O longo percurso da Veja rumo à miséria jornalística.
Roberto Civita foi progressivamente ocupando a redação da Veja
Por Paulo Nogueira
A
Veja não chegou a este grau de miséria jornalística expressa no caso Romário de
repente.
Foi uma longa jornada.
O marco zero foi a substituição, no final dos anos 1990, de Mario Sergio Conti
por Tales Alvarenga na direção da redação.
Ali, Roberto Civita deixou claro que era ele que iria
editar a revista.
Foi uma ocupação de espaço progressiva. O primeiro diretor
da Veja, Mino Carta, tinha carta branca.
Em
seu contrato, estava acertado que os Civitas só comentariam a revista depois que
ela chegasse às bancas.
Era um acerto que refletia o espírito do patriarca da
Abril, Victor Civita, à época no comando, mas não o de seu filho e herdeiro,
Roberto.
VC
não competia com seus editores: era apenas um empreendedor. Jamais se teve na conta
de editor, ou jornalista, e muito menos um intelectual.
Com VC já se despedindo das funções executivas da Abril,
Roberto pressionou pela saída de Mino.
Queria mais espaço. E teve.
O segundo diretor da Veja, José Roberto Guzzo, representou
a entrada de Roberto nas decisões editoriais da Veja.
Era impensável um contrato nos moldes do de Mino.
Eu era um jovem repórter quando entrei na Veja, em 1980, no
início da Era Guzzo.
Já houvera uma transferência efetiva de poder, mas as
aparências eram mantidas.
RC raramente aparecia na redação. Nas noites de quinta,
véspera do fechamento, Guzzo descia da redação no sétimo andar do prédio da
Marginal do Tietê e ia para o sexto, onde ficava a sala de RC.
Ali, despachavam. Quase sempre Guzzo estava acompanhado de
seu adjunto, Elio Gaspari, jornalista marcante na Veja de então.
Uma alteração de forte caráter simbólico veio na Carta do
Editor. Mino, desde o início, a assinava com as iniciais MC.
Com
sua saída, Guzzo passou a assiná-la com JRG. Em suas férias de janeiro, você
encontrava as iniciais EG na carta. Era Elio Gaspari.
Não demorou muito e as iniciais desapareceram. A carta
deixou de ser assinada, embora Guzzo a escrevesse.
Era uma mensagem. Nela, estava a opinião da Abril, e não
dos diretores de redação da Veja.
Mesmo sem os poderes de Mino, Guzzo ainda tinha mais
autonomia do que RC desejava.
Guzzo, nos anos 1980, levou a Veja rumo a quase 1 milhão de
exemplares. Mas mesmo assim quando ele disse a Roberto que gostaria de sair da
direção este não opôs resistência nenhuma.
“Ele logo gostou”, me disse, anos depois, um diretor da
Abril que participou da sucessão de Guzzo. “Depois de alguns minutos, o Roberto
perguntou ao Guzzo quando ele gostaria de sair.”
Mario Sergio Conti, o sucessor de Guzzo, deveria ser um
passo a mais na tomada de poder por RC.
Mas, no meio do caminho, aconteceu o caso Collor.
Conti
se deixou inebriar. Achou que ele tinha
derrubado Collor. Passou a se comportar como uma celebridade jornalística, e
isso não estava no programa de RC.
O prédio todo comentou um dia em que RC, durante o caso
Collor, foi com amigos à sala de Conti para mostrar “seus meninos” em ação.
Conti falava ao telefone com Claudio Humberto, fonte na
história, e fez um sinal rápido para que RC e comitiva esperassem do lado de
fora da sala enquanto ele estivesse ao telefone.
Roberto não se livrara de Mino e deixara sair Guzzo para
enfrentar esse tipo de embaraço na frente de amigos.
De resto, a Abril, embora grande, era pequena demais para
dois derrubadores de presidente.
Conti estava tão liquidado quanto Collor.
O sucessor de Conti, Tales Alvarenga, um apagado editor de
carreira que subiu na hierarquia por inércia, significou um novo e enorme passo
para que Roberto reinasse sem contraponto na Veja.
Tive um papel nesta sucessão. Na época, eu era diretor de
redação da Exame. Durante um ano, em segredo, um pequeno grupo liderado por RC
discutiu quem substituiria Conti.
Começaram com vinte nomes, e chegaram a dois, finalmente.
Marcos Sá Corrêa e eu. Num encontro num hotel em Portugal (a Abril tinha
montado uma editora lá) o grupo chegou a um nome. O meu.
Quando Conti soube que era eu, vazou para os editores da
Veja. Foi um tumulto na redação.
Eu liderara um processo de renovação na Exame, e a velha
guarda da Veja temia que eu pudesse mexer nela.
Tales Alvarenga, então adjunto de Conti, decidiu se
demitir. Ele marcou uma conversa com RC na qual entrou demissionário e saiu
diretor.
Roberto percebeu, ali, que Tales, um burocrata pouco
brilhante, faria tudo que ele gostaria sem opor nenhum tipo de sombra.
Eu era uma incógnita para RC, neste sentido. Poderia ser
controlado? Não era esta exatamente minha fama na Abril, a de um cordeiro.
Tales fez, como diretor, o que RC esperava. O papel do
diretor de redação da Veja ficou ainda menor.
De Mino a Guzzo, de Guzzo a Conti, de Conti a Tales, o
diretor foi progressivamente minguando.
O apogeu deste processo se deu quando Tales, já perto dos
60 anos e desgastado fisicamente por muitos anos de entrega desvairada à Veja,
foi substituído.
O novo diretor, Eurípedes Alvarenga, foi a etapa definitiva
para a dominação de Roberto.
Ainda hoje no cargo, Eurípedes se prestou basicamente a
transformar em capas, títulos, textos e legendas as determinações do patrão.
Roberto já passava a se apresentar publicamente como
“editor” da Veja.
Seu sonho se realizara na plenitude, enfim, depois de um
longo percurso.
Esta era a boa notícia.
A má é que Roberto jamais foi um jornalista, um editor. Era
filho do dono, e ponto.
Sem contraponto de editores profissionais, a falta de noção
de Roberto se esparramou pelas páginas da Veja.
Quando as limitações editoriais de RC se somaram a seu ódio
por Lula, a Veja virou o que é hoje.
Numa aberração histórica, a revista publicou um dossiê que
atribuía conta no exterior a Lula, como agora no caso de Romário.
No meio do texto, estava escrito que a revista não
conseguira “nem confirmar e nem desmentir”. Mesmo assim, publicou.
Outro dia, ao ler o rumor de que a Abril estava prestes a
pedir recuperação judicial, brinquei com a turma do DCM. “Só faltava a gente
publicar isso dizendo que não conseguíramos confirmar ou desmentir.”
Mas é claro que esse tipo de coisa não faz parte de nossos
valores editoriais. Era apenas uma piada.
Mas para a Veja tal procedimento tem sido uma realidade,
com preço tenebroso para as vítimas dos assassinatos de reputação empreendidos
pela revista.
Tinha que dar no caso Romário.
A destruição da cultura editorial da Veja não poderia se
limitar ao PT e a Lula. Ela acabou se espalhando, como um câncer, por toda a
revista.
Quando
um redator-chefe manda que escrevam uma crítica laudatória de várias páginas
sobre seu romance, é porque só sobraram ruínas editoriais. (O autor desse
atentado contra a decência, Mario Sabino, levou suacultura jornalística para o site Antagonista, que
edita ao lado de Mainardi, outro símbolo da Veja desgovernada.)
A diferença, agora, é que o falso extrato de Romário foi
parar na polícia e na Justiça da Suíça.
No Brasil, não aconteceria nada. Apesar das provas
coletadas por Romário, a Veja continuou a agredi-lo.
Uma matéria na edição impressa que está nas bancas afirmou,
no título: “A conta não fecha, Peixe.”
Blogueiros
como Augusto Nunes e Felipe Moura Brasil também investiram contra Romário pouco
antes do pedido de desculpa.
É possível agora, com o caso chegando à Suíça, que os donos
da Abril comecem enfim a se preocupar com o passivo jurídico de uma revista sem
o menor compromisso com a apuração dos fatos.
Não existe, a rigor, surpresa na história. Você poderia
perguntar: por que a Veja não perguntou para o banco se Romário tinha mesmo uma
conta? Foi o que ele mesmo, Romário, fez.
Mas não.
Este tipo de cuidado básico no jornalismo foi exterminado
por Roberto Civita – com a contribuição milionária de Eurípides Alcântara.
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