Ex Delegado do DOPS, Bonchristinano, Abre o Bico.
Um agente da repressão pós-64 fala (muito) à repórter
Marina Amaral: torturas, assassinatos, intimidades com mídia, os bancos, a CIA…
Por Marina Amaral, da Agência Pública
Aos 80 anos, José Paulo Bonchristiano conserva o porte imponente dos tempos em
que era o “doutor Paulo”, delegado do Departamento de Ordem Política e Social
de São Paulo, “o melhor departamento de polícia da América Latina”, não se
cansa de repetir.“O DOPS era um órgão de inteligência policial, fazíamos o
levantamento de todo e qualquer cidadão que tivesse alguma coisa contra o
governo, chegamos a ter fichas de 200 mil pessoas durante a revolução”, diz,
referindo-se ao golpe militar de 1964, que deu origem aos 20 anos de ditadura
no Brasil.
Embora esteja aposentado há 27 anos, não há nada de senil em sua atitude ou
aparência. Os olhos astutos de policial ainda dispensam os óculos para
perscrutar o rosto do interlocutor, endurecendo quando o delegado acha que é
hora de encerrar o assunto.
Bonchristiano gosta de dar entrevistas, mas não de responder a perguntas que
lancem luz sobre os crimes cometidos pelo aparelho policial-militar da ditadura
do qual participou entre 1964 e 1983: prisões ilegais, sequestros, torturas,
lesões corporais, estupros e homicídios que, segundo estimativas da
Procuradoria da República, vitimaram cerca de 30 mil cidadãos. Destes, 376
foram mortos, incluindo mais de 200 que continuam até hoje desaparecidos.
Os arquivos do DOPS se tornaram públicos em 1992, mas muitos documentos foram
retirados pelos policiais quando estavam sob a guarda do então diretor da
Polícia Federal e ex-diretor geral do DOPS, Romeu Tuma. Entre os remanescentes
estão os laudos periciais falsos, produzidos no próprio DOPS, que transformavam
homicídios cometidos pelos agentes do Estado em suicídios, atropelamentos,
fugas. No caso dos desaparecidos, os corpos eram enterrados sob nomes falsos em
valas de indigentes em cemitérios de periferia.
Globo, Folha, Bradesco – e Niles Bond
Bonchristiano é um dos poucos delegados ainda vivos que participaram desse
período, mas ele evita falar sobre os crimes. Prefere soltar o vozeirão para
contar casos do tempo em que os generais e empresários o tratavam pelo nome.
Roberto Marinho, da Globo, diz, “passava no DOPS para conversar com a gente
quando estava em São Paulo”, e ele podia telefonar a Otávio Frias, da Folha de
S. Paulo “para pedir o que o DOPS precisasse”. Quando participou da montagem da
Polícia Federal em São Paulo, conta, o fundador do Bradesco mobiliou a sede, em
Higienópolis: “Nós do DOPS falamos com o Amador Aguiar ele mandou por tudo
dentro da rua Piauí, até máquina de escrever”.
O “doutor Paulo” sorri enlevado ao lembrar dos momentos passados com o marechal
Costa e Silva (o presidente que assinou o AI-5 em dezembro de 1968, suspendendo
as garantias constitucionais da população). “O Costa e Silva, quando vinha a
São Paulo, dizia: ‘Eu quero o doutor Paulo Bonchristiano’”, e imita a voz do
marechal – ele adora representar os casos que conta.
“Eu fazia a escolta dele e ele me chamava para tomar um suco de laranja ou
comer um sanduíche misto na padaria Miami, na rua Tutóia, vizinha ao quartel do
II Exército. Todo mundo querendo saber onde estava o presidente da República, e
eu ali”, delicia-se.
Gaba-se de ter sido enviado para “cursos de treinamento em Langley” nos Estados
Unidos, pelo cônsul geral em São Paulo, Niles Bond, que admirava a “eficiência”
da polícia política paulista. E o chamava de “Mr. Dops”.
Orgulha-se também de outro apelido – “Paulão, Cacete e Bala” – que diz ter
saído da boca dos “tiras” quando “caçava bandidos” na RUDI (Rotas Unificadas da
Delegacia de Investigação), no início da carreira, com um “tira valente”
chamado Sérgio Fleury. Anos depois, os dois se reencontrariam na Rádio
Patrulha, de onde saiu a turma do Esquadrão da Morte, levada para o DOPS em
1969, quando Fleury entrou no órgão.
“Polícia é polícia, bandido é bandido”, diz Bonchristiano. “Para vocês de fora
é diferente, mas para nós, acabar com marginal é uma coisa positiva. O meu
colega Fleury merecia um busto em praça pública”, afirma, sem corar.
O delegado Sérgio Fleury e sua turma de investigadores se celebrizaram por
caçar, torturar e matar presos políticos no DOPS, enquanto continuavam a
exterminar suspeitos de crimes comuns no Esquadrão da Morte.
Conversas gravadas
No decorrer de nove tardes passadas, entre junho de 2010 e janeiro deste ano,
em seu apartamento no Brooklin, no 13º andar de um prédio de classe média alta,
aprendi a escutar com paciência os “causos” que “doutor Paulo” narra com humor
feroz, até extrair informações relevantes. Repetidas vezes eu as confrontava
com livros e documentos e voltava a inquiri-lo; a proposta era que ele se
responsabilizasse pelo que dizia.
De certo modo, meu embate com o “doutor Paulo” antecipava as dificuldades que
serão enfrentadas pela Comissão da Verdade, a ser instalada em abril para
apurar fatos e responsáveis – sem punição penal prevista – pelas violações de
direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1946 e 1988, abrangendo o período
da ditadura militar. O objetivo da comissão é devolver aos cidadãos brasileiros
um passado que ainda não se encerrou, como provam os desaparecidos, e impedir
que funcionários públicos sigam mantendo segredo sobre atos praticados a mando
do Estado.
A fragilidade da lei em pontos cruciais, porém, provoca ceticismo nas
organizações de direitos humanos, em especial ao permitir o sigilo de
depoimentos – ferindo o direito à transparência pública –, e ao não prever
punições aos responsáveis pelos crimes, nem mesmo medidas coercitivas para os
que se recusarem a depor.
“Não vou depor. Acho bobagem”, diz Bonchristiano. “Nunca pratiquei
irregularidades, mas não sou dedo duro e não vejo utilidade nessa comissão”,
justifica o funcionário público, aposentado aos 53 anos, e que recebe hoje 11
mil reais por mês de pensão.
Minhas conversas com Mr. DOPS renderam 15 horas de gravação que revelam a
mentalidade e as conexões políticas dos policiais que atuaram na repressão do
governo militar. E provam que os detentores das informações estão por aí –
embora continuem ocultando as circunstâncias exatas em que os crimes foram
cometidos e os mandantes de cada um deles.
Torturadores e repressores
O nome de Bonchristiano – que significa “bom cristão” e veio de Salerno, Itália
– não consta das principais listas de torturadores compiladas por organizações
de direitos humanos.
O Projeto Brasil Nunca Mais, um extenso levantamento realizado clandestinamente
entre 1979 e 1985 com base nos IPMs (inquéritos policiais militares), é até
hoje a principal referência, embora muitas vezes liste apenas os “nomes de
guerra” dos torturadores, já que os reais eram desconhecidos das vítimas.
No tomo II, volume 3, “Os funcionários”, Paulo Bonchristiano é citado oito
vezes em operações de repressão. Mas seu nome também não consta da chamada
Lista de Prestes, de 1978, liberada recentemente pela viúva do líder comunista,
que traz vários nomes completos e os cargos de 233 torturadores denunciados por
presos políticos – entre eles 58 policiais do DOPS de São Paulo, 21 deles
delegados.
As lacunas dessa história, porém, não permitem descartar a revelação de novos
nomes. Entre 1968 e 1976 – o período mais duro da ditadura –, as torturas
faziam parte do cotidiano de todos os policiais e militares envolvidos na
repressão. O DOPS era “manejado pelos militares como um órgão federal”, como
observa o jornalista Percival de Souza no livro “Autópsia do Medo”, do qual o
Paulo Bonchristiano participa como fonte e personagem, qualificado como “um dos
delegados mais conhecidos do DOPS”.
Nas entrevistas à Pública, o ex-delegado resistiu duas tardes inteiras antes de
admitir que se torturava e matava no “melhor departamento de polícia da América
Latina” – o que hoje qualquer cidadão pode constatar através dos depoimentos
reunidos no “Memorial da Resistência”, museu que desde 2002 ocupa as antigas
instalações do DOPS, no centro de São Paulo.
Nem mesmo o fato de Sérgio Fleury ter se celebrizado como torturador impediu
Bonchristiano de tentar isentar o órgão: “O Fleury era do DOPS e não era do
DOPS, era o homem de ligação do DOPS com os militares, era delegado das Forças
Armadas, do Alto Comando. Não obedecia a ninguém, interrogava presos no DOPS,
no DOI-CODI, em delegacias, sítios, no país inteiro. Todo o segundo andar do
DOPS era dele, tinha que telefonar antes: ‘Fleury eu vou descer pra falar com
você’. Se não, a gente não entrava. Ele tinha uma porta lá, todo misterioso”.
Bonchristiano ainda se lembra, e muito bem, das antigas desavenças com o
ex-colega.
“O Fleury estava em todas, se metia em tudo, perdi muitos ‘tiras’ para ele
porque lá eles ganhavam mais, tinha um ‘por fora’”, contou na segunda
entrevista. “Uma vez prendi um cara em um aparelho no Tremembé, e quando estava
chegando no DOPS, o Fleury pediu o preso emprestado, não lembro o nome dele.
Depois de dois dias sem notícias do preso, fui perguntar para o Fleury, e ele
me pediu desculpas, tinha matado o cara que eu nem ouvi”, relata, como se fosse
um contratempo na repartição. “Chegou uma hora que só ele que dominava. Só se
falava dele”.
“Graças a Deus só se fala no Fleury”, reagiu dona Vera, a elegante senhora com
quem o ex-delegado é casado há 53 anos, que entrava na sala trazendo
refrigerantes. E emendou: “Zé Paulo, essa entrevista já não está durando
demais?”, frase que ela repetiria muitas vezes depois.
Foi na terceira entrevista – quando já acumulávamos seis horas de gravação –
que o “doutor Paulo”, sem dona Vera na sala, finalmente confirmou que “sabia de
tudo” o que acontecia no DOPS. E se “justificou”: “Eu não podia fazer nada,
isso era com o pessoal de lá de cima. Eu era delegado de segunda classe,
respondia apenas ao diretor do DOPS, o resto era com eles”.
Bonchristiano tornou-se delegado de 2ª classe em 1969 e foi promovido “por
merecimento” a delegado de 1ª classe em 1971.
Naquele mesmo dia, admitiu que frequentava os outros centros de tortura
montados em São Paulo a partir de 1969, como a OBAN (Operação Bandeirante) e o
DOI-CODI, comandados pelo Exército e compostos de policiais civis e militares
instruídos a torturar. Só no período de 1970 a 1974, a Arquidiocese de São
Paulo reuniu 502 denúncias de tortura no DOI-CODI paulista, apelidado
jocosamente pelos policiais de “Casa da Vovó”.
Bonchristiano disse então que “alguns da diretoria do DOPS” participaram da
montagem da OBAN – “os militares não entendiam nada de polícia, depois
aprenderam” – e que cederam três delegados no início das operações, todos
incluídos entre os torturadores na Lista de Prestes: Otávio Medeiros, ligado ao
CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e à TFP (Tradição, Família e Propriedade),
assassinado em 1973 por militantes da resistência armada; Renato d’Andrea,
colega de Bonchristiano na Faculdade de Direito da PUC; e Raul Nogueira de
Lima, o Raul Careca, ex-investigador subordinado a Bonchristiano e ligado ao
CCC, que se tornaria delegado depois.
Levaram também os métodos da polícia, incluindo o pau-de-arara – na origem um
cabo de vassoura apoiado em duas mesas, onde os policiais deixavam o preso
pendurado por pulsos e tornozelos até que a dor insuportável os fizesse
“confessar”.
“O pau-de-arara não é, assim, uma tortura, vai tensionando os músculos, se o
cara falar logo não fica nem marca, mas se o cara for macho e segurar…”, explicou-me
ele certa vez. Diante de minha expressão escandalizada, concedeu: “choques,
sim, dependendo”. E completou: “Naquela época foi diferente, o governo estava
tentando melhorar o país. Aí nós tivemos que fazer essa luta. Nunca considerei
os comunistas bandidos, considerava ideologicamente inimigos. Tanto que eu
sempre falei, não poderia haver mortes”.
Bonchristiano disse que frequentava a OBAN e o DOI-CODI para “buscar presos,
não para levar”, buscando distanciar-se das mal afamadas equipes de captura da OBAN,
que realizavam prisões ilegais. Alguns eram soltos sem que sua passagem nos
órgãos policiais fosse sequer registrada; outros eram enviados para os cárceres
do DOPS, onde assinavam as “confissões” e tinham a “prisão preventiva”
decretada.
“Maçã Dourada”, os paramilitares e o DOPS
Em seus primeiros anos no DOPS, Bonchristiano se especializou em infiltrações
em movimentos sindicais, mas a partir de 1968 os estudantes se tornaram
prioridade. “Quem faz revolução é estudante, operário faz revolução na Rússia”,
costumava dizer.
Uma das operações das quais mais se orgulha, que o levou às páginas de revistas
e jornais, foi o desmantelamento do Congresso da União Nacional dos Estudantes
em Ibiúna, em 12 de outubro de 1968, comandado por ele. “Prendi 1263 estudantes
sem disparar um tiro”, diz – embora os policiais do DOPS e da Força Pública de
Sorocaba tenham comprovadamente anunciado sua chegada com rajadas de
metralhadora para o ar. “Coloquei a garotada em 100 ônibus cedidos pela
(viação) Cometa e levei todo mundo para o DOPS. Separei os líderes e liberei o
resto para ir para casa. Não tínhamos vontade de matá-los, eram estudantes”,
ironiza.
Entre os 11 líderes que Bonchristiano mandou para o Forte de Itaipu, em Santos,
estão os ex-ministros Franklin Martins e José Dirceu, e o líder estudantil Luiz
Travassos, já falecido.
“Eu sabia tudo o que o Dirceu fazia porque ele era metido a galã e eu coloquei
uma agente nossa para seduzi-lo”, gaba-se o delegado. “Ela era muito bonita, a
Maçã Dourada, e me contava todos os passos dele”, diz o delegado. A “estudante”
Heloísa Helena Magalhães, uma das 40 moças contratadas pelo DOPS para esse tipo
de serviço, segundo ele, chegou a ser secretária de Dirceu na UNE.
Dias antes, havia acontecido o famoso embate entre estudantes de direita
reunidos no Mackenzie e estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, na rua
Maria Antonia, base de resistência contra a ditadura. Pelo lado da direita, os
conflitos foram publicamente liderados por João Marcos Flaquer, fundador do
CCC, organização paramilitar idealizada por Luís Antonio Gama e Silva, o
jurista que redigiu o AI-5 após se afastar da reitoria da USP para assumir o
Ministério da Justiça de Costa e Silva.
Flaquer não era do Mackenzie – estava no último ano de Direito na USP – e dividia
o comando dos combates com Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, “tira” do
DOPS, subordinado a Bonchristiano. Oficialmente, a polícia só entrou no campus
no segundo dia de conflitos, depois que um tiro, atribuído a um membro do CCC,
Ricardo Osni, atingiu um estudante secundarista. Mas, segundo Bonchristiano,
havia outras forças por trás dos conflitos:
“Foi o João Marcos que fundou o CCC e salvou os estudantes de passarem todos
para o comunismo, por isso os americanos também gostavam dele”, diz o ex-delegado.
“Ele tinha uma capacidade fabulosa, era forte demais, um cara fora de série,
muito meu amigo. Eu o conhecia desde o segundo ano da faculdade, ele queria ser
delegado mas a família dele era muito rica e não o queria metido com polícia,
então ele vinha para o DOPS comigo. Ele dirigia toda essa parte de estudantes,
infiltrava gente entre os esquerdistas. Se tinha alguma coisa que interessava
ao DOPS, ele fazia. Mas só com minha anuência”, gaba-se o ex-delegado, que diz
participado do planejamento do conflito.
O CCC começou com cerca de 400 membros e chegou a reunir 5 mil homens – boa
parte deles militares e policiais. Andavam armados, espancavam estudantes e
artistas que se opunham à ditadura e seus atentados mataram pelo menos duas
pessoas.
João Marcos Flaquer, Ricardo Osni, João Parisi Filho e José Parisi,
“estudantes” do CCC, eram colaboradores do DOI-CODI e constam da lista de
torturadores do Brasil Nunca Mais.
Os dois primeiros, bem como o mentor Gama e Silva, também participavam de
encontros que reuniam policiais da CIA e do DOPS. “A especialidade da CIA era
fomentar organizações paramilitares como o CCC. Acho bem possível que eles
recebessem, além de apoio, dinheiro”, diz a socióloga Martha Huggins, da Tulane
University, New Orleans, pesquisadora de programas de treinamento de policiais
estrangeiros pela CIA.
Afinidades eletivas: o DOPS e a CIA
Bacharel de Direito pela PUC-SP, filho de uma farmacêutica e um bancário, José
Paulo Bonchristiano não entrou na polícia política por acaso. Ele e a turma de
amigos da faculdade – seis deles futuros delegados do DOPS – eram
anticomunistas viscerais e católicos conservadores, e representavam a direita
no centro acadêmico 22 de agosto.
Esse perfil agradava ao experiente delegado Benedito de Carvalho Veras, que os
recrutou em 1957 quando cursavam o último ano de Direito e faziam estágio na
polícia. Veras, que se tornaria secretário de segurança do governador Jânio
Quadros no ano seguinte, estava à procura de quadros para modernizar a polícia,
sob orientação do Programa do Ponto IV – idealizado pelo presidente americano,
Harry Truman, com o objetivo de prevenir a “infiltração comunista”. Isso se
traduzia na combinação de ajuda econômica e treinamento das forças policiais
dos países da região.
A intenção era “profissionalizar” a polícia brasileira – sobretudo os que
lidavam com crimes políticos e sociais – para que barrassem o comunismo sob
qualquer governo.
No mesmo ano em que Veras assumia a secretaria de segurança e nomeava
Bonchristiano como delegado substituto de polícia, uma deputada (Conceição da
Costa Neves, do PTB, que fazia oposição ao então governador Jânio Quadros)
denunciava publicamente ter sido vítima de um grampo telefônico. “Foi o
primeiro grampo que se tem notícia em São Paulo”, conta o ex-delegado, que
conheceu de perto o autor da “inovação tecnológica”, o escrivão Armando Gomide,
futuro agente do o Serviço Nacional de Informações (SNI). Gomide havia
aprendido o “grampo” com os instrutores do Ponto IV, que também forneceram
equipamentos para melhorar a qualidade das gravações.
Em 1962, o programa passou a ser dirigido pelo OPS – Office of Public Safety –
uma “célula da CIA incrustrada dentro da AID (Agency for International
Development, no Brasil, mais conhecida como USAID)”, nas palavras da professora
Martha Huggins.
Além de treinar 100 mil policiais no Brasil, a OPS-CIA selecionava policiais e
oficiais militares para estudar em suas escolas no Panamá (1962-1964); e nos
Estados Unidos, depois que a Academia Internacional de Polícia (IPA) foi inaugurada
em 1963 em Washington, funcionando até 1975. No Brasil, o OPS ficou até 1972,
quando o Congresso americano começou a investigar as denúncias de que o
programa patrocinava aulas de tortura.
Mr. Dops e Mr. Bond
A IPA foi um das “escolas” nos Estados Unidos que recebeu Bonchristiano antes
mesmo do golpe militar. Dois anos antes – logo depois de ser aprovado no
concurso para delegado de 5ª classe, o início da carreira, ele já frequentava a
casa do diretor DOPS Ribeiro de Andrade, no Jardim Lusitânia, em São Paulo.
“Ele estava sempre de portas abertas para nós, ficávamos lá conspirando”,
ironiza.
Foi ali que Bonchristiano conheceu o policial americano Peter Costello, que
veio para o Brasil em 1962 como instrutor da OPS depois de treinar 2.500 homens
em técnicas de controle de distúrbios na Coréia. “Era um sujeito austero,
falava português e entendia de polícia, deu curso de algemas, tiro rápido e
outros para os policiais do DOPS, conta, completando: “Alguns meninos do CCC
também participaram”.
Antes de 1964 os delegados do DOPS já contavam com a ajuda dos americanos para
identificar os “comunistas”, muitos deles presos logo depois do golpe. “A ordem
que a gente tinha desde o começo era identificar e prender todos os comunistas.
Queríamos acabar com o Partido Comunista”, diz Bonchristiano.
Para contribuir com essa missão, “o Ponto IV nos contemplou com fotografias dos
frequentadores (brasileiros) dos cursos de guerrilha na China”, relatou Renato
d’Andrea, um dos delegados que foram da turma de Bonchristiano na PUC, ao
jornalista Percival de Souza.
Na primeira operação importante que Bonchristiano realizou no DOPS, em abril de
1964, foi a vez de retribuir, entregando aos americanos as 19 cadernetas
apreendidas na casa do líder comunista Luiz Carlos Prestes. As cadernetas foram
xerocadas nos Estados Unidos (aqui ainda não existia o xerox) e retornaram 15
dias depois para o Brasil, servindo de base para a prisão de diversos
militantes comunistas.
Só sobraram as cópias das cadernetas de Prestes, hoje nos arquivos do DOPS – os
originais, segundo o “doutor” Paulo, desapareceram. Por aqui as cadernetas
serviram de base a um dos maiores IPMs da primeira fase da ditadura, e foram
usadas como justificativa para a prisão de diversos militantes comunistas como
Carlos Marighella, que o próprio Bonchristiano foi encarregado de conduzir a
São Paulo, depois que ele havia sido preso e baleado em um cinema no Rio, em
1964. Solto em 1965, Marighella foi assassinado em uma emboscada de policiais
do DOPS em 1969.
“É uma bobagem danada dizer que a CIA mandava no DOPS, que nós éramos agentes
da CIA, não era nada disso, nós éramos delegados do DOPS”, resmunga o doutor
Paulo. “A América do Sul sempre foi o quintal dos Estados Unidos, e eles
olhavam muito para nós, tinham medo do Brasil se tornar comunista. E notaram
que tinha um departamento de polícia em São Paulo que trabalhava firme nisso.
Porque o DOPS de São Paulo fazia todos os levantamentos que conduzissem a algum
elemento do Partido Comunista em todo o Brasil, na América Latina inteira”.
“Depois que o presidente Truman criou a CIA, era a CIA que acompanhava o
movimento dos subversivos”, continua. “Então trabalhávamos juntos, viajávamos
juntos em muitos casos, mas nossas reuniões eram fora do DOPS, na happy hour de
bares de hotéis como o Jandaia e o Jaraguá, no centro de São Paulo. O Fleury
também ia, o Flaquer, o Gama e Silva e até o Carlos Lacerda (ex-governador do
Rio, que conspirou pelo golpe e acabou sendo cassado em 1968). O Niles Bond era
chefe lá deles, sujeito bacana, conhecia bem o Brasil, e gostava muito de mim.
Me chamava de Mr. Dops, porque eu sempre o atendia em tudo que precisava e era
ele que me mandava para Langley”, frisa mais uma vez, mostrando uma foto sua
com trajes de George Washington ao lado de um colega fantasiado de soldado
federalista, tirada durante uma de suas estadas em Washington (FOTO).
“Não lembro quando foi tirada porque estive oito vezes em cursos de treinamento
nos Estados Unidos (entre 1963 e 1970)”, diz ele. “Fiz cursos técnicos, de polígrafo,
técnicas de inteligência, infiltração. E sobre o comunismo também, eles tinham
verdadeira obsessão. Saí de lá convencido de que eles, sim, são duros, fazem o
que for preciso para garantir seus princípios”.
Entre 1959 e 1969, Niles W. Bond foi adido da embaixada no Rio e cônsul geral
em São Paulo, segundo seu currículo na Association for Diplomatic Studies and
Training, que também aponta a ligação com a CIA desde 1956, quando era assessor
político da embaixada italiana.
Langley, frequentemente usado como sinônimo de CIA nos Estados Unidos, é o nome
dos arredores da pequena cidade de McLean, na Virginia, onde desde o início da
década de 1960 ficam os “headquarters” da agência de inteligência americana, a
alguns quilômetros de Washington.
Com o tempo, descobri que quando o doutor Paulo se referia a Langley,
significava que estava em treinamento em instalações na CIA, não apenas na
sede, mas “em muitos outros lugares, até na Flórida”, como confirmou depois.
As informações sobre a CIA foram reveladas por doutor Paulo quando o inquiri
sobre sua transferência, em 1ª de setembro de 1964, para o Ministério da
Guerra, lotado no II Exército – informação que obtive checando todas as suas
nomeações, transferências e promoções no Diário Oficial (seu currículo oficial
omite essa significativa passagem).
Ele diz que foi transferido porque havia sido encarregado (com mais três
delegados) de montar um plano de estruturação da Polícia Federal pelo general
Riograndino Kruel, irmão do comandante do II Exército, Amaury Kruel (ambos
também treinados nos Estados Unidos): “O Edgar Hoover (fundador do FBI) é um
cara que admiro muito, e os americanos achavam muito importante montar uma
polícia como essa no Brasil – o DOPS paulista já atuava como polícia federal,
mas era subordinado à secretaria de segurança estadual, o que atrapalhava
nossos movimentos”, explicou.
Até hoje a Polícia Federal registra seus agradecimentos à “revolução de 1964”
no site oficial da entidade: “Somente em 1964, com a mudança operada no
pensamento político da Nação, a idéia da criação de um Departamento Federal de
Segurança Pública, com capacidade de atuação em todo o território, prosperou e
veio a tornar-se realidade”.
O capitão americano e a guerrilheira
“Felizmente aqui no Brasil não fizemos como em outros países, matanças. Não
houve isso. Houve só morte de quem quis enfrentar a polícia. Isso em qualquer
lugar do mundo. Quando uma guerrilha deles lá, um aparelho, matou o nosso
colega lá em Copacabana, o Moreira, o que nós tinhamos que fazer? Descobrir os
caras e matar também”, ri. “Polícia é assim”, avalia o “doutor” Paulo.
Dulce de Souza Maia, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) sentiu
na carne o peso dessa vingança, quando foi presa na madrugada do dia 25 de
janeiro de 1969, enquanto dormia na casa da mãe.
Dois dias antes, vários líderes da VPR tinham sido presos e os repressores já
sabiam que ela havia participado de um atentado a bomba no II Exército, que
matou o sentinela Mario Kozel Filho. Também havia sido erroneamente apontada
como uma das autoras do atentado que em 1968 matou o capitão do Exército
americano, Charles Chandler, acusado pelos guerrilheiros de dar aulas de
tortura no Brasil a serviço da CIA.
Dulce não sabe dizer se todos que a torturaram no quartel da Polícia do
Exército eram militares, mas sua lembrança mais forte é a cara redonda do homem
que a estuprou, depois de dar choques em sua vagina. “Eu aguentei 48 horas”, me
disse, por telefone. “Depois acabei dando um endereço de um apartamento que eu
conhecia porque tinho ido a uma feijoada, não era um aparelho”.
Foi então levada para o DOPS, metida em uma viatura com uma equipe de policiais
dos quais não sabe o nome: “Nem lembro das caras, estava quase morta, sei que
eles me levaram para a rua Fortunato e apontei o prédio que só reconheci porque
tinha parado o meu carro na frente – eu não sabia que o João Leonardo, que
inclusive era de outra organização (ALN), morava ali. Lembro só que o vi quando
a porta abriu”, lamenta.
A versão do delegado Bonchristiano sobre o mesmo episódio omite detalhes
significativos. “Nós estávamos atrás dos caras que mataram o Chandler, coitado,
executado na porta da casa dele, no Sumaré. Em 36 horas, o Cara Feia, um tira
excepcional que já morreu, sabia quem tinha feito. Aí, uma menina que nós
prendemos, nos conta de uma reunião na Rua Fortunato, perto da Santa Casa da
Misericórdia. Eu fui com a menina. Mandamos ela tocar a campainha. Peguei o
professor que era o dono do apartamento, prendemos. “Voltamos para o DOPS, eu,
Tiroteio, Cara Feia e a menina e deixei dois tiras, o Raul Careca e o Nicolino
Caveira, para ver se acontecia mais alguma coisa. Telefone. ‘Doutor, o senhor
tem que vir aqui, teve um problema’. ‘Muito problema?’ ‘Demais’, quando é
demais é que houve morte. Quando cheguei lá, tinha sangue para todo lado. O
Raul Careca, que era um ótimo atirador, tinha dado 18 tiros no Marquito (Marco
Antonio Brás de Carvalho). Aí que eles me contaram o que tinha acontecido: esse
que matou o Chandler tinha chegado e quando abriu a porta, falou assim: “Quem
são vocês?” E os tiras: “Nós somos da família”. “Ah é?” E puxou a arma. Os
tiras revidaram e ele morreu”.
Bonchristiano jamais mencionou que a “menina” estava quebrada pela tortura. Mas
corrigiu a versão que consta do depoimento de Raul Careca em um processo movido
pela família de Marquito. Ali ele dizia que foram dois os tiros disparados.
Mano nera
“O caso Chandler gerou consternação, mas, sobretudo preocupação entre o grupo
de assessores policiais, pois estes poderiam tornar-se alvo também.
Participaram das investigações e ajudaram a identificar as armas utilizadas,
enviando o material para estudo em laboratórios de criminalística do FBI”,
relata o professor Rodrigo Patto, da UFMG, que estuda a relação entre a USAID e
a CIA.
Patto, porém, não sabe dizer se Chandler era de fato da CIA como acreditavam os
militantes da ALN e da VPR que decidiram matá-lo. “Ele havia estado no Vietnã,
e estava oficialmente em viagem de estudos no Brasil, diz.
Em seguida ao assassinato de Chandler, um ex-instrutor americano de
Bonchristiano, Peter Ellena, veio para o Brasil para acompanhar as
investigações, o que melindrou o pessoal do DOPS. “Demos para ele a mano nera
(símbolo da máfia), a mão negra ensaguentada”, diverte-se, contando que os
policiais simularam um bilhete de ameaças dos guerrilheiros para assustar o
“gringo”. “Ele ficou morrendo de medo”.
O jornalista Percival de Souza relata que o DOPS produzia relatórios
confidenciais diários sobre o caso para o consulado americano, e que
descobriram o fio da meada que os levaria a Marquito, “menos de um mês depois
do fuzilamento”, registrando em seguida a versão que Bonchristiano continua a
defender: um acidente ocorrido na BR-116 no dia 8 de novembro de 1968, na
altura de Vassouras (RJ), teria matado Catarina e João Antonio Abi-Eçab que
estava em um fusca.
Ao socorrer o casal, a polícia teria encontrado uma metralhadora INA calibre
35, como a que matou Chandler. O DOPS foi avisado, e Bonchristiano viajou
imediatamente a Vassouras. Lá o delegado teria descoberto que o casal,
militante da ALN, teria ido ao Rio de Janeiro para encontrar Marighella, e que
a metralhadora era a mesma que matou Chandler. Tinha encontrado a arma do
crime.
O “teatrinho”, como os policiais chamavam as versões criadas para encobrir seus
crimes, foi desmontado a partir do relato de um ex-soldado do Exército ao
jornalista Caco Barcellos, em 2001, em que reconheceu Catarina “como presa,
torturada e morta em um sítio em São João do Meriti (município vizinho a
Vassouras)” e afirmou que os órgãos de repressão, após a execução, teriam
forjado o acidente.
Mais uma vez a “eficência” do DOPS veio da tortura. Bonchristiano, que insistiu
até o fim na desmentida versão, diz que foi cumprimentado por Niles Bond pelo
feito. “O Chandler era um dos nossos, frequentava nossas reuniões, o Bond sabia
que eu ia resolver o caso”, gaba-se.
Esticadinha no chão
Em 1983, os ventos democratas extinguiram o DOPS e trouxeram um novo delegado
geral, Maurício Henrique Pereira Guimarães, que despachou Bonchristiano para
uma obscura seção da Secretaria de Justiça, encarregada das viúvas dos soldados
mortos na II Guerra. “Preferi me aposentar, hoje não acredito mais em nada. Fiz
o que o presidente queria, os militares queriam, e não ganhei nem aquelas
medalhinhas que eles davam para todo mundo”, desdenha, referindo-se à Medalha
do Pacificador, entregue pelos militares a torturadores famosos.
Mas o Mr. Dops não tem muito do que reclamar. Em seus primeiros oito anos de
DOPS subiu da 5ª para a 1ª classe, como só acontecia aos que participavam da
linha de frente da repressão. Ficou um tempo na “geladeira” quando um desafeto,
o coronel Erasmo Dias, assumiu a secretaria de segurança (1974-1979). Mas
conseguiu depois a promoção a delegado de classe especial e se aposentou no topo
da carreira, em 1984.
A família, porém, ainda sofre com o passado do delegado. A filha, uma artista
plástica, escolheu o prédio do antigo DOPS como cenário de uma performance
acadêmica. No Facebook, comenta que o pai ficou “do lado dos algozes da ditadura”,
enquanto uma de suas filhas – neta de Bonchristiano – faz campanha pela
Comissão da Verdade em seu perfil.
Dona Vera sente a distância dos netos e lembra com amargura do tempo em que o
marido trabalhava no DOPS. Via-se sozinha dias a fio com três filhos pequenos:
“Eu não podia falar com ele nem por telefone, ligava lá e me diziam ‘a senhora
fica tranquila que ele está bem’”, conta. “E eu, apavorada com as ameaças que a
gente recebia por telefone, meus filhos iam escoltados para a escola”, diz.
Fonte: O outro lado da Notícia
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