Para historiadora da USP, elites brasileiras 'não evoluíram': 'ainda é muito parecido com 1964'
Marcha da Família com Deus pela Liberdade, movimento surgido em março de 1964 favorável à deposição do então presidente da República, João Goulart.
Maria
Aparecida de Aquino é professora titular aposentada da Universidade de São
Paulo (USP). Atualmente, colabora com o Programa de Pós-Graduação em História
Social da mesma instituição. Durante sua carreira, se dedicou ao estudo da
repressão política durante o período da ditadura civil-militar no Brasil,
especialmente a censura exercida sobre os veículos de comunicação.
Nesta entrevista realizada no fim de março, ela aborda os
motivos que levaram ao golpe de Estado em 1964, o papel exercido pela imprensa e
faz comparações com o atual cenário da política nacional. Segundo a
historiadora, há um elemento em comum entre passado e presente: “Uma das coisas
que persistem é o comportamento das elites. Ainda é muito parecido com o que
era em 1964.”
Quais
foram os motivos que levaram ao golpe de 1964?
A gente precisa levar em consideração que no golpe estão
presentes diversas forças dentro do Brasil, bem como existiu apoio internacional
- mais especificamente, apoio dos Estados Unidos. Quando a gente pensa quais
seriam os motivos que levariam essas forças internas e externas a embarcarem
numa aventura que foi o golpe de 1964 - aventura essa ilegal e ilegítima sob
todos os aspectos - existem razões bastantes diversas. Se tivéssemos que
centralizar essas razões eu diria que, basicamente, foi o programa de reformas,
as chamadas reformas de base do então presidente João Goulart, o elemento
detonador dessa questão. Essas reformas atingiriam todos os setores:
penetrariam na educação, no mundo agrícola, na indústria. Era uma proposta para
mudar o Brasil.
Mas
não se tratavam de reformas feitas em outros países? Por que aqui não foram
aceitas pela elite?
Sim, era um projeto reformista, não revolucionário, mas
“há elites e há elites”. Ela não aceitou porque não suporta partilhar, essa é a
característica da nossa elite. Não apenas da elite do nosso país. É uma marca
das elites dos países que eram considerados subdesenvolvidos.
Enquanto você tem nos países considerados avançados, como
Inglaterra, França, Alemanha, uma determinada caracterização das elites, na
medida em que não existe um distanciamento tão grande entre aquele que pertence
à elite e aquele que está alijado na sociedade, no Brasil e em outras nações
você tem uma distância imensa. Existem nações em que a diferença entre o menor
salário e o maior não ultrapassa dez vezes. Aqui não dá para mensurar quantas
vezes ultrapassa. Consequentemente esse distanciamento tão grande faz com que
essa elite nossa não seja tão permissiva.
Ela
não admite, ela não é democrática. Ela é cruel, mesquinha. No momento em que
ela diz “não podem se sentar à mesa”, ela está negando o próprio
desenvolvimento. Porque é do acesso dessas pessoas a bens que elas não teriam,
e a possibilidade que elas teriam que, inclusive, você tem o maior
desenvolvimento do país. Quanto mais gente consumindo, partilhando, mais o país
será desenvolvido. Nossa elite nega inclusive o desenvolvimento. O seu próprio
desenvolvimento. É predatória, talvez seja o melhor adjetivo para ela.
Hoje
se fala muito do papel de resistência à ditadura que os órgãos de imprensa
desempenharam. Como eles atuaram antes do golpe?
Têm um papel de protagonismo. Eles foram conspiradores.
Toda a grande imprensa estava na conspiração contra a democracia. Vai ser uma
das articuladoras mais importantes do golpe. O único veículo que não apoiou o
golpe e se manteve ao lado do regime deposto foi o jornal Última Hora, do Samuel
Wainer. Por conta disso, ele ganhou um inimigo total, que vai destruir o
jornal. Demora pelo menos quatro anos até ele perder a posse do jornal em 1968,
mas é destruído. Também ocorreu com o Correio
da Manhã, que apoia o golpe, mas que dois dias depois já está
contra, se colocando na oposição, já que percebeu o monstro que ajudou a criar.
Por conta disso, também será destruído, pelo mesmo grupo que comprou oÚltima
Hora.
Então
como se explica que parte da grande imprensa, após esse momento inicial, passa
a resistir à ditadura?
A maior parte dos órgãos de divulgação de notícias tem
uma tendência absolutamente liberal. Faz parte dos objetivos do liberalismo a
defesa da liberdade de expressão e de opinião. Então, a liberdade de imprensa é
um elemento central no interior da plataforma liberal. A imprensa tem essa
plataforma. Não é o tipo de coisa que eles queriam que acontecesse. Embarcou
numa terrível aventura, descobriu que a canoa era furada, num determinado
momento a canoa deles também fura. O exemplo lapidar é o jornal que eu estudei, O Estado de S. Paulo. Foi
um grande conspirador. Os Mesquita [família dona do jornal] assumem que estavam
na conspiração; dois anos antes do golpe eles já faziam parte das reuniões que
discutiam como seria o Brasil depois do apocalipse. Mas três anos depois do
golpe já está na linha de tiro, tanto que vai receber a censura. É talvez o
único órgão da grande imprensa, ao lado da revista Veja, que tem censura
prévia no interior da redação.
Com o
fim da ditadura, é possível dizer que há uma contradição entre democratização
política e a ausência de democratização da mídia?
Os grandes blocos de comunicação – o Brasil tem meia
dúzia, se chegar a tanto – você observa que não têm como ideal a defesa da
democratização das comunicações. Porque democratizar significa, ao fim, que
você dará liberdade para as pessoas se organizarem em pequenos jornais que
passariam a ter direito à luz do sol. Para a grande imprensa isso não
interessa.
Quando você pega “o grande jornal A” versus “o grande
jornal B” você vai ver manchetes idênticas, até a fotografia de capa muito
parecida. O mesmo para as grandes revistas, parece tudo a mesma coisa. É bom
esse mundo, né? Esse mundo entre “iguais” agrada a grande imprensa, o mundo da
diversidade não.
Na realidade se está na defesa do oligopólio. Há grupos
enormes que dominam fatias gigantescas do mercado das comunicações. É uma
defesa cooperativista. Não quer que outros entrem. Para eles o “mesmismo” é
bom. De forma alguma tem a ver com liberdade de imprensa. Liberdade de
imprensa, inclusive, seria lutar pela diversidade.
Você vai a uma cidade do Acre, lá tem uma concessionária
dos grandes veículos de comunicação. É isso que está em jogo. Por isso que está
em jogo, a perda de domínio. No Brasil, antes mesmo de se colocar em pauta, se
faz o discurso de que se está ameaçando a liberdade de imprensa.
Nesse
sentido, qual sua avaliação mais geral sobre o papel da imprensa no
fortalecimento da democracia?
Fortalece enquanto defensora das liberdades democráticas,
dentre elas a liberdade de expressão e imprensa. Tem um papel importante sim,
mas não se pode dizer que ela seja fiel à democracia no sentido de que a
democracia também significa conviver com o diferente, com o antagônico. O que
se vê hoje é a incapacidade de viver com o antagônico. “Vocês estão de um lado,
eu de outro, não quero diálogo”. Hoje cumpre um papel péssimo nesse sentido.
Eu fico muito chateada e entristecida quando eu comparo
as manchetes que antecedem o golpe de 1964 e o que se faz hoje na grande
imprensa. Só é comparável o que se faz hoje em relação ao governo. A grande
imprensa está fazendo isso de novo, não aprendeu com a censura, com o
fechamento, com o empastelamento, não aprendeu nada, repete a mesma coisa. Só a
semelhança com a destruição que hoje se faz do governo com o processo de
destruição de que foi alvo o governo de João Goulart.
Quando você acompanha as manchetes, as primeiras páginas,
os editoriais daquela época, eles são devastadores. Não é “queremos um Brasil
melhor”, mas sim “o que está aí não nos serve”, independentemente de ser
democrático ou não, então partiram para o ataque. Está acontecendo o pior que
pode ocorrer, não se está dando possibilidade de defesa para alguém que você
colocou no chão. Usa-se todo seu potencial e destrata cada um dos pontos do
governo. “Nada é bom”.
“O Brasil teve coisas negativas, mas cresceu o nível de
emprego”. O “mas cresceu o nível de emprego” é o mais importante, mas aparece
no rodapé da página. É clara a iniciativa para quem quiser ver e estiver
prestando atenção.
Em sua opinião, o
que permaneceu intocado mesmo com o fim da ditadura?
Hoje pouca coisa.
Uma das coisas que persistem é o comportamento das elites. Ainda é muito
parecido com o que era em 1964. As elites não evoluíram, não avançaram.
Enquanto o Brasil mudou muito, para melhor, um país que inclui muito mais
pessoas, e não só por causa dos últimos anos, vem num processo de inclusão
muito importante. A realidade que vivemos hoje está a léguas de diferença da
realidade de 50 anos atrás. Talvez a única que persista é uma atitude
semelhante das elites, infelizmente.
Então as elites
ainda se comportam do mesmo jeito?
Quando você
analisa as elites que estavam posicionadas em 1964 elas são claramente
golpistas. Elas querem a derrubada do regime democrático. Elas não sabem e não
conseguem conviver com o Estado democrático. Portanto, partem para sua
destruição e dissolução, que ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo.
Hoje você tem uma
elite que tem um pouco de receio. Ela tem um pouco de receio de dizer “para nós
acabou a brincadeira, a bola é minha e não brinco mais” e assumir uma
caracterização abertamente golpista. Não que ela não flerte. Não que ela não
seja capaz de embarcar em uma aventura terrível, pela forma como age, pelas
considerações que ela faz.
Um exemplo foi
quando a presidenta Dilma se elegeu. Ela teve uma capacidade eleitoral bastante
grande no Nordeste. Quando você olha as redes sociais falando dos nordestinos,
você vai ver a cara dessa elite. Ela é exatamente aquilo. Ela começa a dizer:
“é esse tipo de gente que elegeu, e nós somos melhores”. Ela tem condições,
desejo e vontade de flertar abertamente [com o autoritarismo].
Ou seja, hoje você
tem um processo ou uma proposta de inclusão social, que de uma maneira ou de
outra dá acesso a determinadas instâncias, desde a casa própria até o ensino
universitário, a pessoas que não teriam esse acesso.
Essa proposta
descontentava, como descontenta hoje. A proposta de inclusão. Se o Brasil vive
um momento de crise, se é que existe a crise, se ela não é fabricada pelos
meios de comunicação, essa crise se deve fundamentalmente a esse
descontentamento. São os mesmos grupos, a mesma raiz, que não aceita que as
pessoas que não têm nem acesso às migalhas passem a se sentar na mesa.
Como a senhora
analisa os protestos pedindo impeachment, os “panelaços”?
Quem bateu
panelas? Foi a grande elite? Eu sou capaz de entender o porquê. Tem o que
perder, e é só por isso que está batendo panela. Eu não tenho dúvida que essa
gente está em defesa de seus privilégios. Existiu a tentativa de puxar um fio
de corrupção que envolveria o PSDB, mas foi engavetado. Então por que se diz
que só existe um criminoso, o PT?
O Paulo Francis há
mais de vinte anos já falava de corrupção na Petrobras. Faleceu porque veio um
processo judicial que ele não conseguiu arcar. A corrupção é exclusiva desse
governo?
Mas o
conservadorismo, atualmente, não se resume à elite...
Uma coisa é
pensarmos no Brasil como um país jovem, que está vivendo um processo de
ascensão das chamadas classes médias; quanto a isso não há dúvida. Mas é um
erro achar que nesse mesmo processo progressivo também terá o mesmo processo no
sentido de qual leitura eles terão da realidade brasileira. Infelizmente, a
leitura que se tem, na média, é conservadora.
Isso se deve à
formação do Brasil, uma escolarização muito baixa. Teve o acesso das pessoas ao
ensino, mas é um ensino transformador? Quando se pega a escola pública, que
atende à vasta maioria, essa educação transforma sua mentalidade, prepara para
os novos tempos? Se tivesse uma imprensa que fosse muito mais plural, também
contribuiria para que tivéssemos esses debates ampliados.
O que você diria
para alguém que defende o retorno da ditadura?
Pensa, raciocina e
observa o que o regime militar produziu. Um mundo sem luz. A desigualdade se
ampliou enormemente nesse período, os ricos mais ricos e os pobres mais pobres.
É isso que você quer para a sociedade brasileira? O remédio para a sociedade
brasileira é uma aventura antidemocrática? Para combater a corrupção é
necessário acabar com a democracia?
Para pessoas que
pensam nisso, eu aconselharia a ver as contas da Transamazônica. Ou as contas
nunca fechadas da Ponte Rio-Niterói. Ninguém falou, porque naquele momento não
podia falar. Se você levantar, você vai trazer uma quantidade de coisas
irregulares que arrepia os cabelos de qualquer um. Hoje, graças ao caminho que
a sociedade brasileira trilhou, nós temos liberdade de falar. O autoritarismo
corre ao lado da irregularidade, porque ele abafa a irregularidade.
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