Ela “não quis acusar JA de nada” e “foi a polícia que inventou as
acusações”. (No depoimento de uma testemunha, ela é citada ao dizer que tinha
sido “atropelada pela polícia e outros ao seu redor.”)
O Caso
Nenhuma das mulheres
alegou ter sido estuprada. De fato, ambas negaram ter sido estupradas e uma
delas chegou a tuitar que “não fui estuprada”. É evidente que foram manipuladas
pela polícia e seus desejos ignorados – seja o que for que seus advogados
possam dizer agora. Certamente são vítimas de uma história que atinge a própria
reputação da Suécia.
O único julgamento a que
Assange teve “direito” foi o da mídia. Em 20 de agosto de 2010, a polícia sueca
abriu uma “investigação de estupro”. Informou de imediato – e ilegalmente – aos
tabloides de Estocolmo que havia uma autorização para Assange ser preso pelo
“estupro de duas mulheres”. Essa foi a notícia que rodou o mundo.
Em Washington, o
secretário de Defesa, Robert Gates, disse sorridente aos repórteres que a
prisão “soa como boa noticia para mim”. Contas de tuiter associadas ao
Pentágono descreveram Assange como “estuprador” e “fugitivo”.
Menos de 24 horas
depois, a procuradora geral de Estocolmo, Eva Finne, assumiu a investigação.
Ela não demorou a cancelar o pedido de prisão, dizendo, “Não acredito que haja
nenhuma razão para suspeitar que ele cometeu um estupro.” Quatro dias depois,
encerrou todo o inquérito, dizendo: “Não há suspeita de crime algum”. O
processo foi arquivado.
Entra Claes Borgstrom,
um político de alto nível do Partido Social Democrata candidato às então
iminentes eleições gerais suecas. Depois de dias da demissão da procuradora
geral do caso, Borgstrom, um advogado, anunciou à mídia que estava
representando as duas mulheres e obteve a nomeação de uma nova promotora, na
cidade de Gothenberg. Era Marianne Ny, bem conhecida de Borgstrom, pessoal e
politicamente.
Em 30 de agosto, Assange
apresentou-se voluntariamente numa delegacia de política em Estocolmo e
respondeu a todas as perguntas que lhe foram feitas. Entendeu que aquilo
liquidava o assunto. Dois dias depois, Ny anunciou que estava reabrindo o caso.
Um repórter sueco perguntou a Claes Borgstrom por que razão o caso estava
prosseguindo, quando já havia sido arquivado, citando uma das mulheres que
disse não ter sido estuprada. Ele respondeu: “Ah, mas ela não é uma advogada.”
O advogado australiano de Assange, James Catlin, zombou, “Isso é um caso hilário…
é como se fossem inventando no decorrer da história.”
No dia em que Marianne
Ny reabriu o caso, o chefe do serviço de inteligência militar da Suécia – que
tem como acrônimo MUST – denunciou publicamente o WikiLeaks num artigo
intitulado “WikiLeaks [é] uma ameaça para nossos soldados.” Assange foi avisado
que o serviço de inteligência sueco, SAPO, havia sido avisado por seus pares
dos EUA de que os acordos de inteligência partilhados pelos EUA e Suécia seriam
“cortados” se a Suécia lhe desse abrigo.
Durante cinco semanas,
Assange aguardou na Suécia que a nova investigação seguisse seu curso. The Guardian estava prestes a publicar os
“Registros de Guerra” do Iraque, com base nas revelações do WikiLeaks – uma
publicação que Assange deveria supervisionar. Seu advogado em Estocolmo
perguntou a Ny se ela tinha alguma objeção a que ele deixasse o país. Ela disse
que Assange estava livre para partir.
Inexplicavelmente, assim
que ele deixou a Suécia – no auge do interesse da mídia e do público com as
revelações do WikiLeaks – Ny emitiu um mandado de prisão europeu e um “alerta
vermelho” da Interpol, normalmente utilizado contra terroristas e criminosos
perigosos. Difundido em todo o mundo, em cinco idiomas, o documento garantiu um
frenesi da mídia.
Assange compareceu a uma
delegacia de polícia em Londres, foi preso e passou dez dias na prisão de
Wandsworth, confinado numa solitária. Libertado sob uma fiança de 340 mil
libras esterlinas (cerca de R$ 1,85 milhão), foi marcado eletronicamente,
obrigado a se comunicar com a polícia todos os dias e colocado sob prisão
domiciliar, enquanto seu caso começava uma longa jornada até o Supremo
Tribunal. Ele ainda não havia sido acusado de nenhuma infração. Seus advogados
repetiram a proposta de ser interrogado por Ny em Londres, ressaltando que ela
havia lhe dado permissão para ele deixar a Suécia. Sugeriram um mecanismo
especial comumente usado na Scotland Yard para esse fim. Ela se recusou.
Katrin Axelsson e Lisa
Longstaff, da organização internancional Women Against Rape (Mulheres contra o
Estupro), escreveram: “As alegações contra [Assange] são uma cortina de fumaça
atrás da qual alguns governos estão tentando abater o WikiLeaks por ter
revelado, de forma audaciosa, seus planos secretos de guerras e ocupações com
seus estupros, assassinatos e destruição… As autoridades ligam tão pouco para a
violência contra as mulheres que manipulam alegações de estupro à vontade.
[Assange] já deixou claro que está disponível para ser interrogado pelas
autoridades suecas, na Grã-Bretanha ou via Skype. Por que eles estão se
recusando essa medida essencial na sua investigação? De que têm medo?”
Essa pergunta continuou
sem resposta à medida em que Ny recorria ao Mandado de Detenção Europeu (EAW,
em inglês), um produto draconiano e hoje desacreditado da “guerra ao terror”,
supostamente criado para capturar terroristas e o crime organizado. O EAW
desobrigou os Estado que pedem detenção de apresentar qualquer prova de crime.
Mais de mil EAWs são emitidos a cada mês; poucos têm a ver com potenciais
acusações de “terror”. A maioria é emitida para delitos triviais, tais como
multas e encargos bancários em atraso. Muitos dos extraditados enfrentam meses
de prisão sem acusação. Tem havido um número de chocantes erros judiciais, de
que os juízes britânicos têm sido profundamente críticos.
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