Nas telas, Pequeno Príncipe questiona mercado e família
Ao traduzir para vida quotidiana valores do livro de Saint-Exupéry, animação de Mark Osbourne mostra-se ácida, diante de mundo marcado por egoísmo, cálculo e alienação
À minha filha Kekel e minha mulher Nadja
Por Lais Fontenelle
“O problema não é crescer, mas esquecer”, ensina o Pequeno
Príncipe. Quando tinha oito anos sofri a primeira grande perda em minha vida.
Meu primo mais novo, na época com três anos, foi levado por uma doença comum na
infância, mas que para ele foi fatal. A catapora não marcou e feriu somente sua
pele, mas toda a história de nossa família. Pedro nos deixou sem palavras e com
saudades. Tinha personalidade forte, como todas as crianças da família, os
cabelos de um loiro quase branco e uma risada tão contagiante como a do Pequeno
Príncipe – personagem que me acolheu nesse momento de dor e me guiou em
profundos ensinamentos baseados em valores humanos e não materialistas. Hoje,
posso olhar para o céu e ouvir as estrelas para não esquecer de Pedro, do seu
sorriso e da infância que compartilhamos.
O livro O
Pequeno Príncipe, do francês Antonine Saint-Exupéry, emociona e
ajuda as pessoas a entender a essência da vida há mais de 70 anos. Foi
traduzido para cerca de 250 idiomas e dialetos, e vendeu mais
de 150 milhões de cópias em todo o globo. É há meio século o livro infantil
mais vendido no Brasil, e somente no ano passado vendeu mais de 140 mil
exemplares. Seu autor faleceu um ano após o seu lançamento, em 1943, numa
missão da segunda Guerra Mundial, sem poder dimensionar o alcance da obra.
O livro conta a singela
história de amizade vivida por um aviador e um principezinho que mora no
longínquo asteroide B612 e ama uma rosa. Quando o príncipe sai em viagem pela
Terra, esbarra com o aviador encalhado num deserto e ali compartilham histórias
e ensinamentos sobre as dores e as delícias de ser humano. Seus ensinamentos tratam
do que é realmente importante nessa vida fugaz que levamos na Terra. Contemplar
as estrelas, cativar amigos, amar e respeitar animais e plantas, cooperar mais
do que competir, olhar e escutar mais do que assistir, trocar mais do que
acumular. Bem diferente do que a sociedade de consumo quer nos fazer crer.
A animação homônima ao livro chegou às telas esse mês, dirigida
pelo americano Mark Osbourne, e traz uma nova e igualmente bela narrativa para
esse clássico da literatura infanto-juvenil. Desta vez quem fica amiga do
Aviador, hoje um velhinho, é uma garotinha de olhos curiosos, abandonada pelo
pai e confinada pela mãe numa casa cinza. Com tarefas obsessivamente calculadas
por uma mãe ausente, a menina tem uma rotina espartana durante as férias de
verão, para conseguir vaga numa escola de renome que promete futuro de sucesso.
Sem tempo para dedicar-se ao ócio, aos amigos, ao contato com a natureza ou ao
exercício de sua criatividade, a menina experimenta os dias sozinha e assim vai
perdendo a essência da infância, até ser resgatada pelo vizinho excêntrico – um
velhinho aviador que lhe conta a história do Pequeno Príncipe e com quem acaba
por passar suas férias.
Seus pais não têm tempo
de cuidar dela – como muitos, atualmente, que terceirizam os cuidados dos
filhos para babás, creches ou tablets. O pai da protagonista vive longe,
trabalha muito e mantém contato com ela somente no aniversário – por meio de um
mesmo presente que envia todo ano, com um cartão que nada diz e ela tristemente
coleciona. A mãe também trabalha demais e não a escuta, adultizando essa menina
para ser seu par – e dizendo que faz isso para lhe garantir o futuro, sem
perceber que assim lhe arranca o presente. Triste retrato da infância de hoje,
abandonada e afastada de sua essência em meio a tantas atribuições do universo
adulto.
Fui assistir ao filme em
família e fiquei feliz ao perceber que a amizade e os ensinamentos
compartilhados entre o adulto e a criança ainda emocionam todas as gerações. A
meu lado um pai com a filha no colo derramavam lágrimas que mostram haver saída
para a vida cinza e planejada que a maioria de nós experimenta nos grandes
centros urbanos. O filme emociona e faz refletir sobre os valores que
aprisionam as crianças contemporâneas numa infância igualmente cinza e
solitária, com a agenda repleta de atividades supostamente desempenhadas para
lhes garantir um bom lugar na Terra – a mesma que estamos destruindo pelos
padrões de consumo e produção que adotamos.
Aparentemente perdidos
na árdua e deliciosa tarefa de cuidar dos filhos, pais e mães da atualidade
acabam recorrendo às promessas que o mercado lhes oferece. Tenho sido com
frequência chamada a falar nas escolas sobre o tema da desaceleração na rotina
das crianças, e minha fala debruça-se sobre a importância de respeitarmos a
infância e seu tempo: de encantamento e conexão, em que contemplar e imaginar
são atividades essenciais na construção de significados para o mundo real.
É preciso desacelerar e
desconectar para entrar em contato com a criança que fomos e com as que estão
ao nosso lado. Rever nossas urgências e o que é realmente importante para
promover uma infância plena. Crianças não são feitas para ser criadas em
bolhas. Elas precisam se relacionar, cair para aprender a levantar, perder para
aprender a sonhar e elaborar. Precisam de histórias vividas e narradas para se
lembrar. E não precisam, para ser felizes, de objetos e atividades que as
cansem para desligar-se à noite. Não precisam de um coach para
aprender a brincar – sim, parece que estes personagens existem!
Crianças precisam de
muito pouco para crescer de forma saudável e se tornar adultos melhores.
Precisam de tempo e espaço para brincar e se relacionar entre pares, com
adultos e com a natureza. E nós, adultos, temos o dever e a responsabilidade de
oferecer a elas o que é realmente essencial – embora invisível aos olhos.
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