A História da “Crioula Safada”
Isso é uma rosa...
Excelentíssimo
Sr. Deputado Dr. Jean Wyllys de Matos Santos,
Meu
nome é Dirce Pereira da Silva e, atualmente, conto com 77 (setenta e sete) anos
de idade, caminhando para o 78º aniversário. Tal como Vossa Excelência, tive
uma trajetória difícil e cansativa na busca por meus direitos civis.
Sou
negra, filha de um servente de pedreiro e uma lavadeira. Meu avô paterno era
escravo alforriado. Nasci e cresci em meio à miséria no interior do Estado de
São Paulo, valendo-me de farinha e verduras que minha mãe encontrava no caminho
para alimentar-me. Graças a ela, que sempre foi analfabeta, convencemos meu pai
a mudar-se para a pequena cidade de Penápolis-SP, a fim de que eu pudesse
estudar as primeiras séries e o ginasial (denominação dada à época). Os
materiais eram todos muito caros e, por isso, desde meus oito anos de idade
trabalhava como lavadeira em conjunto com minha mãe para aumentarmos nossos
rendimentos. Papai fez muitas dívidas nessa época também para que eu pudesse
estudar.
Quando
chegou o momento de optar, escolhi cursar a Escola Normal, já que não havia
Faculdades por perto e nem haveria condições de manter-me fora. Formei-me
normalista em dezembro de 1954, para orgulho de meus pais.
O
caminho, Excelência, não foi fácil. Minhas colegas de Escola podiam ir às
matinês ou às festas em que iam as pessoas de minha idade, mas eu era barrada
na porta por ser negra. Sempre minha presença foi proibida nos locais
destinados às pessoas brancas. Isto não impediu que eu conhecesse um rapaz
branco, hoje já falecido, que se apaixonasse por mim e fosse correspondido. Ele
pediu minha mão em casamento a meu pai, como era próprio da época. Meu pai
aceitou, mas alertou a mim, ainda muito jovem, sobre a possível rejeição por
parte da família dele. Infelizmente, papai estava certo: os pais dele (em
especial a mãe) rejeitou-me, e me chamou de crioula safada, dentre outros
adjetivos. Esse amor nunca teve um beijo ou outra coisa qualquer além de
belíssimas declarações, mas foi forte o suficiente para permanecer intacto em
minha memória nestes quase sessenta anos. Até hoje, quando visito seu túmulo,
penso em tudo o que poderíamos ser e não fomos.
Tornei-me
professora em 1955, aposentando-me apenas no ano de 2004, às vésperas de
completar 70 anos de idade. Fui homenageada pelo Governo do Estado de São Paulo
como a professora que por mais tempo permaneceu em sala de aula: sem faltas,
sem licenças, sem atrasos, sem nada. No mesmo ano em que comecei a lecionar,
“adotei” uma menina, filha extemporânea de meus vizinhos sexagenários, que era
branca e de olhos claros como Arthur, o homem por quem me apaixonei. Ela
cresceu, tornou-se também professora e me deu dois netos e um bisneto, razões
maiores da minha vida. Ela e meus netos foram, também, fonte de inúmeras
alegrias a meus pais, falecidos no final da década de 90.
Com
esta pequena história, Excelência, desejo ilustrar minha passagem pelo mundo –
ciente de que tenho muito mais passado que futuro – para agradecer-lhe e
parabenizar seu trabalho. Na década de 1.950 discriminar uma pessoa negra era
algo natural, tolerável e correto. Sobre homossexuais, melhor nem falar: eram
considerados pervertidos, doentes, e nem mesmo estes falsos profetas lhes
prometiam a chamada “cura”.
Vejo
com tristeza que a discriminação em relação aos negros persiste em existir,
mesmo que às escondidas, e homossexuais são espancados, tratados com barbárie
ou vítimas de discursos de intolerância e preconceito, tristemente retratados
na figura (em igual) triste do Exmo. Sr. Deputado Jair Bolsonaro.
Eu
fui vítima de inúmeros preconceitos na vida, Excelência. Não pude frequentar
locais por conta de minha cor; depois, ingressei numa profissão de elite – o
magistério – sendo mulher, negra e pobre. Fui humilhada por anos e confinada em
escolas de zona rural, até que um dia, talvez por distração, consegui minha
transferência para a escola central da cidade, tornando-me professora da elite
de Penápolis. Minha filha adotiva foi uma das primeiras mulheres a se divorciar
na cidade, e por conta disso era chamada de indecente, imoral ou coisas piores.
Perdeu seu emprego por conta disso e meu neto mais velho teve sua matrícula
recusada em uma Escola pública, justamente por ser filho de uma mãe divorciada.
Hoje ele é Professor concursado na Universidade Federal de Uberlândia. O
destino às vezes dá voltas.
Quando
vejo o preconceito em relação às pessoas de orientação homossexual, sinto-me de
novo em 1954 e nos anos anteriores. Eles não têm o direito de amar, como eu não
tive. Eles não têm o direito de se casar, como eu também não tive. São
considerados pessoas anormais e pervertidas, da mesma forma como fui chamada de
“crioula safada”: são rotulados sem que ninguém os conheça, e eu sei qual o
tamanho desta dor. Para minha sorte, tive pais analfabetos e pobres, mas
maravilhosos. E os homossexuais, que muitas vezes têm de enfrentar o
preconceito dentro da própria família, para além daquele que existe na
sociedade?
Quem
lhe fala, Excelência, é uma mulher que tem idade para ser sua avó. Meu desejo,
a essa altura da vida – já são quase 80 anos – é que pessoas como Vossa
Excelência persistam em lutar contra o preconceito e qualquer forma de
discriminação e opressão neste país. Como ninguém me sentenciou à morte ainda
tenho o direito de sonhar, e meu sonho é o de ver uma sociedade verdadeiramente
livre, em que cada um possa expressar livremente sua cultura, seu jeito, seus
traços africanos ou seu amor, seja ele de qual orientação for. Envio meu apoio
ao Projeto de Emenda Constitucional para a viabilidade do casamento de pessoas
do mesmo sexo, a fim de que elas tenham o direito que me foi negado: casar-me com
quem eu amava e que também me amava em virtude do preconceito de terceiros!
Para
a verdadeira democracia, prossiga na sua luta pelas pessoas deste país, meu
jovem Deputado.
Com
admiração,
Dirce
Pereira da Silva
(((O)))
A mensagem de apoio de dona Dirce à minha proposta de
emenda constitucional que busca garantir o direito ao casamento civil aos
casais do mesmo sexo é mais do que um simples apoio. É uma lição de vida. Ela
me fez chorar e, ao mesmo tempo, me deixou muito feliz. Por isso quis
compartilhá-la com meus leitores..
Dona Dirce, que, como eu, acredita que a diversidade étnica,
sexual, cultural e religiosa, entre outras, são fundamentais para a construção
de um Estado Laico e Democrático de Direito de fato, viu em sua história de sua
vida – sofrida, porém vitoriosa – um ponto em comum com aqueles que lutam e
entendem o casamento igualitário como um direito civil e humano que deve ser
estendido a todos e todas cidadãs do mundo. Pessoas que sonham e acreditam que
algum dia ainda poderão viver em um mundo “verdadeiramente livre, em que cada
um possa expressar livremente sua cultura, seu jeito, seus traços africanos ou
seu amor, seja ele de qual orientação”. Ainda nas palavras da dona Dirce: “como
ninguém me sentenciou à morte ainda tenho o direito de sonhar”.
Por Jean Wyllys
na Carta Capital
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