O Mensalão e a Parábola dos Cegos
Por Wálter Meirovitch
Na pinacoteca do Museo Nazionale di Capodimonte está
exposto o famoso quadro do holandês Pieter Bruegel, pintado em 1568 e
intitulado A Parábola dos Cegos, com a cena de um homem sem visão a guiar
outros. À Ação Penal 470, apelidada de “mensalão”, foi imposto um “iter” às
cegas, incomum, onde a busca do processo justo cedeu lugar à pressa
atabalhoada.
No pretório excelso existem centenas de processos, com
matérias relevantes, que aguardam anos para ingressar na pauta de julgamentos.
Quanto ao mensalão, tão logo o relator Joaquim Barbosa concluiu o seu preparo,
passou-se a forçar o ministro Ricardo Lewandowski a concluir a revisão em prazo
determinado. Tudo para colocar o caso em pauta na primeira sessão após o
recesso decorrente das férias forenses de julho.
Infelizmente, não foi levada em conta a
inconveniência de se marcar um julgamento de grande impacto midiático em
período eleitoral. Onde o processo criminal do mensalão, com foro privilegiado
pela presença de três deputados e não desmembrado em relação aos 34 demais
corréus, poderia ser explorado para demonizar partidos políticos e acusados.
Mais ainda: com a par conditio desprezada no que diz respeito ao
desmembrado “mensalão tucano”. Frise-se ainda a inexistência de urgência, ou
melhor, nenhum risco, pela pena em abstrato tomada pelo máximo, de extinções de
punibilidades de réus por proximidade de prescrições de pretensões punitivas.
Pelo que hoje se percebe, a pressa, além do fato de
Carlos Ayres Britto buscar algo de relevância histórico-política para marcar a
sua curta presidência, objetivava evitar a perda do voto, pela aposentadoria
compulsória, em 3 de setembro, do ministro Cezar Peluso. Assim os ministros, na
ausência do revisor Lewandowski, elaboraram um extenuante calendário de
sessões. Do calendário ao fatiamento do julgamento, houve um festival de
desencontros e de obviedades, como, por exemplo, cada ministro poder escolher,
no seu voto, a metodologia desejada.
O fatiamento gera, porém, a cada item da proposta de
condenação ou absolvição feita pelo relator manifestações balizadas, limitadas,
do revisor e dos demais ministros. O fatiamento, por evidente, prejudica o
script inicial, ou seja, o de Peluso, após o relator e o revisor, antecipar o
seu voto completo. A antecipação, ressalte-se, apenas cabe nos casos de não
fatiamento do julgamento. Essa inédita antecipação representaria uma teratologia
lógico-procedimental. No popular, seria como o padre começar a missa pela
bênção final.
Enquanto os ministros supremos procuram uma bússola para
acertar o norte, não deve ter passado despercebido de Têmis, a deusa da justiça
e da coerência, o voto de Joaquim Barbosa que absolveu, pela fórmula plena da
ausência de provas e não pela da insuficiência, o ex-ministro Luiz Gushiken.
A única prova nos autos do mensalão a incriminar Gushiken
era o relato, na CPI dos Correios, do corréu Henrique Pizzolato. Como Barbosa
não engoliu a história contada por Pizzolato sobre os 360 mil reais recebidos,
considerado o preço da sua corrupção, foi coerentemente desprezada pelo relator
a delação extrajudicial contra Gushiken.
Ensinam os processualistas europeus que para ser aceita a
delação do corréu é necessária a total admissão da sua responsabilidade. Aquele
que delata deve concordar com o núcleo central acusatório. Fora isso, o
julgador não pode “fatiar” a confissão, tirando a parte que entende verdadeira
e excluindo a mendaz. E outra: na célebre lição de Enrico Altavilla, na obraLa
Psicologia Giudiziaria, “a acusação de um corréu não deve ser uma simples
afirmação, antes precisa ser enquadrada numa narração exauriente”.
O famoso Tommaso Buscetta delatou os chefões da Máfia,
mas admitiu a sua condição de mafioso e a coautoria em vários crimes. A isso se
chamou Teorema Buscetta, aceito, na sua parte fundamental, pela corte de
cassação da Itália.
No mensalão, Roberto Jefferson, o principal delator,
admite ter recebido importância vultosa, mas esconde os nomes dos beneficiários
do repasse. Fora isso, Jefferson atacou José Dirceu após vir a público o
pagamento de propina a um diretor dos Correios indicado pelo PTB. Talvez por
isso tudo, Jefferson conseguiu se eleger presidente do Partido Trabalhista
Brasileiro.
A essa altura e com a costumeira coerência, Têmis, que
nunca usou venda, apesar de ter se espalhado o contrário na Idade Média, deve
estar com uma pergunta engatilhada: será que Barbosa, que não aceitou a delação
de Pizzolato contra Gushiken, vai aceitar como válida a delação de Jefferson
contra Dirceu?
No caso do ex-ministro, como insistiu o seu defensor
constituído na sustentação oral, a única acusação contra ele, colhida na fase
judicial, provém de Jefferson.
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