O DESMANCHE INICIADO POR FHC SE APROFUNDA NA ERA TEMER
Privatizações e desnacionalizações
sem fim são a política econômica do governo atual, que torna o País refém
Após dois anos de recessão, corte generalizado do gasto
público, contenção do crédito e redução das exigências para a venda e a
concessão de ativos do Estado, aumentam os indícios de que o governo Temer
tornará o Brasil ainda mais frágil para seguir rumo próprio na economia e mais vulnerável
no contexto global.
O pacote em preparação para atrair,
segundo os jornais, 370 bilhões de reais em investimentos em dez anos não
parece obedecer a outra estratégia além de austeridade na proteção social e
facilidade na transferência do controle de ativos do Estado para investidores
particulares, principalmente estrangeiros.
“A combinação de tudo isso só tem um resultado
possível: o esfarelamento de nossa soberania e a elevação sem precedentes da
vulnerabilidade do País e do seu atrelamento a interesses que não são nossos,
menos ainda da população pobre”, alerta a professora de economia da USP, Leda
Paulani.
Faz parte do frenesi privatizante e desnacionalizante o condicionamento da
liberação de recursos a estados e municípios em crise à venda de empresas
públicas locais. Na segunda-feira 20, a Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro aprovou o projeto de oferta à iniciativa privada da companhia
estadual de saneamento, a Cedae, medida exigida pelo Ministério da Fazenda
para aprovar a ajuda federal. No mesmo dia, o governo definiu uma norma geral
para casos do tipo.
O estado candidato ao recebimento de
recursos deverá antes aprovar lei para autorizar a desestatização de
instituições financeiras e empresas de energia e saneamento, as mais atraentes
para o mercado mundial, e destinar as receitas ao abatimento de dívidas.
Segundo denúncias de sindicalistas,
mudanças estruturais aceleradas preparam o Banco do Estado do Rio Grande do
Sul, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal para a privatização. O
governo gaúcho foi avisado, só terá dinheiro quando vender o Banrisul,
instituição rentável que põe em xeque o dogma neoliberal da ineficiência da
gestão estatal.
A interrupção do movimento para vender
aos poucos a CEF, no período de Dilma Rousseff, teria irritado ao extremo
alguns barões das finanças interessados no filé dos bancos públicos. Do furor
atual nem o BNDES estaria
a salvo, comenta-se no setor.
Em alguns estados e municípios, nem foi
preciso recorrer ao toma lá dá cá. Geraldo Alkmin há muito declarou-se
favorável à privatização parcial do Metrô de São Paulo e João Doria Jr. anunciou, em vídeo
apresentado primeiro em Dubai, a oferta de 47 empresas e bens públicos da
capital, de cemitérios e linhas de ônibus a símbolos da cidade como o Estádio
do Pacaembu e o Parque do Ibirapuera.
A ação do governo conta
também com a ajuda de parte do Judiciário e do Ministério Público. Não há o
menor indício, na Lava Jato, de
separação entre o combate à corrupção e a inviabilização das grandes
construtoras nacionais integrantes da cadeia produtiva da Petrobras, a mais
importante do País.
A indiferenciação é esdrúxula, se a
referência for o comportamento da Justiça na Europa e nos Estados Unidos em
casos semelhantes, mas encontra complemento perfeito na decisão do presidente
da Petrobras, Pedro Parente, de facultar a
concorrência de fornecedores de plataformas apenas às competidoras estrangeiras
das empreiteiras.
A manobra está longe de garantir
imunidade à corrupção, se é que esta era uma preocupação. Figuram entre as
candidatas a espanhola Acciona, a inglesa Amec Foster Wheeler e a estadunidense
Chicago Bridge & Iron Company, envolvidas em escândalos de corrupção em
seus países de origem.
O Legislativo contracena também com o
Executivo no desmonte, viu-se na aprovação da PEC dos gastos, que comprime
recursos públicos e escancara a saúde e a educação para investimentos privados,
locais e estrangeiros. O governo pressiona agora os parlamentares para a
aprovação da reforma da Previdência, outra porteira a se abrir às
múltis.
Quatro quintos do investimento esperado
no plano do governo proviriam da venda de ativos nacionais, sendo 70 bilhões de
reais em terras, segundo projeto revelado em primeira mão por CartaCapital, e 300 bilhões em consequência da provável mudança das
exigências de conteúdo local nas plataformas e navios de exploração de petróleo
e gás, em discussão entre a Petrobras e as fornecedoras locais.
Na terça-feira 21, a empresa brasileira
Brasil Amarras conseguiu barrar na Justiça a contratação, pela Petrobras, da
concorrente chinesa Asian Star Anchor Chain, que descumpriu a exigência de
conteúdo local mínimo em equipamentos para seis plataformas do pré-sal.
Nas telecomunicações, um projeto de lei
sustado temporariamente por senadores da oposição permitirá ao governo, a
título de modernizar as normas do setor, transferir em definitivo ao menos 20
bilhões de reais em bens dos contribuintes às empresas privadas e perdoar valor
igual em multas.
Esse patrimônio público, que, segundo o
TCU, vale 100 bilhões de reais, é formado por torres, cabos, redes,
instalações, equipamentos, terrenos e até veículos utilizados há duas décadas
sem custos pelas teles. Os contratos preveem a devolução dos bens à União em
2025, mas o novo projeto autoriza a sua incorporação definitiva pelas
companhias, em troca da promessa de investimentos de 34 bilhões.
No setor de infraestrutura, o governo
espera investimentos de 15 bilhões de reais a partir da modificação de regras e
oferecerá também a dolarização de receitas e outros instrumentos oneradores dos
contribuintes, para proteger o investidor estrangeiro do risco de oscilação do
real diante da moeda estadunidense.
Mais 10 bilhões de investimentos
adviriam do desvirtuamento do programa popular referencial Minha
Casa Minha Vida, criado por Lula. Essa é a expectativa de
ingresso de recursos depois do aumento da faixa de renda passível de
financiamento para 9 mil reais, acompanhada da elevação do valor máximo do
imóvel financiável com uso do FGTS, para 1,5 milhão de reais.
O caminho é o mesmo seguido pelos
governos neoliberais entre os anos 1980 e 1990 em vários países, com resultados
discutíveis mesmo entre seus mentores. Aqui, a condução de Temer piora o que já
era ruim no governo FHC.
“É claro que o conjunto de medidas a
serem implementadas num mesmo momento sugere fortemente não se tratar de
privatizações ou desnacionalizações provenientes de estudos ou projetos
parciais. Ao contrário, fazem parte de uma visão ideológica que conduz as
medidas sob um mesmo diagnóstico, independentemente da área”, chama atenção o
professor de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pedro Cezar
Dutra Fonseca.
Nesse aspecto, diz, até difere do
governo FHC. “Por exemplo, para vender a Vale, foram feitos estudos específicos
sobre a empresa, pois se tentava justificar a privatização com base no caso em
questão. Agora, parece ser de roldão, em um pacote que coloca várias áreas em
um mesmo denominador, cabendo simplesmente à ideologia dar o norte
geral.”
Outro aspecto grave,
segundo Fonseca, “é que as medidas não encontram mais o respaldo internacional
de antes. Trata-se de um neoliberalismo tardio, pois extemporâneo. O Brexit e a eleição de Trump acabaram com as propostas liberalizantes do
Consenso de Washington.
Os governos da América Latina que
sucederam aos da fase mais nacionalista e intervencionista das últimas décadas
apostavam num engajamento com a ordem internacional para obter oportunidades.
Mas os mercados se fecharam, acordos
como o Nafta e o da região do Pacífico estão chegando ao fim. Portanto, as
medidas do governo não vão mais na direção da ordem internacional emergente,
deixam o País mais vulnerável ainda num mundo que se fecha”.
O manual seguido pelo governo, destaca
Pedro Rossi, professor de Economia da Unicamp, “é a doutrina do choque, de
impor ideias radicais na esteira de um grande abalo social. No momento da maior
retração de renda da história e em uma situação de calamidade institucional,
age-se para transformar rapidamente os princípios e a natureza do Estado
brasileiro e da Constituição de 1988. Ao atuar em várias frentes, imprimindo
urgência e celeridade às reformas, a reação demora e não é suficiente para
deter o processo”.
Haverá, entretanto, impactos
estruturais inevitáveis decorrentes da desnacionalização de grandes empresas
privadas e de ativos estratégicos como o campo de Carcará, do pré-sal, e do
aporte externo para infraestrutura pública.
Afetarão negativamente o balanço de
pagamentos, o custo Brasil, o equilíbrio fiscal, a capacidade de planejamento e
o encadeamento produtivo e tecnológico, adverte o professor de economia Pedro
Paulo Zahluth Bastos, da Unicamp. O processo gera a transferência de lucros e
dividendos para o exterior e pressiona as reservas cambiais, que poderiam ter
melhor uso.
A revisão anunciada da
exigência de conteúdo local mínimo, diz, reduz encadeamentos produtivos e
tecnológicos locais e “aproxima o setor de petróleo e gás de um enclave, como
ocorre em vários países africanos ricos em petróleo, mas carentes de
tecnologias.
Não é o caso do Brasil, que domina
tecnologias de classe mundial na exploração de petróleo em águas profundas. A
venda de ativos da Petrobras transfere com custo baixo tecnologias cuja
aquisição envolveu grande esforço de qualificação tecnológica local, para
concorrentes que não contribuíram para financiar esse esforço de
qualificação”.
Os prejuízos para o País da cruzada
privatizante-desnacionalizante
devem durar décadas. A começar pelo
aprofundamento do agudo processo de desindustrialização em curso, chama
atenção Leda Paulani, “não só pela continuidade da política de austeridade
combinada à de arrocho monetário, com juro elevado e sobrevalorização cambial,
que já vinham do primeiro ano do último mandato da presidenta Dilma, mas também
pelo desmantelamento do pouquíssimo que havia sido construído pelos governos
petistas em termos de política industrial (como a exigência de conteúdo local
mínimo), além da destruição, pela combinação de elementos de ordem diversa, das
poucas indústrias ainda fortes no País, como a construção civil e toda a cadeia
de petróleo e gás”.
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