Boa Noite, Morte.

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Esperei anoitecer para levar o vigia Isaac para o Farândola. Seria sua primeira noite de trabalho para mim.
Nos últimos trinta dias o barzinho vinha sendo arrombado semanalmente. Levaram algumas garrafas de cerveja na primeira investida; na segunda resolveram atacar também a cozinha, e levaram algumas porções de carnes; na terceira, alguns litros de bebidas quentes; até que, na última sexta-feira – anteontem - quando chegamos para preparar o bar para a grande noite da semana, percebemos que haviam levado quase tudo: todas as porções de carnes, todas as bebidas geladas, todos os litros de bebidas quentes, todos os copos (que já eram poucos), todos os talheres e alguns utensílios de cozinha, dois botijões de gás, umas dez cadeiras brancas de plástico e, o que me deixou realmente irritado: quinze cadeiras francesas que vieram do “El Paso” e que não existem mais no mercado, pois foram importadas em número de cem exclusivamente para aquela casa noturna.
. Já eram dezoito horas quanto saí em disparada para repor os produtos e utensílios pelo menos em quantidade indispensável para que o bar funcionasse naquela noite. Como sempre, tivemos um excelente movimento, e o que não deu para repor, era pacientemente justificado a cada cliente, que se solidarizava e trocava o pedido por outra bebida ou outro petisco.
No sábado, antes de fazer as compras para o Farândola, passei primeiro na delegacia de Casa Caiada para prestar queixa do arrombamento. Quando já estava sendo atendido pelo Comissário, meu funcionário Júnior, que resolvera por conta própria e de bicicleta, fazer uma visita a cada loja de objetos usados na área do Varadouro, ligou me avisando que encontrara as cadeiras francesas em uma delas. Feliz com a notícia liguei pro meu filho Rudy, que tomou as providências junto à Polícia Militar, possibilitando assim a prisão em flagrante do receptador, bem como a apreensão das cadeiras. Fomos todos para a delegacia e só fui liberado por volta das dezesseis horas. Foi muito duro enfrentar outra madrugada sem o cochilo da tarde que dura umas três horas, e complementa as duas horas que durmo após chegar do bar. Já há uns dez anos que me contento com apenas cinco ou seis horas de sono por dia.
Saí do Farândola naquela madrugada de domingo com o dia quase que amanhecendo e determinado a levar um vigia para lá pernoitar durante toda a semana. Ofereci a vaga a Isaac, vendedor de macaxeira em frente ao mercadinho “Bom Marche”, que me solicitava um emprego quase todos os dias.
Quando descemos do carro, percebi que a janela da cozinha estava escancarada e a tampa do freezer levantada. Fiquei muito puto porque entendi que esse arrombamento não havia sido feito à noite como os anteriores, e apenas um dia após o último assalto. Dentro da cozinha, bem próximo à janela que encontramos aberta, estavam as últimas seis cadeiras brancas que restavam de um total de trinta, já empilhadas. Percebi então que eles voltariam para concluir o trabalho. Não quis ligar para Rudy, pois ele estava nos Aflitos assistindo o jogo do Náutico contra o São Paulo. Liguei então para Júnior, o gerente do Farândola, e ficamos os três no parque defronte ao bar, entocados, aguardando que voltassem. Por volta das onze da noite percebemos que dois homens aproximavam-se do bar de forma desconfiada, olhando para os lados e seguindo pelo canto do muro que contorna uma pracinha. O primeiro entrou imediatamente e pulou a janela que deixamos aberta como a encontramos, enquanto o outro despistava, fazendo de conta que utilizava o “orelhão”. Logo em seguida, também entrou no terraço e começou a receber do outro as cadeiras que deixaram empilhadas. Enquanto eu ligava para o posto da PM na Ribeira, enviei Júnior de bicicleta até uma viatura que já estava de sobreaviso. Eu ainda estava na ligação com a policial quando a primeira viatura encostou rapidamente em frente ao bar. Eu e Isaac corremos em sua direção e fui logo gritando que os dois estavam lá dentro. Armas em punho e com os holofotes ligados, prenderam o primeiro deles, que fingia estar dormindo no terraço. Não me contive: caí em cima do cara agindo como meus ancestrais de milhares de anos atrás, só saindo de lá puxado pelos policiais e por Júnior que rasgaram toda minha camisa para consegui-lo. Reviramos todo o bar e não encontramos o outro. Os policiais subiram no telhado, olharam dentro da caixa d’água, na casa da vizinha... e nada. Outra viatura chegou sob o comando da tenente Vivian, e mais uma vez tudo foi revirado, agora de forma meticulosa como só as mulheres sabem fazer. Não acreditávamos que ele conseguira escapar. O que foi preso, confessou que o seu comparsa, era o flanelinha que eu permitia usar o terraço do Farândola para dormir, depois de passar a noite guardando carros no Clube Atlântico ou em outras festas das redondezas.
Costumo dar essas “confianças”, e são raras as vezes que não “quebro-a-cara”. As vezes em que tudo termina bem, acabam por compensar as decepções, alimentando assim minhas esperanças de que ainda pode ser possível acreditar na sensatez das pessoas. Pena que sejam tão poucas essas vezes.
Esse “flanelinha” estava dormindo no terraço do Farândola já há uns seis meses. Quando eu chegava nas sextas-feiras ou nos sábados por volta das dez horas da manhã com as compras para a noite, procurava abrir a porta sem fazer barulho para não acorda-lo. Quando ele acordava assim mesmo, dava-lhe uns trocados para descarregar o carro. Desde o primeiro arrombamento que procurava saber dele se não ouvira nada e me respondia sempre que não, que devia ter sido num horário em que ele não estava por lá. No arrombamento imediatamente anterior, o da sexta-feira, meu filho interrogou-o, e ouvimos ele dizer que chegara a ver dois elementos – palavras dele – dentro do bar, sendo um moreno alto (o que prendemos) e um outro galego, também alto (seu próprio biótipo).
Chegamos mais uma vez à Delegacia de Casa Caiada, agora por volta dos trinta minutos da segunda-feira. Algemado, cabisbaixo, sem camisa (no dia seguinte encontrei-a no terraço do bar), recebeu ordens para sentar no chão, voltado para a parede. Enquanto os PM’s preenchiam seus relatórios, um policial civil aproximou-se dele e percebeu que defecara na já imunda bermuda que vestia. Apanhou um sabão e ordenou-lhe que tomasse um banho e lavasse a bermuda, alertando-o que, se voltasse fedendo, iria ter uma conversa com ele. O outro policial militar que não estava preenchendo papéis, ficou à porta do banheiro ensinando-lhe como devia proceder para retirar toda aquela sujeira que havia sobre sua pela e na sua bermuda, enquanto o vigiava para que não pulasse pela pequena janela do banheiro.
Aos poucos as viaturas iam chegando com os casos mais diversos. Dois traficantes apanhados com alguns “papelotes” ficaram aguardando a vez de serem autuados. O estado de um deles era deplorável. Via-se que recebera educação e que estudara, mas, o estado das suas roupas, dos seus dentes, os seus tênis com a parte de cima completamente descolada da borda, só serviam de moldura para o seu semblante de desolação e medo. O policial civil que mandara o “meu” bandido tomar banho, aproximou-se do traficante e ordenou que tirasse o chapéu (boné) que usava. Ele tirou e depois o colocou outra vez. Recebeu um “pescoção” e a mesma ordem aos gritos: “Aqui dentro você fica sem chapéu! Entendeu?”
A tenente Vivian que passava em frente à delegacia, vinda de uma diligência, aproveitou para entrar e perguntar como estava o caso do arrombamento do bar. Foi muito gentil em demonstrar interesse na oficialização do caso e me fez rever meu conceito sobre a presença das mulheres na Polícia Miliar.
Os casos mais simples eram passados à frente do nosso. Por volta das duas horas chega um homem desesperado, dizendo que assaltantes estavam causando terror logo depois do Shopping Tacaruna, assaltando os veículos que passavam, valendo-se de armas pesadas para isso. Uma viatura da Civil saiu em disparada com quatro policiais em direção àquela barreira, seguida pelo denunciante que, enquanto estivera na delegacia, lastimara-se por não estar armado como sempre costuma estar, e que, na granja da sua família, casos assim são resolvidos na bala por eles mesmos, e que já matara quatro, fora os que os outros da sua família já mataram. Cheguei a pensar que ele seria preso por confessar esses assassinatos, mas nada aconteceu.
Às três da madrugada chegou a nossa vez. Eu, Júnior e Isaac contamos nossas histórias e depois foi a vez de Alexandre – era esse o nome do arrombador, que não portava documentos e não sabia a data de nascimento, apenas que tinha uns trinta anos.
Enquanto Júnior e Isaac prestavam seus depoimentos, fiquei sentado ali naquela primeira sala da delegacia, ao lado de tantas outras vítimas e de tantos outros “marginais”.
Quando foi perguntado por um policial curioso, sobre sua vida, Alexandre complementou os dados, dizendo que morava com sua “mulé”, que trabalhava como “catador” no lixão de Aguazinha, e que conhecia um policial de nome tal, o que causou revolta em quem lhe fizera a pergunta, que lhe repreendeu gritando: “Não bote nenhum “cana” nessa história não! Garanto que não foi ele que mandou você arrombar bares por aí!”
Meu olhar sobre ele agora, trazia-me lágrimas, como estas que me chegam agora diante do monitor. Que chance de uma vida melhor, com alguma dignidade, algum carinho e respeito tivera esse desgraçado? Junto ao seu primeiro nome, havia apenas mais um: o sobre-nome da sua mãe. Minha mão direita, agora estava inchada, cortada e extremamente dolorida. Apesar de haver agido por impulso, desprezava-me pelo que fizera ao flagra-lo no bar. Quem era realmente o culpado de tantas diferenças e de qual dos lados eu estava?...
Uma outra viatura chegou trazendo dois policiais civis que acabaram de assassinar um assaltante que fora agir no bar onde eles estavam bebendo. Meia hora depois chega a família de um dos policiais e o advogado do outro: era um homem de idade avançada, careca, com orelhas enormes e o mais afastadas da cabeça possível; tinha ombros muito largos, era alto e estava usando uma calça de tecido grosso muito bonita, uma camisa preta como sua gravata e seu paletó. Lembrava muito aquele grandalhão mais velho da “Família Adams”. Imediatamente começou a preencher o pedido de “hábeas corpus” para que fossem para casa.
Alexandre, depois de prestar depoimento, subiu para a cela que fica no primeiro andar da delegacia, e em seguida seria encaminhado à penitenciária.
Saímos de lá às cinco e meia da manhã e eu tive um dia horrível, com mais questionamentos que o normal. Não consegui sair de casa nem pra ir trabalhar na obra do novo endereço do Farândola, que tanto tem me motivado.
Durante meu depoimento, fiquei sabendo que o comissário de plantão no dia anterior, quando lá estivemos para lavrar o flagrante do dono da loja que receptara minhas cadeiras francesas, não preenchera sequer o “Boletim de Ocorrência”, havendo liberado aquele bandido mais grã-fino, por motivos que não terá coragem de contar pra ninguém..
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