Pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia
Reconhecidas somente como esposas e mães, elas na verdade
plantam, colhem, produzem bens culturais. Fortalecidas, passam questionar a
condição de mulheres numa sociedade que não as enxerga.
Por Juliana
Dias
A mão que lavra a terra
é a mesma que transforma os alimentos que cultivou em doces, geleias e
compotas. Da dureza à doçura, as mulheres têm papel fundamental e estratégico
na agricultura. Os versos de Cora Coralina, doceira, poeta e agricultora,
partilham a ideia de que várias mulheres convivem numa só: “vive dentro de mim
a mulher cozinheira (…); a mulher do povo (…); a mulher roceira, (…),
trabalhadeira, madrugadeira, bem parideira, bem criadeira (…)”. Cora, também
conhecida como Cora Coragem, retornou a sua terra natal aos 67 anos para
começar a produzir doces. E foi aos 76 que começou a escrever. Militou em
diversas causas a favor da mulher, entre as quais o voto feminino. Sua história
é revivida repetidas vezes sem perder a força e graça na vida de mulheres do
campo.
É o caso de Dona Juju,
de 69 anos, moradora do município de Magé, Região Metropolitana do Rio de
Janeiro. De família de agricultores, nasceu e foi criada na roça. Já foi
cozinheira, costureira, garçonete, serviu cafezinho na rádio Tupi, onde até
fazia comentários no ar, mas foi na lavoura que encontrou motivação e prazer.
Ela conta das dificuldades em ser reconhecida como agricultora, tanto pelo
sindicato rural como pelas entidades governamentais de assessoria técnica. O
caminho para se manter na roça começou pelos doces. Numa cozinha comunitária,
junto com as amigas Lourdes e Guida, transformou sua colheita em geleias e
compotas.
Em 2008, vislumbrou a
chance de apresentar sua produção doceira na Feira da Agricultura Familiar e da
Reforma Agrária (Fenapra), promovida pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA), e que também tem o nome de Brasil Orgânico Sustentável. Foi a partir
deste evento que se aproximou do que ela chama de “articulação”, ou seja,
pessoas que incentivaram e auxiliaram a firmar os passos no caminho escolhido:
plantar e fazer doces. Uma dessas pessoas é Marcio Mendonça, coordenador do
programa de Agricultura Urbana da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia
. “Os doces fizeram sucesso, as agricultoras venderam muito e se sentiram
empoderadas por participar de uma feira nacional. Fazem referência até hoje a
esse ocorrido”, lembra Mendonça.
Atualmente, com a
cozinha Colher de Pau, ela produz mais de 23 tipos de doces e farinhas, como as
de berinjela e quiabo. “Se me tirar da roça, não sobrevivo. É lá que planto,
colho e cozinho”, diz Juju. A amiga Guida acrescenta que “vive aprendendo e
ensinando porque todo dia aprende alguma coisa”. O ponto de encontro dessas
roceiras e doceiras é na feira, outro espaço de convívio e reconhecimento de
suas capacidades e autonomia. Como feirantes, trocam receitas, ideias e saberes.
O relacionamento com os fregueses é estimulante, pois se sentem valorizadas.
“Sou grata a Deus. Já fiz curso de tudo e aproveito toda a chance que tenho. A
gente fica com vontade de fazer o melhor. A feira é um lugar de troca de
agricultura e cozinha”, diz Neuza Benevides, de Guapimirim. Cecília Cantalejo,
também de Guapi, reconhece que às vezes dá um desânimo, mas logo emenda na
conversa: “Deus me dá força. Na dificuldade a gente vai aprendendo, o cliente
vai gostando e a gente fica feliz”.
Roceiras, doceiras e poetas e gestoras do ambiente
O escritor amazonense
Aníbal Beça compara o fazer doce com o fazer poemas: “o fruto palavra/ de doce
mascavo/ repuxa viçoso/ no tacho da boca/ mel caramelado”. O poeta português
Agostinho Silva escreve que “a quem faz pão ou poema/ só se muda o jeito à mão/
e não o tema”. Por isso, as mulheres da roça, do doce, da feira, também são da
prosa e da poesia.
Mesmo em meio aos vários
papeis que exercem no dia a dia, essas guerreiras não perdem a força nem o
riso. E se são indagadas sobre o que é ser agricultora, as roceiras, doceiras e
feirantes descobrem-se poetas. A poesia também é para comer. Se a comida
alimenta o corpo, as palavras alimentam a alma.
Na opinião de Dona Juju,
as mulheres são mais conscientes, pois são mais sensíveis ao respeito e cuidado
com a natureza. Essa consciência é destacada pela presidente do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Maria Emília Pacheco.
Ela considera as mulheres como produtoras de bens, gestoras do ambiente e
portadoras de uma lógica não destruidora da natureza. Com isso, levantou a
necessidade de empoderar as mulheres. Ela que também faz parte do núcleo
executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é autora dos primeiros
textos que reivindicam maior atenção à participação feminina na agroecologia no
Brasil.
Em 1997, Maria Emília
atentou para a invisibilidade do trabalho da mulher na agricultura e a
importância das outras atividades produtivas que elas desempenham na família,
tais como os quintais, a criação de animais domésticos e demais tarefas
consideradas secundárias em relação às culturas comerciais. A então presidenta
do Consea propunha que os projetos agroecológicos evidenciassem os espaços de
produção em que as agricultoras assumiam papel principal, reconhecendo-as como
sujeitos produtivos.
De acordo com Renata
Souto, assessora técnica da AS-PTA que está à frente do trabalho com as
mulheres na região metropolitana do Rio de Janeiro, o programa de Agricultura
Urbana foi iniciado nos quintais das mulheres em 1999. A proposta consistia em
incentivar o uso dos quintais domésticos e outros espaços dentro da comunidade
para a prática da agricultura urbana. “O quintal é o lugar da segurança
alimentar, da tradição, da complementação da renda da família e de estratégias
de conservação da biodiversidade”, diz Renata. No lugar onde florescem frutos e
folhas que alimentam e cuidam de suas casas, florescem as oportunidades para
superar as condições desiguais das relações sociais de gênero.
Marcio Mendonça conta
que no início a participação foi predominantemente feminina. “As mulheres têm
maior envolvimento com prática da agricultura nos quintais”, afirma. Segundo
ele o quintal, também conhecido como arredor de casa ou terreiro, é domínio
delas, expressão de sua criatividade e resistência. “Há muitos casos em que
elas são as principais responsáveis pela manutenção econômica da família. Em
especial, naqueles em que a família não segue o padrão homem-mulher- filhos.
Muitas são as chefes de família que cuidam sozinhas das crianças. Em outras
situações, vivem oprimidas dentro da própria casa na sociedade machista. As
mulheres encontram nos quintais o espaço para a externalização dos seus
sentimentos”, afirma.
Roceiras, doceiras,
poetas, gestoras do meio ambiente e empoderadas
O feminismo é a base
deste trabalho desenvolvido pela AS-PTA, que tem como ponto de partida as
experiências cotidianas, de acordo com a assessora Renata. Essa metodologia é
utilizada na região Metropolitana do Rio de Janeiro e no Polo da Borborema, na
Paraíba, onde a organização também atua. “O despertar é no dia a dia e
consideramos que dar visibilidade às experiências é o caminho inicial, que abre
as portas para todas as questões que o feminismo traz. O processo de formação é
dinâmico e contínuo”. Renata aponta a necessidade de construir e fortalecer os
espaços de diálogo e auto-organização, de onde emergem temas comuns às
mulheres, próximos de sua realidade, que abrem caminho para a construção da
autonomia e o enfrentamento dos desafios.
Na região metropolitana
do Rio de Janeiro, as cozinhas e as feiras agroecológicas apoiadas pelo Projeto
Alimentos Saudáveis nos Mercados Locais, com o Patrocínio da Petrobras por meio
do programa Petrobras Socioambiental, têm cumprido este papel de espaço de encontro
e reflexão onde se apura a dimensão social e política da mulher na agricultura;
onde elas experimentam a autonomia de comercializar o que produzem diretamente
com o consumidor e obter renda da atividade. “Nos espaços de comercialização,
elas cultivam e processam os alimentos e se reinventam. Levam a diversidade de
suas roças, a criatividade com que cuidam de seus quintais, trocam experiências
e tornam visível o seu trabalho”. Daí a importância dos encontros coletivos com
as mulheres, partindo da experiência delas para tratar os problemas invisíveis
ou ocultos.
E mulheres que marcham,
sempre em frente
Na Paraíba, quem está à
frente do trabalho com mulheres é Adriana Galvão, assessora técnica da AS-PTA,
que reforça o viés metodológico da organização para atuar com a complexidade
envolvida na presença da mulher no campo. “Essa opção metodológica fez com que
construíssemos na Paraíba um forte movimento de mulheres. Em março desse ano,
saímos nas ruas do município de Lagoa Seca com mais de 5 mil mulheres na Marcha pela
Vida das Mulheres e pela Agroecologia”, destaca. A marcha é uma atividade
realizada desde 2010 pelo Polo da Borborema, um fórum de sindicatos e
organizações da agricultura familiar que congrega 14 municípios e mais de cinco
mil famílias do Agreste da Borborema, que conta com a assessoria da AS-PTA.
Na Paraíba, o trabalho
teve início em 2002 a partir de um diagnóstico sobre o trabalho produtivo das
mulheres, quando se construiu o conceito do Arredor de casa. Em 2003, o Polo da
Borborema constituiu a Comissão de Saúde e Alimentação, espaço onde se passou a
organizar o trabalho produtivo e a participação social e política das mulheres.
Adriana comenta que a instituição passou a indagar como a agroecologia tem
influenciado na superação das desigualdades. E em 2007, a AS-PTA passou a
problematizar junto à rede de agricultoras-experimentadoras sobre as desigualdades.
“O propósito é que elas se reconheçam em suas capacidades, aprimorando suas
habilidades produtivas.
O quintal, espaço antes
invisível, passa a ser visto como um local produtivo e de visibilidade. Mais
fortalecidas, passam também a problematizar sua vida e sua condição como
mulher”, explica. Os encontros regulares com a Coordenação Ampliada do Polo
também possibilitam momentos de formação e problematização das desigualdades.
“Utilizamos instrumentos pedagógicos como a literatura de cordel, vídeos, teatros,
vídeo-novelas e dinâmicas, buscando desnaturalizar as desigualdades e todas as
formas de violência contra a mulher, com foco na justiça social”, esclarece a
assessora.
Destaca-se ainda a
atuação da AS-PTA no Comitê Ana Alice, que foi constituído para o enfrentamento
da violência contra a mulher. O nome do comitê é homenagem a uma jovem
militante que foi estuprada e assassinada em 2012, crime que será julgado no
dia 18 de agosto próximo. A participação em outras frentes de luta renova o
ânimo e as forças. Por exemplo, o Polo participou da Marcha das Margaridas, das
trabalhadoras rurais em favor do desenvolvimento sustentável com “justiça,
autonomia, igualdade e liberdade”, que ocorreu entre os dias 11 e 12 de agosto,
em Brasília.
A assessora sinaliza as
mudanças que vêm ocorrendo, entre as quais, a ocupação feminina nos 14
sindicatos que compõem o Polo, chegando a ter participação de 50% de homens e
50% de mulheres na Coordenação Executiva do Polo. “Percebemos que as lideranças
masculinas estão sensibilizadas. Mas é um processo de luta contínuo. A
revolução não está pronta. Temos muitos avanços, ora retrocessos, mas a marcha
segue em frente”, declara. Para Marcio, coordenador do programa de Agricultura
Urbana, a visão machista prevalece na sociedade, apesar dos avanços
conquistados. “Aos poucos é preciso que as mulheres ocupem mais espaços nas
associações, nas igrejas, nas cooperativas. É preciso que os homens reconheçam
o papel das mulheres e que as próprias rompam com as relações de subjugação, de
exploração, e de falta de reconhecimento”, complementa.
Adriana acrescenta a
experiência da última Marcha que foi capaz de envolver no processo de
preparação a Secretaria de Educação para formação de professores da zona rural.
Com isso, levam-se para a sala de aula os temas pertinentes à realidade das
agricultoras. Outra parceria importante é com o Centro de Referência da Mulher
para encaminhar casos de violência doméstica. “Como resultado claro desse
trabalho, as mulheres passam a enxergar que elas têm direitos e não mais
aceitam uma vida marcada pela violência”, conclui.
Com base em pesquisas
sobre o campesinato, a presidenta do Consea, Maria Emília, demonstrou que a
distribuição do produto do trabalho tende a ser mais igualitária nos sistemas
agrícolas, como o modelo agroecológico, em que a mulher participa das decisões
do planejamento e da forma de dispor os produtos. Ela também apontou evidências
de que quando se amplia a geração de renda familiar com presença feminina,
aumenta as opções estratégicas, criando-se, assim, condições para que elas
tivessem maior autonomia e poder de decisão.
De acordo com a
pesquisadora em desenvolvimento sustentável, Emma Siliprandi, a invisibilidade
feminina na agricultura familiar está vinculada às formas como se organiza a
divisão sexual do trabalho e de poder no modelo de produção industrial, em que
o homem comanda a unidade produtiva. Embora as agricultoras trabalhem no
conjunto da atividade (preparo do solo, plantio, colheita, criação de animais,
transformação de produtos e artesanato), só são reconhecidas pelas atividades
consideradas extensão do seu papel de esposa e mãe (preparo dos alimentos,
cuidado com os filhos). E, ainda assim, como status inferior, não tem o mesmo
peso das ocupações masculinas.
O reconhecimento da mulher
na produção de alimentos vem sendo reivindicada e discutida com maior
abrangência tanto nas organizações da sociedade civil, entidades
intergovernamentais e Estado. Em junho de 2015, foi realizado o Seminário Regional
de Agroecologia na América Latina e Caribe, que resultou num documento
oficial com compromissos de fortalecer a produção familiar, camponesa e
indígena, além da segurança alimentar por meio da agroecologia. As mulheres e
os jovens foram apontados como os guardiões da biodiversidade, especialmente
das sementes e das raças crioulas.
Essa é uma luta
constante, em que as mulheres, tal como escreveu Cora Coralina, vão descobrindo
as muitas mulheres que convivem numa só. É a roceira, a doceira, a gestora do
ambiente, a empoderada, a militante, a engajada, a guerreira, a batalhadora e
vencedora, que estão sempre em marcha.
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