Atualmente, vivemos a intensificação das lutas sociais e
políticas no Brasil. Não quero dizer com isso que há uma “luta de classes” em
curso (ao modelo marxista), mas que atingimos a esta altura certo nível de
conflito social que pode obstaculizar o bom funcionamento das nossas
instituições democráticas e a própria possibilidade de cooperação social em
torno de um projeto comum de sociedade.
Olhando o atual cenário
brasileiro, há quem pense estarmos vivendo o auge da democracia representativa
desde o fim do regime militar. Por outro lado, há os que, preocupados com as
instituições, enxergam o atual momento como o atrofiamento da democracia face
aos problemas endêmicos.
Se observado do ponto de
vista da coletividade (da convivência em sociedade), o que se percebe é um
intenso embate de ideias, crenças e valores (doutrinas). Em outras palavras,
uma sociedade cada vez mais pluralizada. Diante disso, como é possível
estabelecer critérios mínimos de cooperação social, isto é, como manter o
funcionamento da sociedade e, em última instância, da própria pluralidade?
A adesão absoluta a
doutrinas da Verdade – sejam elas econômicas ou políticas ou morais – pode
sufocar o convívio em uma sociedade democrática, visto que, no auge do
conflito, os pontos que poderiam ser amiúde comuns (a intersecção de certos
interesses) são sobrepujados por preceitos conflitantes e, eventualmente,
antagônicos, a saber: o papel da economia no Estado (doutrinas econômicas); a
interferência da religião na política (doutrinas morais); e as formas de
organização e desenvolvimento do Estado (doutrinas políticas).
Vejamos,
em síntese, o cenário político brasileiro desde as manifestações de junho de
2013 até hoje.
Cresce cada vez mais a quantidade de ideias, crenças e valores
que, outrora, foram sufocados pelo projeto econômico-político-moral vencedor. O
discurso “nós e eles”, que esconde a vontade de poder, natural em toda relação
humana, não encontra mais suporte institucional. A base social que sustentava
tal discurso pulverizou-se entre as mais variadas doutrinas. Uma vez esgotado o
projeto, a disputa em torno do poder aumentou significativamente.
A corrida pelo poder
desencadeou um pluralismo à brasileira (não cooperativo) e evidenciou uma
sociedade dividida por doutrinas que, a primeira vista, não dialogam. O aumento
da bancada religiosa possibilitou a criação de barreiras dogmáticas na já conturbada
agenda política, uma mistura que a história tratou de mostrar problemática.
Alguns são os exemplos: a questão das denominações do termo “família”; a adoção
de crianças por casais homoafetivos; e, igualmente, a rejeição à ideia de se
discutir o aborto. No campo econômico, diverge-se em torno da liberdade do
mercado e do tamanho do Estado, com resultados práticos no ajuste de Levy.
Adjacente a isso, os movimentos de base cedem lugar aos “neomovimentos”
populares, que surgiram exatamente do vazio de representatividade política.
Da pluralidade, que
ainda não coopera, alguns temas alçam voos mais altos, embora não
necessariamente sejam urgentes ou relevantes, movimento este entendido como
resultado da queda de braço na low politic. São eles: a redução da maioridade
penal; o estatuto da família; a reforma política; e a corrupção. Priorizar tais
temas é, portanto, abrir mão de outros tantos.
Depreendem-se deste
engodo duas saídas. A primeira, avessa à pluralidade: a homogeneização da
sociedade tal e qual representada pela ala dos que reivindicam a volta dos
militares. A segunda, favorável à pluralidade: o aprofundamento da
heterogeneidade social a partir do aperfeiçoamento da política – e dos partidos
políticos – como meio para atingir fins coletivos; organizar os desejos
conflitantes diante de escassos recursos.
A preservação da
sociedade plural e organizada implica, ademais, na aceitação racional das
crenças e dos valores de outrem. Para isso, é preciso, em primeira instância,
certa independência em relação às doutrinas, ou seja, um espaço para o “livre
pensar” ou para o “pensamento crítico”; colocar os seus valores em xeque;
escapar dos “valores superiores”. Em um segundo momento, aceitar a pluralidade
e quiçá se adaptar às doutrinas divergentes, com o propósito de um projeto
comum: por exemplo, a melhoria na educação. Percebe-se que, a despeito da
pluralidade conflituosa, o tema educação é consenso em nossa sociedade, embora
o caminho a ser percorrido não o seja.
Da qualidade de
sociedade cada vez mais pluralizada, intensificada nas crenças
político-econômico-morais, apreende-se a capacidade racional da cooperação
social em torno de um projeto público (educação, saúde e etc.). É condição sine
qua non fazer
escolhas e aceitar que a soma destas nem sempre resultem no que eu (cidadão)
vislumbrei como melhor/verdadeiro. Em outras palavras, em uma democracia, a
minha vontade nem sempre se conjuga na vontade da maioria, ainda que na
pluralidade atual não seja mais possível sacrificar minorias.
A coletividade desejável
supõe a assinatura de um pacto mínimo; tornar possível uma coletividade baseada
na cooperação social, independentemente da sua posição social ou do seu
interesse particular. Um projeto de nação em termos não vulgares representa a
própria possibilidade de divergir; a condição de retirar do conflito a
cooperação. Em última instância, é a liberdade que está em jogo.
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