O Desmantelo das Forças Armadas Norte Americanas
Sempre intuí que o grande baque que se abaterá sobre os
Estados Unidos será promovido por eles próprios. Alguém, um dia, apertará o
botão e jogará tudo pelos ares numa grande evaporação, milhares de vezes mais
aterrorizante que a que eles promoveram em Hiroshima e Nagazaki.
Os sinais do
colapso iminente estão cada vez mais evidentes. Esta nova geração será a
primeira da história do país que tem perspectivas de vida inferiores às dos
seus pais. Outro dado alarmante diz respeito ao que acontece dentro das suas
Forças Armadas.
Estupros e suicídios. Os adversários mais ameaçadores das
Forças Armadas norte-americanas são internos. Nos dois últimos anos, ao menos
21 mil soldados sofreram violência sexual. Atualmente, um militar da ativa se
mata a cada 24 horas. E um veterano, segundo o Department of Veterans Affairs,
tira a própria vida a cada 80 minutos. Do início da Guerra do Afeganistão, em
2001, até 10 de junho deste ano, mais combatentes se suicidaram (2.676) do que
morreram em atividades bélicas (1.950) no país asiático.
Apesar de os números alertarem para a gravidade da
situação, as Forças Armadas estão perdendo a batalha contra essas duas ameaças.
Segundo uma reportagem da revistaTime, citada no plenário do Congresso dos
Estados Unidos, os militares “não conseguem vencer o seu inimigo mais
insidioso”. “Esse problema talvez seja o desafio mais frustrante com o qual me
deparei desde que fui nomeado secretário de Defesa”, admitiu Leon Panetta, em
entrevista recente. A mesma dificuldade é vista no combate aos estupros de
soldados, sendo do sexo feminino a maioria das vítimas. O belicismo, o
espírito de corpo, o respeito cego à hierarquia e o medo de ameaça à promoção
na carreira inibem o pedido de ajuda. Mesmo aqueles que procuram auxílio são
ignorados pelos superiores.
“Instituições poderosas preferem acobertar crimes a
admiti-los”, diz o documentarista Kirby Dick. “Podemos confirmar esse tipo de reação com o
atual esforço da Igreja Católica para esconder os casos de abuso sexual
cometidos por clérigos.” Dick é o diretor deThe Invisible War (A Guerra
Invisível, em tradução livre), filme muito comentado durante o Human Rights
Watch Film Festival, realizado em Nova York há cerca de um mês, e ganhador do
prêmio de melhor documentário segundo a audiência no Sundance Film Festival. O
longa-metragem, cuja exibição no Brasil a HBO Latin America ainda negocia, mas
que estará disponível em DVD nos Estados Unidos a partir de 23 de outubro,
apresenta entrevistas com 12 militares mulheres decididas a falar sobre a
violência sexual contra elas.
O filme mostra que as combatentes em zonas de guerra
correm um risco maior de ser estupradas por um colega do que de morrer sob fogo
inimigo. A frequência desse tipo de violência entre os militares é o dobro na
comparação com a da sociedade civil. Mas apenas 8% dos casos são levados a julgamento.
Desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mais de 500 mil militares foram
estuprados. “Instituição mais poderosa dos Estados Unidos, as Forças Armadas
transformaram em política não oficial a negação das acusações, o descrédito das
vítimas, a classificação dos críticos como antipatrióticos e a ameaça implícita
de cancelamento de contratos com entidades privadas que sabem dos delitos.”
Imaginem os crimes desse tipo que eles não praticam a
cada invasão de um novo país. São os bárbaros da modernidade, por mais
paradoxal que isso possa parecer.
Existem duas fortes razões para que esse crime
sexual tenha sido ignorado por décadas, segundo Dick. “Quem está servindo não
tem permissão de falar com jornalistas sem o consentimento dos superiores. De
acordo com uma decisão tomada pela Suprema Corte em 1955, ninguém pode
processar as Forças Armadas por crimes cometidos enquanto estiver em serviço.”
Para o documentarista, se as vítimas de estupro pudessem ir à Justiça, muitos
crimes seriam evitados ou, ao menos, revelados, pois atualmente “a chance de o
público saber é muito pequena”.
Após a exibição de The Invisible War em
Sundance, no início deste ano, Leon Panetta anunciou a criação de uma unidade
de atendimento especial às vítimas de estupro em cada ramo das Forças Armadas.
O documentário segue a linha de outros trabalhos de Kirby, cineasta sem receio
de tomar partido quando ataca a hipocrisia e os desmandos de poderosos e
instituições. Em Outrage (2009), indicado a um Emmy, ele tratou de
políticos republicanos que são homossexuais enrustidos, mas votam contra leis
como a do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ao confrontar os abusos
sexuais do clero católico em Twist of Faith (2004), indicado ao Oscar
de melhor documentário, o diretor acompanhou os efeitos da decisão de Tony
Comes de tornar público um trauma pessoal. Comes decidiu fazer isso após
descobrir ser vizinho do padre que o estuprou 20 anos antes, quando era
adolescente.
Kirby teve a ideia de dirigir The Invisible War após
ler The Private War of Women Soldiers (A Guerra Privada das Mulheres
Militares), uma reportagem de Helen Benedict publicada pelo website noticioso
Salon em 2007 e transformada em livro dois anos depois. Durante a produção do
filme, Kirby e a sua equipe descobriram em primeira mão o acobertamento
contínuo de numerosos casos de assédio e violência sexuais em Marine Barracks,
em Washington, D.C., posto mais antigo dos fuzileiros navais norte-americanos
onde fica o alto comando dessa força de elite.
O documentarista conta ter enfrentado vários obstáculos
para produzir The Invisible War. “Convencer vítimas de estupro a falar
para a câmera a respeito da sua experiência foi um desafio significativo.” Ele
teve a ajuda de psicólogos, advogados e jornalistas para localizar e
entrevistar mais de cem mulheres. Conversou também com especialistas que
atuaram para a Justiça Militar e comentaram “os procedimentos enviesados e
ineficazes de investigação e julgamento”.
O diretor delegou a tarefa de entrevistar as vítimas
para Amy Ziering, produtora do filme. “Decidimos que Amy conduziria as
entrevistas, porque as mulheres se sentem mais confortáveis para relatar a
violência sexual a outra mulher.” Segundo o documentarista, a reconstituição do
trauma em palavras e diante de terceiros era uma forma de enfrentar o medo de
represália pelo alto-comando, contrário à revelação dos crimes. “Relatar o
estupro para quem tinha consciência da gravidade da situação foi
reconfortante.” Kirby conta que o marido de uma das vítimas disse não
compreender o estado emocional da companheira até assistir aThe Invisible War.
“Ao perceber que a reação da sua esposa era similar à das outras vítimas, ele
foi capaz de assimilar a experiência dela.”
A maioria das mulheres estupradas por colegas culpa a si
mesma, pois acredita ser, de alguma maneira, responsável pelos ataques sexuais.
Mesmo quando prejudicados, os militares são relutantes em se rebelar contra uma
instituição que aprenderam a admirar, diz Dick. Em muitos casos, a carreira
militar fora antes seguida por avós e pais. Além de sofrerem de estresse
pós-traumático e agorafobia, as entrevistadas de The Invisible War confessaram
ter considerado ou tentado o suicídio em várias ocasiões.
De acordo com estatísticas do Departamento de
Defesa, 95% dos militares suicidas são homens, 83% tiraram a própria vida em
território norte-americano e 47% têm menos de 25 anos. Ao menos um terço dos
que se matam nunca lutou em uma guerra. Um dos casos mais recentes envolve o
julgamento e a absolvição do sargento Adam H. Holcomb pela morte do soldado
Danny Chen. Em 2011, enquanto servia no Afeganistão, Chen disparou um tipo na
cabeça após sofrer maus-tratos de Holcomb e reclamar de perseguição dos seus
companheiros.
Quando tratou da onda de suicídios nas Forças Armadas, a
revista Time contou em detalhes as histórias de dois militares.
Michael McCaddon, médico, sofria de depressão e se enforcou em uma sala do
hospital onde trabalhava, no Havaí. Após realizar 70 missões no Iraque em nove
meses, Ian Morrison, piloto de helicóptero, voltou aos Estados Unidos. Ele teve
dificuldade para se adaptar à rotina. Matou-se com um tiro no pescoço. Os dois
vinham desenvolvendo carreiras promissoras antes de se suicidarem, por
coincidência, no mesmo dia: 21 de março deste ano.
Incentivados por suas esposas, tanto McCaddon quanto
Morrison procuraram a ajuda dos superiores, apesar do medo de essa atitude
comprometer possíveis promoções. Seus pedidos foram desprezados. O alto-comando
atribuiu os distúrbios psicológicos dos dois militares a problemas familiares.
Ambos estavam satisfeitos com as suas vidas profissionais, segundo a
interpretação oficial. Essa negligência se reflete em cifrões. Por ano, o
Pentágono destina apenas 2,1 bilhões de dólares (4% das suas verbas médicas) ao
tratamento de doenças mentais. A situação pode piorar com o corte de 500
bilhões de dólares no orçamento da Defesa previsto para janeiro de 2013.
Os suicídios de McCaddon e Morrison desafiam as
explicações fáceis. Ambos mostravam sentir vergonha de si mesmos, relatam as
esposas. Diziam não estar à altura da sua vocação. Os dois padeceram às avessas
da loucura de Travis Bickle. Protagonista de Taxi Driver (1976),
filme de Martin Scorsese, Bickle (Robert De Niro) é um fuzileiro naval e
veterano da Guerra do Vietnã. Após voltar do campo de batalha com honrarias,
ele passa a viver em Nova York, onde trabalha à noite como taxista, pois não
consegue dormir. Cada vez mais isolado, vê a sua saúde mental se deteriorar na
cidade que considera um esgoto a céu aberto. Ele conhece Iris (Jodie Foster),
prostituta de 12 anos, e decide matar os cafetões que exploram a adolescente.
Promove uma carnificina e é tratado como herói pelos jornais. Bickle atribuía
aos outros a origem dos seus problemas. Ele se considerava um anjo vingador.
McCaddon, Morrison e milhares de outros militares norte-americanos pensavam o
contrário e se puniram por isso.
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