DIRIGENTES DA REDE ABANDONAM MARINA E SEU AUTORITARISMO EM CARTA ABERTA
Passadas as eleições municipais, seria importante que a REDE
realizasse um balanço político. Mais do que o exame dos resultados
alcançados em sua primeira participação eleitoral, trata-se de avaliar o
percurso político até aqui tendo em conta os propósitos que estiveram
presentes na fundação do partido.
As pessoas que se comprometeram com a construção da REDE, desde
quando a contestação às formas tradicionais de fazer política nos
aproximou, tiveram em mente a necessidade de um instrumento que fosse
capaz de ajudar a mudar o Brasil, reduzindo as desigualdades abissais,
enfrentando o racismo estrutural, lutando pelos direitos das sociedades
originárias e das minorias, aprofundando a democracia, por meio de ampla
reforma política, lançando as bases para o desenvolvimento sustentável e
para o protagonismo da sociedade civil e dos indivíduos. Junto aos
princípios que afirmávamos, havia o claro repúdio às condutas que evocam
fins grandiosos apenas para justificar vilanias cotidianas,
invariavelmente definidas como os “meios” ou “males necessários”. Era
evidente, para todos nós, que um pragmatismo desta natureza – descolado
de qualquer princípio – havia já conduzido à degradação da política e a
seu distanciamento dos valores republicanos.
Desde então, a REDE tem se estruturado sobre um vazio de
posicionamentos políticos. Inicialmente, imaginávamos que esta lacuna
poderia ser explicada pela fragilidade do próprio partido, pela
inexperiência de grande parte de seus dirigentes e militantes e pela
enorme diversidade interna que demandaria um processo cuidadoso de
construção de “consensos progressivos”. A experiência que tivemos nos
foi demonstrando, entretanto, que o deserto de definições a respeito de
temas centrais nas disputas políticas contemporâneas não era um
subproduto de nossas limitações, mas o produto de uma postura
determinada que evita as definições, porque percebe que cada uma delas
pressupõe um custo político-eleitoral.
O fato de a REDE ser politicamente dependente de Marina Silva, sua
maior figura pública, se constituiu em um fenômeno que, ao invés de ter
se tornado menor ao longo do processo de construção partidária, se
acentuou ao longo do tempo. Na verdade, as decisões estratégicas que
foram conformando o perfil da REDE partiram todas de Marina e apenas
dela, desde a decisão de entrar no PSB até a decisão favorável ao impeachment da
presidente Dilma. Em cada um desses momentos cruciais, a maioria da
direção nacional simplesmente se inclinou em apoio às posições
sustentadas por Marina.
É preciso sublinhar que Marina é uma liderança política com virtudes
excepcionais. Entre elas, a honestidade e a integridade de propósitos; a
capacidade de se conduzir em meio às disputas políticas sem realimentar
a lógica do ódio e da destruição do outro, ainda quando injustamente
atacada; a inquietude que a faz refletir sempre com independência e em
sintonia com alguns dos desafios de nossa época etc. Ao mesmo tempo,
Marina possui, como todos nós, limites relevantes e não lidera a REDE
para que o partido assuma definições políticas consistentes, parecendo
preferir navegar em meio a uma sucessão de ambiguidades. A maioria da
direção nacional a acompanha nesta preferência, como em todas as demais.
Por conta da reduzida definição política, a REDE tem se construído
como uma legião de pessoas de boa vontade e nenhum rumo. Alcançada a
legalização do partido, foi precisamente essa característica que
permitiu que muitos oportunistas e políticos de direita identificassem
na REDE um espaço fértil para seus projetos particulares. O que ocorreu
em todo o País, então, foi um mergulho da REDE em direção ao passado e
às tradições políticas que pretendíamos superar.
As poucas decisões políticas tomadas nacionalmente pela REDE
aprofundaram este caminho. Nesse particular, cabe destacar a decisão
favorável ao impeachment, em que o partido aliou-se ao
movimento que entregou o poder ao PMDB e a um grupo político envolvido
nas investigações da Lava Jato e comprometido em aplicar políticas
radicalmente contrárias ao que sempre supomos fossem os valores e os
objetivos da Rede.
Temer chegou à presidência para impor ao País uma agenda regressiva e
reverter as poucas conquistas sociais do último período. Por mais
desastroso que fosse o governo Dilma (e o era) e por piores que fossem
os crimes perpetrados por políticos do PT (e muitos deles o foram
concretamente), o fato é que não foram esses os motivos que pautaram o
processo de impedimento. Assim, por intenções nunca explicitadas e sob a
liderança de mafiosos, aprovou-se o impeachment, condenando
práticas até então comuns aos Executivos, na União e nos Estados, e
nunca antes destacadas pelos Tribunais de Contas como razão para a
rejeição das contas. De fato, os beneficiários do impeachment são
mestres nos desmandos dos quais setores do PT são aprendizes. O grupo
hoje no poder, aliás, é muito mais histórica e organicamente vinculado
às práticas de corrupção e de apropriação privada do espaço público, o
que não isenta o PT de responsabilidade, mas desmascara a hipocrisia que
generaliza acusações e gera a ilusão perversa de que, livre do PT, o
Brasil estaria a salvo da corrupção.
Nós resistimos o quanto pudemos e nos orgulhamos dos parlamentares
que, mesmo sofrendo ataques na REDE, mantiveram, com firmeza, sua
posição contrária ao impeachment. A direção nacional da REDE pretendeu se somar ao impeachment
em nome da bandeira, “Nem Dilma, nem Temer”, indicando que o próximo
passo haveria de ser dado pelo TSE, com a cassação da chapa Dilma-
Temer. Uma estratégia tão inverossímil quanto ingênua e equivocada. A
hipótese TSE só haveria se o impeachment não passasse; só não
via essa realidade quem não quisesse – e não faltaram os alertas.
Subsidiariamente, ao se posicionar em favor do impeachment, a REDE minou sua interlocução com o campo no qual nasceram seus ideais, ao menos aqueles expressos em sua carta de fundação.
O que estava em curso, verdadeiramente, era um deslocamento político
da REDE em direção ao bloco hegemônico. Um exemplo desse fenômeno foi o
lamentável processo de aliança com o PMDB em larga composição
conservadora em Porto Alegre, onde poderíamos ter composto com Luciana
Genro, do PSOL, que nos ofereceu espaço na chapa majoritária e
protagonismo na definição programática e na composição de um eventual
governo de corte reformador e republicano.
Depois de um ano de existência legal e três anos de construção
partidária, a REDE não se posicionou sobre qualquer das grandes questões
nacionais – sequer foi capaz de formular uma crítica fundamentada ao
governo Temer. Quando esboçou alguma posição, ou proclamou platitudes,
ou decepcionou, afastando-se dos compromissos assumidos em sua fundação.
O que disse a REDE sobre a economia brasileira e as reformas propostas
pelo PMDB e seus aliados: a previdenciária, a trabalhista e a fiscal? E
sobre o teto para gastos governamentais? Que reforma política o partido
propõe? Que políticas a REDE defende para a educação e a saúde? Qual
modelo de desenvolvimento sustentável propõe para o país, objetivamente?
Qual sua posição sobre política de drogas, aborto, reforma da
segurança, desmilitarização e o casamento homoafetivo? A sociedade
brasileira não sabe o que pensa a REDE, nem consegue situá-la no
espectro político-ideológico. A auto-indulgente declaração de respeito
às diferenças internas não basta para dar identidade a um partido e
justificar sua existência. Pluralista, internamente, o PMDB também é, o
que, aliás, lhe tem sido muito conveniente.
O mais grave é que há sentido no cultivo de generalidades e na
indefinição adotada como estilo e método. Lamentavelmente, a REDE está
informando ao distinto público de que lado está, na política brasileira.
Paulatinamente, vai se distanciando do campo progressista – sequer
reconhece sua existência, o que é outra forma de afastar-se dele.
Custa-nos, depois de tantos anos dedicados a esse sonho, mas é nosso
dever admitir que antevemos, para 2018, uma inflexão da REDE para o
centro político, o qual, no Brasil de hoje, corresponde a alinhamento
ideológico indiscutivelmente conservador.
Um partido cuja coesão depende exclusivamente de uma liderança, mesmo
que ela tenha a admirável e extraordinária dimensão humana de Marina,
não é sustentável. Sem um mínimo de consistência ideológica, sem
posicionamentos claros, não há como construir unidade que não seja pelo
cálculo de oportunidade ou por circunstâncias eleitorais, tão mais
atraentes quão mais nos aproximemos de 2018. Não é sustentável um
partido cuja direção vota um tema chave para a história do Brasil, o impeachment, sob
o argumento explícito de que “não podemos deixar Marina sozinha”, tendo
ela anunciado, na véspera, sozinha e sem consultas, sua surpreendente
posição favorável, depois de declarar-se contrária ao longo de meses. Um
partido que não faça sentido sem uma liderança individual, torna-se
refém de sua vontade e acaba sendo regido por lógica pouco democrática,
independentemente das intenções de todas e todos, por mais sinceras que
sejam as disposições democráticas, inclusive dessa liderança.
Acreditamos que a tarefa, hoje, dos que percebem a necessidade de
resistir à tsunami ultra-conservadora e à temporada caça-direitos é
contribuir para a articulação, na sociedade, de uma ampla frente
democrática e progressista, da qual, tragicamente, a REDE está se auto
excluindo.
Por conta dessa avaliação, consideramos que nossa presença na REDE
não faz mais sentido. Permanecer, especialmente em um quadro onde o
debate interno substantivo é uma ficção, seria apenas legitimar um
processo que, rapidamente, repete a doença senil dos partidos.
Assim, desejando que esta carta contribua para a reflexão interna da
REDE e anime sua militância em direção a um caminho diverso desse que
nos parece frustrante e melancólico, seguimos em frente, sem partido,
mas com a mesma disposição de lutar por nossos sonhos.
Rio de Janeiro e Porto Alegre, 3 de outubro de 2016,
Luiz Eduardo Soares
Miriam Krenzinger
Marcos Rolim
Liszt Vieira
Tite Borges
Carla Rodrigues Duarte
Sonia Bernardes
Comentários
Postar um comentário
comentário no blogspot