Veja/Cachoeira – A Mídia Brasileira Sob Suspeita
De narradora dos acontecimentos a revista semanal da
Abril tornou-se personagem, revelando um envolvimento nunca visto de forma tão
escancarada na cena política brasileira.
Gravações feitas pela Polícia Federal, com autorização da Justiça, não deixam dúvidas. O contraventor Carlinhos Cachoeira era mais do que fonte de informações.
Gravações feitas pela Polícia Federal, com autorização da Justiça, não deixam dúvidas. O contraventor Carlinhos Cachoeira era mais do que fonte de informações.
Seu relacionamento com o diretor da sucursal de Veja em
Brasília, Policarpo Junior, permitia a ele sugerir até a seção da revista em
que determinadas notas de seu interesse deveriam ser estampadas. O pouco que se
revelou até aqui permite concluir que a publicação tornou-se instrumento de
Cachoeira para remover do governo obstáculos aos seus objetivos.
Um desses entraves estaria no Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transportes (Dnit), do Ministério dos Transportes, e
dificultava a atuação da Delta Construções, empresa que teria fortes ligações
com o contraventor.
Segundo o jornalista Luis Nassif, a matéria da Veja sobre
o Dnit saiu em 3 de junho de 2011. “A diretoria estava atrapalhando os negócios
da Delta. Foi o mesmo modo de operação do episódio dos Correios –que daria
origem ao chamado “mensalão”. Cachoeira dava os dados, Veja publicava e
desalojava os adversários de Cachoeira.” Com isso cumpria também os objetivos
de situar-se como vigilante de desmandos e fustigar os governos Lula e Dilma,
pelos quais nunca demonstrou simpatia alguma.
Basta lembrar a capa de maio de 2006 com Lula levando um
pé no traseiro, juntando numa só imagem grosseria e desrespeito. Para não
falar de outras, do ano anterior, instigando o “impeachment” do presidente da
República. O sucesso dos dois governos Lula e os altos índices de aprovação
recebidos até agora pela presidenta Dilma Rousseff parecem ter exacerbado o
furor da revista. A proximidade do diretor da sucursal de Brasília com
Cachoeira, e deste com o senador Demóstenes Torres (ex-DEM-GO), sempre elogiado
por Veja, veio a calhar. Até surgirem as gravações da Polícia Federal levando a
revista a um recolhimento político só quebrado em defesas tíbias de seu
funcionário e do que ela chama de “liberdade de imprensa”.
Veja diz-se “enganada pela fonte”, argumento desmentido
pelo delegado federal Matheus Mella Rodrigues, coordenador da Operação Monte
Carlo. O policial mostrou que o jornalista Policarpo Junior sabia das relações
de Demóstenes com Cachoeira, mas nunca as denunciou, protegendo “meliantes”,
como resumiu com propriedade a revista CartaCapital.
Segundo Veja, a “liberdade de imprensa” estaria ameaçada
se o jornalista, ou seu patrão Roberto Civita, fosse chamado a depor na
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) aberta no Congresso Nacional
para investigar o caso. Mas, na mesma edição em que supostamente põe o direito
à informação acima de tudo, clama por um controle planetário da internet,
agastada com a circulação de informações sobre seus descaminhos na rede. A
internet foi o principal meio de exposição dos detalhes da suspeita relação
Cachoeira-Demóstenes-Veja, e uma enxurrada de expressões nada elogiosas levaram
a revista ao topo dos assuntos mais mencionados no Twitter.
Os principais veículos de alcance nacional silenciaram ou
apoiaram a relação – exceção feita à Rede Record e à revista CartaCapital.
Alguns, como O Globo, não titubearam em tomar as dores da Editora Abril. Por um
de seus colunistas, Merval Pereira, o jornal isentou a revista de
responsabilidades. Depois, em editorial, reagiu à comparação feita por
CartaCapital entre o dono da Editora Abril e o magnata Rupert Murdoch, punido
pela Justiça britânica pelo mau uso de seus veículos de comunicação no Reino
Unido.
A ideia de que o caso Cachoeira seria uma forma de
desviar as atenções sobre a campanha pelo julgamento dos acusados no caso do
“mensalão” foi alardeada pela mídia. E utilizada pelo procurador-geral da
República, Roberto Gurgel, para se livrar da acusação de ter sido negligente. A
PF encaminhou a Gurgel a denúncia sobre as relações promíscuas entre Cachoeira
e Demóstenes em 2009. Se ele tivesse dado andamento à denúncia, o processo se
tornaria público e poderia ter comprometido no ano seguinte a eleição de
Demóstenes ao Senado, de Marconi Perillo (PSDB) ao governo de Goiás e de outros
políticos suspeitos de servir a Cachoeira.
Em vez de explicar por que segurou o processo, Gurgel
respondeu às acusações sob a alegação de que partiam dos envolvidos no processo
do “mensalão”, temerosos diante da iminência do julgamento no qual ele será o
acusador.
Em 1953, o dono do Última Hora, Samuel Wainer, sugeriu ao
presidente Getúlio Vargas que seu jornal fosse investigado quanto às operações
de crédito mantidas com o Banco do Brasil, como lembra o professor Venício
Lima, da Universidade de Brasília. Dez anos depois, o Instituto Brasileiro de
Ação Democrática (Ibad) foi acusado de ter ligações com a CIA e receber
recursos dos Estados Unidos para interferir nas eleições brasileiras. O
instituto chegou a alugar por três meses, num período pré-eleitoral, o jornal A
Noite do Rio, para colocá-lo a serviço da oposição ao presidente João Goulart.
E em 1966 foi aberta investigação do acordo entre as Organizações Globo e o
grupo de mídia estadunidense Time-Life. Uma operação de US$ 6 milhões, em
benefício da TV Globo, acabou com o império dos Diários Associados de Assis
Chateaubriand.
Há uma outra inquirição de jornalista que não se enquadra
entre os casos mencionados, embora seja altamente significativa para os dias de
hoje. Trata-se da ida a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, em 2005, do
mesmo Policarpo Junior. Na ocasião, o chefe de organização criminiosa se dizia
vítima de chantagem por parte de um deputado carioca que estaria exigindo
propina para não colocar seu nome no relatório final de uma CPI instalada na
Assembleia Legislativa do Rio. Policarpo testemunhou em defesa do bicheiro e
nenhum jornal nem a ABI alegaram tratar-se de uma intimidação à imprensa.
Uma das explicações para essa baixa exposição de jornais
e jornalistas a investigações está no poder de interferência dos grupos
midiáticos na política eleitoral. Exemplo clássico é a frase da viúva do
proprietário das Organizações Globo referindo-se ao governo Collor: “O Roberto
colocou ele na Presidência e depois tirou. Durou pouco. Ele se enganou”, disse
com candura dona Lily no lançamento do seu livro Roberto & Lily, em 2005.
Mas essa não foi uma ação isolada. Para derrotar Lula em 1989, Globo e Veja
faziam dobradinha perfeita, como agora. Demonizavam Lula e exaltavam o jovem
governador de Alagoas, “caçador de marajás”.
Essa articulação tornou-se hoje mais orgânica. A
presidenta da Associação Nacional de Jornais (ANJ), que representa os
proprietários de veículos, Judith Brito, assumiu o papel de oposição ao governo
Lula. De modo mais discreto, mas não menos eficiente, trabalha o Instituto
Millenium, que reúne articulistas, jornalistas e patrões da imprensa. E realiza
eventos em que os convidados aliam-se ao que há de mais conservador na
sociedade para afinar suas linhas de cobertura. Em um deles estavam Roberto
Civita (Abril), Otavio Frias Filho (Folha) e Roberto Irineu Marinho (Globo).
Vários colaboradores, exibidos no site do instituto,
escrevem e falam contra as cotas raciais nas universidades, criticam a política
econômica dos governos Lula e Dilma, seja qual for, louvam o governo Fernando
Henrique Cardoso, discordam da atual política externa brasileira e fizeram
campanha contra a criação da CPMI do Cachoeira. São ações orquestradas que
lembram as do Ibad, antes mencionado.
As evidências atuais indicam a necessidade de uma
investigação séria sobre o papel de setores da mídia no caso Cachoeira. Os
indícios vão além do jogo político e apontam para conluios com o crime comum.
No entanto, até o momento, a CPMI não mostrou disposição para enfrentar o poder
da mídia, que, quando acuada, conta com a defesa não apenas dos proprietários como
também de parte de seus empregados.
Cabe lembrar a observação frequente do jornalista Mino
Carta sobre a peculiaridade brasileira de jornalista chamar patrão de colega.
Com isso diluem-se interesses de classe e uma difusa “liberdade de imprensa” é
utilizada para encobrir contatos altamente suspeitos.
Até entidades respeitáveis como a Associação Brasileira
de Imprensa, por seu presidente, Maurício Azêdo, confundem as coisas. Em
depoimento ao programa Observatório da Imprensa, da TV Brasil, Azêdo não admite
a ida de jornalistas à CPMI para prestar depoimentos, sob a alegação de
intimidação ao trabalho jornalístico, mas condena a promiscuidade de alguns
profissionais com fontes próximas ou ligadas ao crime. Com isso dá ao
jornalista uma imunidade que nenhum outro cidadão tem.
Apesar da resistência com forte apelo corporativo da
mídia e de parte dos seus empregados, vozes importantes lembram que ninguém
está imune a convocações feitas pelo Congresso Nacional para prestar
esclarecimentos. À Record News, o presidente da Câmara dos Deputados, Marco
Maia (PT-RS), foi direto ao ponto: “Todos devem ser investigados no setor
público, privado e na imprensa. Sem paixões e sem arroubos. Nós vamos descobrir
muitas coisas quando forem feitas as quebras de sigilo – o fiscal, por exemplo.
Devemos apoiar sempre a liberdade de expressão. Mas não podemos confundi-la com
uma organização criminosa. Para o bem da sociedade e da própria liberdade de
expressão.”
Por Laurindo Lalo Leal Filho, na Revista do Brasil
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