Discurso proferido na ocupação de Wall Street
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Dizem que somos sonhadores,
mas os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem
continuar indefinidamente da mesma forma.
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Não somos sonhadores. Somos o
despertar de um sonho que está se transformando num pesadelo. Não estamos
destruindo coisa alguma. Estamos apenas testemunhando como o sistema está se
autodestruindo.
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Todos conhecemos a cena
clássica do desenho animado: o coiote chega à beira do precipício, e continua a
andar, ignorando o fato de que não há nada por baixo dele. Somente quando olha
para baixo e toma consciência de que não há nada, cai. É isto que estamos
fazendo aqui.
Estamos a dizer aos rapazes
de Wall Street: “hey, olhem para baixo!”
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Em abril de 2011, o governo
chinês proibiu, na TV, nos filmes e em romances, todas as histórias que
falassem em realidade alternativa ou viagens no tempo. É um bom sinal para a
China. Significa que as pessoas ainda sonham com alternativas, e por isso é
preciso proibir este sonho. Aqui, não pensamos em proibições. Porque o sistema
dominante tem oprimido até a nossa capacidade de sonhar.
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Vejam os filmes a que
assistimos o tempo todo. É fácil imaginar o fim do mundo, um asteróide destruir
toda a vida e assim por diante. Mas não se pode imaginar o fim do capitalismo.
O que estamos, então, a fazer aqui?
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Deixem-me contar uma piada
maravilhosa dos velhos tempos comunistas. Um fulano da Alemanha Oriental foi
mandado para trabalhar na Sibéria. Ele sabia que o seu correio seria lido pelos
censores, por isso disse aos amigos: “Vamos estabelecer um código. Se receberem
uma carta minha escrita em tinta azul, será verdade o que estiver escrito; se
estiver escrita em tinta vermelha, será falso”. Passado um mês, os amigos
recebem uma primeira carta toda escrita em tinta azul. Dizia: “Tudo é
maravilhoso aqui, as lojas estão cheias de boa comida, os cinemas exibem bons
filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos, a única coisa que
não se consegue comprar é tinta vermelha.”
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É assim que vivemos – temos
todas as liberdades que queremos, mas falta-nos a tinta vermelha, a linguagem
para articular a nossa ausência de liberdade. A forma como nos ensinam a falar
sobre a guerra, a liberdade, o terrorismo e assim por diante, falsifica a
liberdade. E é isso que estamos a fazer aqui: dando tinta vermelha a todos nós.
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Existe um perigo. Não nos
apaixonemos por nós mesmos. É bom estar aqui, mas lembrem-se, os carnavais são
baratos. O que importa é o dia seguinte, quando voltamos à vida normal. Haverá
então novas oportunidades? Não quero que se lembrem destes dias assim: “Meu
deus, como éramos jovens e foi lindo”.
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Lembrem-se que a nossa
mensagem principal é: temos de pensar em alternativas. A regra quebrou-se. Não
vivemos no melhor mundo possível, mas há um longo caminho pela frente – estamos
confrontados com questões realmente difíceis. Sabemos o que não queremos. Mas o
que queremos? Que organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de
novos líderes queremos?
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Lembrem-se, o problema não é
a corrupção ou a ganância, o problema é o sistema. Tenham cuidado, não só com
os inimigos, mas também com os falsos amigos que já estão trabalhando para
diluir este processo, do mesmo modo que quando se toma café sem cafeína,
cerveja sem álcool, sorvete sem gordura.
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Vão tentar transformar isso
num protesto moral sem coração, um processo descafeinado. Mas o motivo de
estarmos aqui é que já estamos fartos de um mundo onde se reciclam latas de
coca-cola ou se toma um cappuccino italiano no Starbucks, para depois dar 1% às
crianças que passam fome e fazer-nos sentir bem com isso. Depois de fazer
outsourcing ao trabalho e à tortura, depois de as agências matrimoniais fazerem
outsourcing da nossa vida amorosa, permitimos que até o nosso envolvimento
político seja alvo de outsourcing. Queremos ele de volta.
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Não somos comunistas, se o
comunismo significa o sistema que entrou em colapso em 1990. Lembrem-se que
hoje os comunistas são os capitalistas mais eficientes e implacáveis. Na China
de hoje, temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico do que o vosso
capitalismo americano. Mas ele não precisa de democracia. O que significa que,
quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam
de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo
acabou.
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A mudança é possível. O que é
que consideramos possível hoje? Basta seguir os meios de comunicação. Por um
lado, na tecnologia e na sexualidade tudo parece ser possível. É possível viajar
para a lua, tornar-se imortal através da biogenética. Pode-se ter sexo com
animais ou qualquer outra coisa. Mas olhem para os terrenos da sociedade e da
economia. Nestes, quase tudo é considerado impossível. Querem aumentar um pouco
os impostos aos ricos? Eles dizem que é impossível. Perdemos competitividade.
Querem mais dinheiro para a saúde? Eles dizem que é impossível, isso
significaria um Estado totalitário. Algo tem de estar errado num mundo onde vos
prometem ser imortais, mas em que não se pode gastar um pouco mais com cuidados
de saúde.
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Talvez devêssemos definir as
nossas prioridades nesta questão. Não queremos um padrão de vida mais alto –
queremos um melhor padrão de vida. O único sentido em que somos comunistas é
que nos preocupamos com os bens comuns. Os bens comuns da natureza, os bens
comuns do que é privatizado pela propriedade intelectual, os bens comuns da
biogenética. Por isto e só por isto devemos lutar.
O comunismo falhou
totalmente, mas o problema dos bens comuns permanece. Eles dizem-nos que não
somos americanos, mas temos de lembrar uma coisa aos fundamentalistas
conservadores, que afirmam que eles é que são realmente americanos. O que é o
cristianismo? É o Espírito Santo. O que é o Espírito Santo? É uma comunidade
igualitária de crentes que estão ligados pelo amor um pelo outro, e que só têm
a sua própria liberdade e responsabilidade para este amor. Neste sentido, o
Espírito Santo está aqui, agora, e lá em Wall Street estão os pagãos que adoram
ídolos blasfemos.
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Por isso, do que precisamos é
de paciência. A única coisa que eu temo é que algum dia vamos todos voltar para
casa, e vamos voltar a encontrar-nos uma vez por ano, para beber cerveja e
recordar nostalgicamente como foi bom o tempo que passámos aqui. Prometam que
não vai ser assim. Sabem que muitas vezes as pessoas desejam uma coisa, mas
realmente não a querem. Não tenham medo de realmente querer o que desejam.
Muito obrigado.
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Por Slavoj Zizek, do Diário Liberdade
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