A Sinuca de Néco Gato

Eu e Puan no bilhar de Néco Gato.
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Nos meus dezesseis anos voltei a morar em Umbuzeiro. Havia sido reprovado no colégio Americano Batista em Recife e papai desistiu de investir nos meus estudos. O ano anterior fora o de aprendizagens outras: as primeiras mulheres, as primeiras farras, os cigarros e aquela sensação de quem tem o mundo a seus pés. Mesmo largando tudo isso em Recife, não me dei por vencido ao chegar na pequena e fria Umbuzeiro. Era uma cidade de amigos. Grandes rodas se formavam pela manhã em frente à farmácia de Seo Lula e ao bar de João Donato. À tarde, as cadeiras formavam uma das maiores rodas entre a loja de seu Joda e a coletoria onde papai trabalhava. Era possível ouvir de qualquer ponto da cidade a gargalhada dele. Isso mesmo! A cidade era (e ainda é) pequenina e sua gargalhada era estrondosa. Nessas rodas sabia-se dos fatos mais engraçados da cidade, discutia-se futebol – principalmente o futebol de Umbuzeiro – e, os bem informados, enchiam o peito para passar as últimas notícias recebidas pelos poucos aparelhos de TV da cidade. Umbuzeiro recebera luz da Chesf há poucos anos, e naquele estava recebendo água encanada. Estávamos em meados dos anos 60 e a ditadura militar acabara de se instalar.
Todos eram bem vindos nessas rodas de amigos: do prefeito Seo Alcides, ao cobrador de ônibus Jojó.
À noite eu tinha aulas, mas, durante os dias em que não havia treino do nosso glorioso UFC – Umbuzeiro Futebol Clube – o tédio abraçava a todos.
De repente surgiu Néco Gato, um umbuzeirense que deixara a cidade há muitos anos e ganhara a direção do sul do país, donde retornava agora com os bolsos cheios de grana. Imediatamente alugou uma sala e instalou uma mesa de bilhar. Estrategicamente, esta sala estava na divisa dos estados de Pernambuco e Paraíba, bem ao lado da farmácia de Seo Lula que por sua vez ficava na rua principal da cidade. Umbuzeiro é cortada ao meio por essa linha divisória e o lado de Pernambuco recebe o nome de Umburetama, estando subordinada às autoridades da vizinha cidade de Orobó, o que deixou seu empreendimento livre de ser incomodado pelas autoridades da cidade. Em poucos meses - apesar da sujeira do local - Néco Gato “tirou” a grana investida e tratou de mudar-se para um salão bem maior e agora na rua principal, onde colocou, além da mesa de bilhar, duas de sinuca.
As rodas na calçada diminuíram de tamanho mas a sinuca vivia cheia de jogadores e "perueiros".
Qualquer grana que eu conseguia corria direto pra sinuca onde encontrava os amigos Puan, Celito, Jackson, Bibiu e outros. A casa de Néco Gato enchia quando Seu Lula resolvia mostrar um pouco da sua habilidade com o taco e desafiava algum forasteiro que aparecia tirando onda. Puan – seu filho – também não ficava por baixo e eu só jogava com ele com alguns pontos de usura. Nesses dias de espetáculo a platéia também recebia ilustres umbuzeirenses. Seu Toinho da Padaria era um dos que só apareciam nessas ocasiões. Chegava de mansinho com seu chapéu, sentava-se numa das cabeceiras de um dos bancos coletivos, cruzava as pernas e colocava as mãos sobre os joelhos. Só abria a boca quando era pra fazer todo mundo dar risada. Numa dessas ocasiões, enquanto Seo Lula aguardava o início de mais uma disputa, Missinho de João Vieira tentava encaçapar a bola cinco na boca de um dos cantos jogando contra o Negão do Padre. Era o maior contraste que se podia ver: o Negão do Padre era preto retinto, magérrimo e ainda media uns dois metros de altura, enquanto Missinho era justamente o contrário. Na tentativa de encaçapar a cinco, esticou-se todo deitado sobre a mesa, deixando aparecer os pelos das suas axilas pela brecha da manga da camisa. Bastou isso pra Seo Toinho disparar com um leve sorriso e em voz alta: “Esse filho de João Vieira parece um menino mas tem cabelo no suvaco que dá pra chocar uma perua!”
A sinuca de Néco Gato era a única diversão da cidade, só perdendo para os treinos e jogos no nosso time de futebol.
Numa daquelas tardes Bibiu defendia a graninha que apostara contra o próprio Néco Gato. Estava super ansioso ao ver que Néco disparava no marcador. Após encaçapar a dois e passar a seis, deixou a bola sete já caindo numa das bocas do canto. Néco Gato não viu a bola sete bem na boca da caçapa e tomou posição para jogar na três, que era a bola da vez. Enquanto Neco passava giz na cabeça do taco, Bibiu correu o olho por toda a platéia temendo que algum “perú” desse a dica a Néco. Ficou estático, sua pele negra amarelou o quanto conseguiu, e seus olhos viraram rapidamente de um lado para o outro sem acreditar no que estava para acontecer... E aconteceu: Néco Gato passou a bola três sem ver a sete já caindo. Foi uma gritaria geral de alegria da torcida em solidariedade a Bibiu e seu dinheirinho, e ele, por sua vez, gritou a todos os pulmões: “Ispia mió quem ispia por derradeiro!!!”
E numa tacada só, ganhou a partida.
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"O acento agudo em Néco é apenas para que não se confunda com Nêgo Gato"

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Comentários

  1. Nossa que bacana, Rodolfo Vasconcellos encontrar sua estória aqui em Umbuzeiro, na verdade eu não sou do seu tempo, mais meu irmão é, Sebastião, me lembro que papai ia aos domingos assistir o jogo de futebol lá no campo e algumas vezes fui ver Sebastião jogar ele até era goleiro, você é filho de seu Jóda daquela loja de tecido que só havia duas seu pai e seu Bia nesse tempo que vcs jogavam eu era bem pequena, eu sou Fátima de seu Tinhoro e Dona Nevinha, será que você lembra? Talvez não! Eu te digo que eu tenho memória bôa lembro de tanta coisa da minha infancia. Um abraço e parabens !!!

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    1. Fátima,lembro de vc em Umbuzeiro.Mas Rodolfo não é filho de seo Joda,e sim do INESQUECÍVEL casal Dona NININHA e Seo DEJALMA.

      Zé Roberto

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    2. Oi, Fátima. Como já foi notado pelo querido amigo Zé Roberto, eu não sou filho de seu Joda, embora me desse muito bem com ele. Lembro dos seus pais sim. Eram pessoas muito queridas. Beijo.

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