Coronelismo no Judiciário
Kenarik Boujikian Felippe é desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
A partir de ontem – 01/02/12 – o Supremo Tribunal Federal vai
decidir uma ação que tem como intuito bloquear a iniciativa do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), no que diz respeito à iniciativa dos procedimentos
disciplinares contra juízes e desembargadores.
Por Kenarik Boujikian Felippe*
O que esta por trás deste processo e de outros que visam coibir as atribuições
fixadas na Constituição Federal ao CNJ, órgão criado com a reforma do
Judiciário?
Resposta: o coronelismo, que no Judiciário é forte o bastante para que com
unhas e dentes segure os anéis. Está arraigado em sua estrutura de poder, em
suas entranhas, aculturou-se de tal modo que é blindada às mudanças
estabelecidas pelos legisladores.
O retrato do coronelismo no Judiciário, especialmente perceptível face à atuação
do CNJ nestes seus primeiros anos de existência, pode ser apontada
particularmente no que representa a terrível “confusão” entre a coisa pública e
a privada; nos favorecimentos pessoais de toda ordem, como o pagamento de
valores de forma privilegiada, em total desrespeito aos princípios
constitucionais da moralidade e transparência; a designação de mais ou menos
funcionários nos cartórios pelas relações de amizade, sem critérios objetivos e
transparentes; o favorecimento de designação de funcionários para a segunda
instância, como demonstrou pesquisa realizada em Pernambuco; o desvio de
verbas; os gastos descontrolados, perseguição de juízes por manifestação de
opinião; o corporativismo; distribuição de processos muito aquém para
desembargadores do órgão especial; impunidade que beneficia as cúpulas e
membros dos Tribunais, etc…etc…
Mais grave é o descaso do coronelismo judiciário com os que estão no andar de
baixo, que não são pessoas dotadas de dignidade, pois para o coronelismo a
existência de andares e castas é uma premissa. Tal foi demonstrado com a
realização dos mutirões carcerários. Presos e presas não recebem o tratamento
respeitoso de jurisdicionados, como se não tivessem direito de acesso à
justiça. Em relação a São Paulo, estranhamente, o CNJ não inseriu o relatório
do mutirão, conforme consulta realizada no site.
Registro que o CNJ não pode se imiscuir na questão jurisdicional, sob pena de
ferir o princípio consagrado na Constituição Federal e em documentos
internacionais, da independência judicial, que não existe em benefício do
magistrado, mas do povo, para que o juiz possa decidir, sem que os coronéis do
judiciário possam interferir em suas decisões, sem pressioná-los, como a dar
telefonemas para que decidam assim ou assado. Isto é fato. Acontece.
Recentemente, magistrado do Rio de Janeiro recebeu um telefonema destes e pediu
que o presidente apresentasse o pedido por escrito. Acreditem: o presidente do
TJRJ assim o fez e conseguiu-se documentar esta conduta.
E mais recentemente, aqui em São Paulo, o próprio presidente declarou em nota
pública que comandou a operação militar de desocupação do “Pinheirinho”. Qual o
fundamento para que um presidente de tribunal atue em um processo, senão nos
casos previstos em lei? Não há previsão legal de poder de avocação de processo
e de seus atos por qualquer desembargador.
Há que se reconhecer que o CNJ abriu um pouco da caixa preta deste Poder, por
vezes de forma excessivamente midiática e muitas como também fosse um coronel,
querendo controlar a conduta pessoal do magistrado, usando da fúria normativa,
inclusive querendo que o juiz se submeta às decisões jurisprudenciais, sob pena
de sanção para o momento de promoção (apenas alguns exemplos).
O foco do CNJ muitas vezes é equivocado, a gestão administrativa do Judiciário
como se fosse uma empresa privada é fruto de uma visão mercadológica do Poder.
O que o Judiciário necessita é de práticas democráticas. O CNJ deve ser o
guardião da independência judicial, do princípio do juiz natural, deve ser o
órgão a pensar e idealizar novas formas de realização de justiça e não apenas
ser um cobrador de números.
É necessário também rever a própria estrutura do CNJ, pois o controle social do
Judiciário, ninguém pode mais ter dúvida, é imprescindível. Entretanto, é fatal
pensar que é basicamente um órgão de cúpula, dirigido pelo próprio presidente
do STF, composto majoritariamente por magistrados indicados pelas cúpulas do
Judiciário. Onde estão a Universidade, as pessoas de outras áreas, porque só
temos pessoas do direito a compor o CNJ, onde estão os sociólogos, os
economistas, administradores, filósofos, etc…?
A cidadania tem direito de controlar todos os seus poderes de Estado, pois são
seus. O Judiciário deve se subordinar ao povo soberano, os juízes têm que se subordinar
ao povo e somente o farão se cumprirem o seu papel de garantidor de direitos.
Como afirmado pela Associação Juízes para a Democracia, em nota pública, a
competência disciplinar do CNJ, encontra apoio no art. 103-B, § 4.º, incisos
III e V da Constituição Federal, é salutar conquista da sociedade civil. Os
mecanismos de controle da moralidade administrativa e da exação funcional dos
magistrados garantem legitimidade ao poder.
Nem todos os juízes compactuam com a nefasta tradição de impunidade dos agentes
políticos do estado, mas todos os juízes sabem que até hoje nada é feito em
relação à conduta dos desembargadores, e o caso de São Paulo, estopim das ações
propostas no STF, é exemplar. Muitos ouviram que foi realizado pagamento de
forma irregular, mas tudo ficou no âmbito da fofoca, do mal dizer. Mas o que
foi feito até que tudo viesse publicamente à tona?
Absolutamente nada, pois a postura preferencial é jogar para debaixo do tapete,
como se isto fosse melhor para a imagem do Poder Judiciário.
Não é justo que todos os juízes sejam confundidos com o que existe de mais
nefasto no Poder e os relatos e exemplos acima não podem ser generalizados e
isto o CNJ pode e deve fazer.
A necessidade de democratização do Judiciário é premente e um bom começo seria
o Supremo Tribunal Federal, enviar ao Congresso sua proposta de nova lei de
regência, pois passados 23 anos da Constituição Federal, ainda somos obrigados
a viver sob uma lei promulgada pela ditadura militar. A colocação do projeto de
lei no ambiente próprio, no Congresso Nacional, permitiria que a sociedade
discutisse os marcos desejáveis para uma justiça democrática.
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal tenha coragem para romper com o
conservadorismo que ainda impera no Judiciário e atenda a expectativa social,
que foi apresentada pela carta “Pela Transparência e Democratização do Poder
Judiciário”, lançada por diversas organizações sociais, que clamam que os
órgãos e os agentes do Poder Judiciário brasileiro respeitem os marcos
republicanos instituídos com o advento da Constituição de 1988 e com a Reforma
do Poder Judiciário.
*Kenarik Boujikian Felippe é desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
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