Brasil X EUA - Zé Carioca Assusta Pato Donald
Em 1939, o fim da influência britânica nas Américas estava consumado, mas os EUA estavam longe de garantir a herança. Franklin Roosevelt teve de fazer sua parte para conquistar corações e mentes na América Latina.
Reconheceu a nacionalização das petroleiras anglo-americanas no México, ajudou Getúlio Vargas a criar a Vale do Rio Doce e a CSN com as reservas de rerro expropriadas ao empresário estadunidense Percival Farquhar e até encomendou à Disney a animação Saludos Amigos!, de 1942.
Com o fim da guerra e do Eixo, Washington tornou-se tão hegemônica no Hemisfério Ocidental que não pediu mais desenhos animados sobre a América Latina e em 1950 extinguiu como supérflua a Quarta Frota, criada em 1943 para patrulhar as águas latino-americanas. O continente era seu quintal. A Guatemala podia servir de cobaia de experiências com sífilis que mataram centenas entre 1946 e 1948, enquanto o Brasil era forçado a importar quinquilharias para liquidar as reserevas acumuladas na guerra, romper relações com a União Soviética e pôr os comunistas na ilegalidade. Desobedientes teriam o destino de João Goulart em 1964 ou Salvador Allende em 1973.
Em 1994, quando a União Soviética já não existia e
os EUA convocaram a primeira Cúpula das Américas em Miami para preparar a
construção da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), não se concebia
oposição. Ainda em 2002, o embaixador dos EUA em La Paz julgava apropriado
ameaçar abertamente os bolivianos de represálias caso votassem em Evo Morales.
Em 2003, quando Brasília articulava a resistência dos “emergentes” na OMC e na
Alca, o subsecretário de comércio exterior de Bush júnior, Robert Zoellick
(depois presidente do Banco Mundial) não a levava a sério: zombava que o
Brasil, se ficasse de fora, teria de “exportar para a Antártida”.
O tropeço dos EUA na OMC e na Alca e a surpreendente
derrota de 2005, quando o socialista chileno José Miguel Insulza, com apoio do
Brasil, venceu a disputa pela secretaria-geral da OEA contra o mexicano
patrocinado por Washington, foram vistos como anomalias temporárias. Ainda em
2006, The Economist desdenhava o Brasil como “espectador irrelevante”
e sua diplomacia como uma “confusão com resultados esquálidos”.
Mas a América Latina se fez notar no radar de
Washington, como uma pedra da qual só se toma consciência ao se levar a topada.
A criação de um novo psitacídeo carioca por animadores de Hollywood, 69 anos
depois do Zé, talvez tenha sido um acaso, mas não o foi a recriação da Quarta
Frota quando a China conquistava mercados latino-americanos, a Rússia fazia
exercícios militares com a Venezuela, o Equador expulsava a base dos EUA em
Manta e o Brasil consolidava na Unasul e no BRICS alianças estratégicas alheias
a Washington.
Seis anos depois, a mesma The Economist abre
seu comentário sobre a visita de Dilma Rousseff a Barack Obama dizendo que “o
Brasil nunca foi tão importante para os EUA quanto agora e os EUA nunca
importaram tão pouco para o Brasil”. Não foi preciso exportar para a Antártida:
bastou ampliar o mercado interno e o comércio com o Sul e com Pequim – hoje um
parceiro comercial mais importante para Brasília que Washington – e eliminar a
dependência financeira dos bancos e órgãos multilaterais dominados pelos EUA.
Hugo Chávez, cuja derrota The Economist prevê a
cada ano eleitoral, é mais uma vez favorito, apesar de doente, e o que é mais
interessante, seu rival Henrique Capriles, que participou do assédio à
Embaixada de Cuba durante o fracassado golpe de 2002, hoje posa como
centro-esquerda e se diz “bolivariano”, inspirado em Lula e no “modelo
brasileiro”.
A Alca morreu e seu ectoplasma, a Cúpula das Américas,
corre o risco de ser definitivamente exorcizado. Os EUA voltaram a vetar a
participação dos cubanos na Cúpula de Cartagena de 14 e 15 de abril, mas a
presidenta Dilma disse a Obama que “todos os países da América Latina têm
relações com Cuba e esta é a última Cúpula da qual Cuba não participará”.
Obama
respondeu? “Não teve de responder. Não foi uma pergunta.” Para o presidente do
Equador, Rafael Correa, a de 2009 já foi a última: boicotou a atual como irrelevante
para as questões que “importam para a Pátria Grande”, incluindo o bloqueio de
Cuba e a colonização britânica das Malvinas, como explicou em carta aberta ao
anfitrião colombiano, Juan Manuel Santos.
Santos sentiu-se obrigado a ir em pessoa a Havana
desculpar-se e criticar os EUA: “Há certa hipocrisia na forma como tratam Cuba
e não aplicam o mesmo padrão a outros”. Dito pelo chefe de um dos governos mais
próximos dos EUA no continente, é significativo. Assim como o protesto do
notoriamente direitista presidente da Guatemala, general Otto Pérez, quando os
EUA vetaram sua pré-cúpula da América Central, na qual pretendia articular com
os vizinhos uma posição conjunta da região em favor da legalização das drogas.
Naturalmente, os EUA ainda podem contar com seu peso
militar e econômico, principalmente no México e nas frágeis repúblicas da
América Central. Mas se dependesse da diplomacia, a influência dos EUA teria
caído a zero. As atitudes da Casa Branca na América Latina não são pautadas
pela realidade, mas pelas ficções do debate midiático e partidário interno dos
EUA.
Obama ganharia a boa vontade de muitos latino-americanos
se encerrasse o bloqueio a Cuba, mas seria mais um pretexto para ser acusado de
“marxista” pelos republicanos, alguns dos quais pedem o fim da OEA. Em
Honduras, ao que tudo indica, o governo democrata cedeu a republicanos e
militares e reconheceu o golpe em -troca da nomeação de um funcionário de
segundo escalão.
Vencida pela Embraer, uma concorrência do Pentágono foi
cancelada para favorecer um pequeno fornecedor local. Em busca do voto
anticastrista, republicanos da Flórida atropelam o governo federal, ao qual
caberia a política externa, e proíbem o estado e seus municípios de contratarem
a -Odebrecht, por esta executar obras em Cuba. Paralisados pela intransigência
de suas disputas internas, os EUA podem perder a capacidade de conduzir uma
diplomacia coerente nas Américas até que seja tarde demais.
Texto de Antonio Luiz M. C. Costa na Carta Capital
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