SOMOS MILHÕES DE CUNHAS
por Izaías Almada
Penso
que há bons anos não via uma frase sintetizar tão bem o estágio político e
civilizacional de boa parte da sociedade brasileira. A faixa estendida durante
uma das últimas manifestações contra o governo, mirando alvo esquerdista – mais
especificamente os governos do ex-presidente Lula, da atual presidente e o
Partido dos Trabalhadores – foi de uma precisão mais que cirúrgica, e porque
não dizer profética, sobre as entranhas de um país que, desde a sua
colonização, continua a se revelar perverso, covarde e hipócrita. Atirou no que
viu e acertou no que não viu. A cordialidade brasileira é um mito para inglês
ver.
E
não adianta alguém dizer que estou generalizando, que é um exagero, porque é
exatamente isto o que estou fazendo: generalizando. Chega de bom mocismo,
hipocrisia e do jogo do faz de conta. O vandalismo e as frases excretadas em
folhetos atirados no funeral de ex-presidente da Petrobrás José Eduardo Dutra
há poucos dias não me deixam mentir.
Saímos
das margens da ditadura de fato para nadarmos até a outra margem, a da
democracia consentida, feita de uma justiça mais do que cega e de discursos
ocos de justiça social. De análises feitas em cima da perna e de uma
inacreditável esperança de “união do país” pela democracia, dos lugares comuns
como “o Brasil é maior que a crise que enfrenta” e coisas do gênero.
Somos
uma mistura de cidadãos como o “Marrudo” e um pouco como o Ernesto, fiscal da
prefeitura. Querem ver?
01
– Marrudo, cujo nome verdadeiro ninguém sabia ao certo, era exímio
caranguejeiro. Tão exímio que, na sua última proeza, conseguiu esconder numa
velha garagem da zona norte da cidade um Nissan Sentra, ano 2014, sem que os
vizinhos dessem por isso. Esperou três meses para tirar o carro da garagem,
tendo tomado o cuidado de trocar-lhe as placas. Por experiência própria e até
por discretos contatos em delegacias de bairros sabia ser três meses o tempo
mais do que suficiente para o dono do veículo surrupiado receber o dinheiro do
seguro.
No
dia de estrear o novo carrão, Marrudo acordou cedo, engoliu o café às pressas e
foi até a papelaria comprar o adesivo especial que escolhera para colocar no
vidro traseiro do carro. Aí pelas dez e meia da matina, com o coração
palpitando, ligou a máquina, abriu a porta da garagem com cuidado e saiu sem
muito estardalhaço de casa. No vidro de trás o adesivo vistoso refletia a confiança
e a fé de seu novo dono: PRESENTE DE DEUS.
02
– Tão logo se aposentou, o “seu” Napoleão, com a ajuda da mulher Diná, montou a
sonhada lojinha de doces e salgados para os lados de Vila Formosa, onde a
máquina de fazer café, novinha em folha, era o orgulho dos donos. Inaugurada a
lojinha, a freguesia foi aparecendo, inclusive o fiscal da prefeitura, de nome
Ernesto, há trinta anos como fiscal, servindo a vários partidos de diferentes
prefeitos. Passou para ver “se estava tudo em ordem”. E estava.
Para
não perder a viagem, o tal Ernesto, pediu uma “contribuição” para a inspeção
feita, no que foi logo contestado pelo dono. Com jeito o fiscal encontrou logo
a maneira delicada de dizer que, se não recebesse a contribuição, viria alguém
para aplicar uma multa ao estabelecimento. “Nós, os fiscais, somos uma família
há muitos anos e dessa o senhor não escapa”, sentenciou. E saiu porta afora.
Dona Diná, que ouvira a conversa, sentou-se ao lado do marido e desabafou: “é
isso aí, só podia ser com um prefeito do PT… Tudo ladrão”.
Perceberam,
não, irmãos? Que tal orar num templo de seiscentos milhões de reais, ou até em
outro mais simples, bater no peito e levantar as mãos para os céus? Apontar o
dedo para a corrupção alheia e fazer aquela carinha “de não tenho nada a ver
com isso”. Ou de “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Como alguns milhões de
outros brasileiros que se têm na conta de bem informados, Marrudo, “seu”
Napoleão e dona Diná, adoram a novela das oito e o Jornal Nacional. O Faustão,
o Fantástico, o BBB… Mas vamos adiante.
03
– A senadora Marta Suplicy, descontente com o rumo tomado pelo Partido dos
Trabalhadores ingressa no PMDB e em solenidade no Congresso, ao lado dos
presidentes das duas casas legislativas, ambos do PMDB, afirma que irá combater
firmemente a corrupção no país. Nada como a coerência, a abnegação e a
convicção ideológica da maioria dos nossos representantes no Congresso
Nacional. No caso, a luta de classes um dia acabaria vindo à tona.
04
– Jurandir, que graças ao hábito de só ir para a cama por volta das três da
madruga depois de umas latinhas de cerveja, ganhara o carinhoso apelido de
“vigilante noturno”.
Considerava
Fernandão seu melhor amigo, desde que este lhe proporcionara ir trabalhar como
free-lance numa produtora de filmes publicitários. Fernandão era um entre
vários produtores da Cosmopolitan Filmes e Vídeos Ltda., encarregado, entre
outras tarefas, de conseguir locais para filmagens e contratação de modelos. Várias
vezes fora aconselhado a abrir sua própria firma para dar notas fiscais de seus
cachês. Teimoso, Jurandir disse que comprava suas notas e não queria
complicações com contadores. Resolvia tudo o mais rápido possível. Como muitos
à sua volta o Fernandão gostava de dizer: “pagar imposto para que? Não ganho
nada com isso e os políticos é que metem a mão na grana…”.
A
senhora Marta Suplicy, veterana política e sexóloga argentino/brasileira/paulistana, e o Fernandão
sabem onde metem os bedelhos, com certeza. Sempre ao lado do bem, a senadora
não iria trocar de partido se não soubesse que a troca continuaria a lhe
granjear louvores pelos seus esforços contra a corrupção, os chamados desvios
do seu antigo partido. Afinal, nem todo dinheiro enviado para a Suíça poderá
ser considerado um dinheiro “sujo”.
Sob
“certos aspectos”, grande parte da elite econômica brasileira já introjetou na
sociedade, através de seus principais porta-vozes na imprensa, e isso desde o
final do império pelo menos, que existe uma “corrupção do bem” e uma “corrupção
do mal”. E, portanto, transferir conceitos para frases como “bandido bom é
bandido morto” para “petista bom é petista morto” é apenas uma questão de tempo
e loquacidade. Impressiona, sobremaneira, o silêncio do Ministério da Justiça.
Natural
que se construísse também no país uma “justiça para o bem” e outra “justiça
para o mal”. Justiça para o bem é aquela que solta ‘habeas corpus’ em 48 horas
para meliantes de gravata Hermés, que deixa nas gavetas do judiciário alguns
processos que irão prescrever num prazo previsto e favorecerão construtores de
aeroportos em causa própria, mas com dinheiro público. Justiça que partidariza
a própria justiça e, nos últimos anos, transformou o STF num anfiteatro de
peças e shows, alguns deles impróprios a menores de idade, deixando de lado a
discrição com a qual devem se comportar os mais altos magistrados da nação. Já
não tão altos assim, é verdade… Justiça para o bem é essa que tem a qualidade
moral do governador de São Paulo que torna secretos por 25 anos os documentos do
‘metrolão’ paulista. Documentos secretos de uma obra pública? Estranho, não?
Justiça
para o mal é aquela que vê – além de negros, pobres, nordestinos e algumas
minorias – comunistas e petistas para todos os lados. Ou bolivarianos, como
gostam de dizer alguns que não entendem nada de bolivarianismo. Justiça para o
mal é aquela que permite a um delegado da PF (não confundir com Prato Feito)
abrir processo contra uma faxineira que comeu um de seus bombons sem
autorização. É aquela justiça que prende petistas por “ouvir dizer”, julga-os e
os condena mesmo sem provas, mas não investiga bandidos com contas secretas na
Suíça, por exemplo. Ou o Banestado, ou Furnas, ou a Privataria, ou, ou,
ou… Que não vê nada de mais em juízes relatarem e julgarem processos em que têm
interesses pessoais em jogo.
E
assim caminha o Brasil nesse já quase final do ano de 2015. Entre a
irresponsabilidade política da direita, esse ajuntamento de intolerantes que
resolveu achincalhar com a constituição do país em nome de uma democracia que
ninguém sabe qual é, e a inabilidade da esquerda, até o momento, para enfrentar
essa intolerância e os desatinos que se cometem diariamente. Desatinos de um
moralismo que nada mais faz do que tentar esconder os dejetos mal cheirosos da
desigualdade social que já dura entre nós há mais de quinhentos anos.
É
verdade: somos milhões de Cunhas. Pena que a maioria de nós não tenha contas na
Suíça ou outros paraísos fiscais, não é mesmo?
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