A SEMENTE DOS ESCÂNDALOS - O QUE DIFERENCIA O CASO BANESTADO DA OPERAÇÃO LAVA JATO?
O tucano Paes de Barros e o petista Mentor: próceres do acordão
da Carta Capital
O juiz Sergio Moro arbitra uma operação que investiga um
extenso esquema de corrupção e evasão de divisas intermediadas por doleiros que
atuam especialmente no Paraná. Uma força-tarefa é montada e procuradores da
República propõem ações penais contra 631 acusados. Surgem provas contra
grandes construtoras e grupos empresariais, além de políticos.
Delações premiadas e acordos de
cooperação internacional são celebrados em série. Lava Jato? Não! Trata-se doescândalo do Banestado, um
esquema de evasão de divisas descoberto no fim dos anos 90 e enterrado de forma
acintosa na transição do governo Fernando Henrique Cardoso para o de Lula.
Ao contrário de agora, os malfeitos no
banco paranaense não resultaram em longas prisões preventivas. Muitos
envolvidos beneficiaram-se das prescrições e apenas personagens menores
chegaram a cumprir pena.
Essas constatações tornam-se mais
assustadoras quando se relembram as cifras envolvidas. As remessas ilegais para
o exterior via Banestado aproximaram-se dos 134 bilhões de dólares. Ou mais de
meio trilhão de reais em valor presente. Para ser exato, 520 bilhões.
De acordo com os peritos que analisaram
as provas, 90% dessas remessas foram ilegais e parte tinha origem em ações
criminosas. A cifra astronômica foi mapeada graças ao incansável e inicialmente
solitário trabalho do procurador Celso Três, posteriormente aprofundado pelo
delegado federal José Castilho. Alguém se lembra deles? Tornaram-se heróis do
noticiário?
Dois processos, o mesmo juiz: Sergio Moro. O BC de Loyola dificultou o trabalho do MP e da PF / Clayton de Souza e Celso Junior/Estadão Conteúdo
Empreiteiras, executivos, políticos e
doleiros que há muito frequentam o noticiário poderiam ter sido punidos de
forma exemplar há quase 20 anos. Não foram. Os indiciamentos rarearam, boa
parte beneficiou-se da morosidade da Justiça e a maioria acabou impune.
Quanto à mídia, não se via o mesmo
entusiasmo “investigativo” dos tempos atuais. Alberto Youssef, Marcos Valério, Toninho da Barcelona e Nelma
Kodama, a doleira do dinheiro na calcinha, entre outros, tiveram seus nomes
vinculados ao esquema.
Salvo raras exceções, CartaCapital entre
elas, a mídia ignorou o caso. Há um motivo. Os investigadores descobriram a
existência de contas CC5 em nome de meios de comunicação. Essa modalidade de
conta foi criada em 1969 pelo banco para permitir a estrangeiros não residentes
a movimentar dinheiro no País.
Era o caminho natural para
multinacionais remeterem lucros e dividendos ou internar recursos para o
financiamento de suas operações. Como dispensava autorização prévia do BC, as
CC5 viraram um canal privilegiado para a evasão de
divisas, sonegação de imposto e lavagem de dinheiro.
Em seu relatório, o procurador Celso
Três deixa claro que possuir uma conta CC5, em tese, não configuraria crime,
mas que mais de 50% dos detentores não “resistiriam a uma devassa”.
Nunca, porém, essa devassa aconteceu. A operação abafa para desmobilizar o
trabalho de investigação começou em 2001. Antes, precisamos, porém, retroceder
quatro anos a partir daquela data.
A
identificação de operações suspeitas por meio das CC5 deu-se por acaso, durante
a CPI dos Precatórios, em 1997, que apurava fraudes com títulos públicos em
estados e municípios. Entre as instituições usadas para movimentar o dinheiro
do esquema apareciam agências do Banestado na paranaense Foz do Iguaçu,
localizada na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina e famosa no
passado por ser uma região de lavagem de dinheiro.
Das
agências, os recursos ilegais seguiam para a filial do Banestado em Nova York.
Informado das transações, o Ministério Público Federal recorreu ao Banco
Central, à época presidido por Gustavo Loyola. Os procuradores comunicaram em
detalhes ao BC as movimentações suspeitas.
Em vez de auxiliar
o trabalho do Ministério Público, o Banco Central de Loyola preferiu criar
dificuldades para o acesso dos procuradores às contas suspeitas. Segundo Celso
Três, as informações eram encaminhadas de forma confusa, propositadamente, diz,
com o intuito de atrasar as investigações. Diante dos entraves causados pelo
BC, a Justiça Federal tomou uma decisão sem precedentes. Determinou a quebra de
todas as contas CC5 do País.
Uma
dúvida surgiu de imediato: se havia formas regulares, via Banco Central, de
enviar dinheiro ao exterior, qual a razão de os correntistas optarem por essas
contas especiais que não exigiam autorização prévia nem estavam sujeitas à fiscalização
da autoridade monetária?
Pior: antes do alerta da CPI dos Precatórios, o BC parece
nunca ter suspeitado da intensa movimentação financeira por agências de um
banco estatal paranaense, secundário na estrutura do sistema financeiro. Até
então, nenhum alerta foi dado pelo órgão responsável pela fiscalização dos
bancos. Vamos repetir o valor movimentado: 134 bilhões de dólares.
Editada em 1992, uma
carta-circular do Banco Central determinava que movimentações acima de 10 mil
reais nas contas CC5 deveriam ser identificadas e fiscalizadas. Jamais, nesse
período, as autoridades de investigação foram comunicadas pelo BC de qualquer
transação incomum.
Dentro da conta "Tucano", identificada nos EUA, menções a José Serra e Ricardo S. Oliveira / Marcos Oliveira/Ag. Senado e Milton Michida/Estadão Conteúdo
Com a quebra de sigilo
em massa determinada pela Justiça, milhares de inquéritos foram abertos em todo
o País, mas nunca houve a condenação definitiva de um político importante ou de
representantes de grandes grupos econômicos. Empresas citadas conseguiram
negociar com a Receita Federal o pagamento dos impostos devidos e assim
encerrar os processos contra elas.
O Ministério Público chegou a estranhar
mudanças repentinas em dados enviados pelo governo FHC. Em um primeiro
relatório encaminhado para os investigadores, as remessas da TV Globo somavam o
equivalente a 1,6 bilhão de reais.
Mas um novo
documento, corrigido pelo Banco Central, chamou a atenção dos procuradores: o
montante passou a ser de 85 milhões, uma redução de 95%. A RBS,
afiliada da Globo no Rio Grande do Sul e atualmente envolvida
no escândalo
da Zelotes, também foi beneficiada pela “correção” do BC: a remessa
caiu de 181 milhões para 102 milhões de reais.
A quebra do
sigilo demonstrou que o Grupo Abril, dono da revista Veja, fez uso
frequente das contas CC5. A Editora Abril, a TVA e a Abril Vídeos da Amazônia,
entre outras, movimentaram um total de 60 milhões no período. O SBT, de Silvio
Santos, enviou 37,8 milhões.
As mesmas
construtoras acusadas de participar do esquema na Petrobras investigado pela
Lava Jato estrelavam as remessas via Banestado.
A Odebrecht movimentou
658 milhões de reais. A Andrade Gutierrez, 108 milhões. A OAS, 51,7 milhões.
Pelas contas da Queiroz Galvão passaram 27 milhões. Camargo Corrêa, outros 161
milhões.
O sistema
financeiro não escapa. O Banco Araucária, de propriedade da família
Bornhausen, cujo patriarca, Jorge, era eminente figura da aliança que
sustentava o governo Fernando Henrique Cardoso, teria enviado 2,3 bilhões de
maneira irregular ao exterior.
Dantas se livrou. Thomaz Bastos sepultou a investigação / Eraldo Peres e Celso Junior/Estadão Conteúdo
Nunca foi possível
saber quais dessas contas eram e quais não eram regulares. Para tanto, teria
sido necessário aprofundar as investigações, o que nunca aconteceu. Ao
contrário. O BC não foi o único entrave. No fim de 2001, o delegado Castilho
foi aos Estados Unidos tentar quebrar as contas dos doleiros brasileiros na
filial do Banestado.
O
então diretor da Polícia Federal, Agílio Monteiro, determinou, porém, que
Castilho voltasse ao Brasil. Apegou-se aos “altos custos das diárias” para
interromper o trabalho de investigação. Valor da diária: 200 dólares.
Os
agentes da equipe de Castilho perceberam o clima contra a operação e a maioria
pediu para ser desligada do caso. A apuração seguiu em banho-maria até o começo
de 2003, no início do governo Lula, período em que Castilho voltou a Nova
York.
Naquele
momento, as novas quebras de sigilo permitiram localizar um novo personagem,
Anibal Contreras, guatemalteco nacionalizado norte-americano, titular da famosa
conta Beacon Hill. Descobriu-se uma estrutura complexa: a Beacon Hill era uma
conta-ônibus, recheada por várias subcontas cujo objetivo é esconder os
verdadeiros donos do dinheiro. Sob o guarda-chuva da Beacon Hill emergiu uma
subconta de nome sugestivo, a Tucano.
Em
anotações feitas por doleiros e algumas siglas foram identificadas transações
que sugeriam a participação do senador José Serra e do ex-diretor do Banco do
Brasil, tesoureiro do PSDB e um dos artífices das privatizações no governo
Fernando Henrique, Ricardo Sérgio de Oliveira. Só novas quebras de sigilo
permitiriam, no entanto, comprovar as suspeitas. Adivinhe? Elas nunca
aconteceram.
Castilho
conseguiu acessar o que se poderia chamar de quarta camada das contas. Antes de
descobrir os beneficiários finais do dinheiro, os reais titulares, o delegado
acabou definitivamente afastado da investigação pelo então ministro da Justiça,
Márcio Thomaz Bastos. Anos mais tarde, o inquérito seria arquivado.
A CPI do Banestado teve o mesmo destino
melancólico. Até hoje, é a única comissão parlamentar a encerrar seus trabalhos
sem um relatório final. O PT e o PSDB disputaram para ver quem enterrava
primeiro e melhor os trabalhos. O petista José Mentor, relator da CPI, foi
acusado de receber dinheiro de um doleiro para excluí-lo do texto final. Mentor
nega.
O tucano Antero Paes de Barros,
presidente, tentou proteger os próceres do partido e aliados citados na
investigação. Uma conveniente briga entre Mentor e Barros marcou o encerramento
da apuração no Congresso em dezembro de 2004. No ano seguinte, um novo
escândalo, o “mensalão”, sepultaria de vez o interesse pelas contas ilegais no
exterior.
Desde então, mudanças
na legislação penal e a ampliação de acordos de cooperação internacional
passaram a dificultar as tentativas de abafar esses casos. Foram criadas e
aperfeiçoadas nos últimos anos as unidades de recuperação de ativos no
Ministério da Justiça e no Ministério Público Federal.
Por
conta dos ataques às Torres Gêmeas de Nova York em 11 de setembro de 2001, os
paraísos fiscais foram pressionados a repassar informações sobre contas suspeitas.
Os bancos suíços, notórios por sua permissividade, criaram mecanismos de
autofiscalização para a identificação de dinheiro com origem suspeita, algo
impensável há 20 anos.
No
Brasil, a lei do crime organizado de 2013 foi aprimorada e a lei de lavagem de
dinheiro, alterada em 2012, ampliou o cerco contra os sonegadores. Diante
dessas mudanças, as investigações não finalizadas do Banestado poderiam ser
exumadas? Para investigadores que atuaram no caso, a resposta é sim.
As
movimentações finais no exterior dessas contas podem ter ficado ativas após a
instituição dessas novas leis, o que daria vida a novos inquéritos. Dependeria
da vontade do Ministério Público e da Polícia Federal.
As
duas instituições têm sido, no entanto, reiteradamente conduzidas a fazer uma
seleção bem específica de seus focos de interesse. Sem o apoio da mídia e
setores da Justiça e do poder econômico, mexer em certos vespeiros só produz
ferroadas em quem se mete a revirá-los.
O
MP e a PF tentaram, a partir da apuração do Banestado, avançar nas
investigações por outros caminhos. Daquele esforço derivaram operações como a
Farol da Colina, Chacal, Castelo de Areia e Satiagraha.
Em
todas elas, o destino foi idêntico. Em alguma instância da Justiça, os
processos foram anulados. Bastaram, em geral, argumentos frágeis. A Castelo de
Areia, que investigou a partir de 2009 o pagamento de propina de empreiteiras a
políticos, acabou interrompida no Superior Tribunal de Justiça por supostamente
basear-se em “denúncia anônima”, embora o Ministério Público tenha provado que
a investigação se valeu de outros elementos.
O episódio mais notório continua a ser,
no entanto, a Satiagraha. Até um falso grampo no gabinete do ministro Gilmar Mendes serviu
de pretexto para melar a operação contra o banqueiro Daniel Dantas, que, aliás,
operava uma das contas-ônibus no escândalo do Banestado.
Pressionado, o juiz Fausto De Sanctis
viu-se obrigado a aceitar a promoção para a segunda instância. Hoje cuida de
processos previdenciários. O delegado e ex-deputado Protógenes Queiroz foi
perseguido e tratado como vilão. Em agosto, acabou exonerado da Polícia
Federal.
Não
foi muito diferente com Celso Três e José Castilho. O procurador despacha
atualmente em Porto Alegre. O delegado foi transferido para Joinville, em Santa
Catarina, e nunca mais chefiou uma operação.
Nenhum
deles foi elevado ao pedestal como o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa e o
juiz Sergio Moro, que agora colhe as glórias negadas durante o caso Banestado.
Teria o magistrado refletido sobre as diferenças entre uma e outra
investigação?
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