“Os médicos cubanos tocam na gente para examinar; os outros às vezes nem olham no nosso rosto”
O
secretário Luiz Carlos Bolzan e o médico cubano Antonio Betancourt fazem
a diferença. Fotos: Robson Nunes
por Conceição Lemes
Novo
Hamburgo, capital nacional do Calçado, fica a 40 km de Porto Alegre (RS).
Até o ano
passado, como a maioria das cidades brasileiras, esse município gaúcho tinha
falta de médicos.
Não era por
escassez de recursos, mas por falta de profissionais para contratar. Eram
160 para cuidar de 240 mil habitantes. Cobriam apenas 28% da população.
Em setembro
de 2013, Novo Hamburgo recebeu os três primeiros médicos do programa Mais Médicos: duas argentinas e um
brasileiro formado em Cuba.
Hoje, são
40, dos quais 29 cubanos. Os demais são dois brasileiros formados
fora do país (um em Cuba e uma na Venezuela), quatro argentinos, três
uruguaios, um dominicano e um venezuelano.
O doutor
Antonio Betancourt Léon é um deles. Foi o primeiro médico cubano a
atender na Vila Palmeira, uma das áreas mais carentes da cidade.
Chegou no início de 2014.
Antes,
trabalhou durante dois anos na Guiana Inglesa, num programa de Saúde da
Família, parecido com oMais Médicos, que visa
à atenção básica de saúde, ou atenção primária.
Jaci da
Silva Carvalho (69), Santa Emília Alves de Almeida (75
anos) e Roseline Quadros Abreu (35) são algumas das dezenas de
pacientes que já passaram em consulta com ele. As três moram na Vila Palmeira.
Dona Jaci
padece com uma ferida na perna, diagnosticada como úlcera varicosa, há seis
anos.
– Quando
começa a doer, fico louca. Me tratei no Hospital Operário. Depois, no posto de
saúde Santo Afonso. Aí, faziam curativos a cada 15 dias. Não davam nenhum
remédio para eu aguentar a dor na hora do curativo. Eu tinha que suportar tudo
ali, no osso… Pior é que não melhorava. Eu pedia pra eles trocarem a pomada que
eu usava em que casa, porque custava caro, eles não ligavam.

– Hoje em
dia, estou me tratando no posto mais ali para baixo, com o doutor
Antonio, do Mais Médicos.
Eles tratam a gente com mais carinho. As gurias são muito boas.
– Agora,
faço curativo todo dia. Engraçado…devido ao jeito de a guria fazer o
curativo, não dói tanto como antes… Estou com muita esperança de que agora vai
dar certo…Ah, ia me esquecendo. Não preciso mais comprar a pomada, eles dão pra
mim.
-- Se
eu entendo o que o doutor Antônio fala? Entendo um pouco, sim,
mas levo sempre o meu filho que entende melhor do que eu.
– Guria, tu
acreditas que eu estava tomando 25 comprimidos por dia?! Eu já nem podia
mais comer de tanta dor no estômago. O doutor Antonio achou que era muito
remédio. Tirou uma parte. Não é que a minha dor no estômago está melhorando.
Dona Santa
Emília está muito empolgada:
– Os do Mais Médicos atendem, mesmo, bem melhor. Dão mais
atenção ao que gente sente do que os outros médicos. Eu tenho diabetes,
hipertensão arterial e problema de coluna, que toda pessoa velha tem…
Roseline
tem quatro filhos: 15, 14, 13 e 4 anos de idade:
– Para a
minha família, o atendimento está sendo ótimo. Eles examinam a gente!
– Até achei
que a comunicação com eles [os médicos cubanos] iria ser difícil. Mas está
muito tranquilo. Eles falam bem devagar.
– No outro
posto que a gente frequentava antes, às vezes, eu chegava lá com o meu
gurizinho de 4 anos com febre, dor de garganta…Os médicos nem examinavam, davam
direto ampicilina [um tipo de antibiótico]!
– O meu
filho de 15 anos tem muita acne, também está se tratando. O rosto estava se
deformando. Ele se sentia tão mal que se fechava em casa. O resultado está bem
bom.
– Um dia
desses, levei o meu gurizinho. Precisa ver como eles são atenciosos. Eles
examinam os olhos, a barriguinha, abrem a boca para ver como estão os
dentinhos, garganta…
– A gente
não tinha isso antes! Os médicos do Mais Médicos são mais humanos. Eles trabalham com
gosto. Eles tocam na gente para examinar! Já os outros a gente percebe
não gostam de pôr a mão na gente; às vezes nem olham para o nosso rosto.
AGENTE DE
SAÚDE: “TODO MUNDO QUER SE CONSULTAR COM OS CUBANOS”
Emília,
Jaci e Roseline estão entre as 215 famílias que a agente de saúde
Altiva Motta dos Santos acompanha mensalmente em casa.
Atuando há
cinco anos na Vila Palmeira, Altiva tem a mesma percepção das suas
pacientes, como mostra esta breve entrevista que fizemos com ela:
– Como está
sendo trabalhar com os médicos cubanos?
– Muito
boa. Eles são muito atenciosos. Examinam bem as pessoas. Todo mundo está
gostando muito.
Eles falam com calma para as pessoas entenderem.
– Algum
paciente recusou ser atendido por eles?
–
Nããããããão! Todo mundo quer se consultar com eles. Não é propaganda, falo
a verdade.
– O que os
pacientes te contam?
– Sobre os
outros médicos, era comum eu ouvir: “Fulano não examina, sicrano atende a gente
em pé, até na porta; não faz isso, não faz aquilo…”
Já sobre
cubanos, eles dizem: “perguntam tudo sobre a saúde da gente, ouvem o que
estamos sentindo, examinam bem, tiram a pressão, colocam a gente na maca…”
– Mudou
alguma coisa?
– Melhorou
bastante a adesão ao tratamento, às orientações. Os usuários estão mais
felizes. E eles estando mais felizes, nós, agentes de saúde, também ficamos
mais felizes.
Em casa, Dona Emília recebe a visita mensal da agente de saúde
Altiva: “Os médicos do Mais Médicos dão mais atenção ao que gente sente do que
os outros”
DR.
ANTONIO: “A GENTE TEM DE LEMBRAR QUE O PACIENTE NÃO É UMA DOENÇA”
Entrevistando
o doutor Antonio, fica claro por que tanto as usuárias quanto a agente de saúde
derramam-se em elogios à sua atuação.
Principais
observações do médico cubano às minhas perguntas:
– Eu fico
muito contente com a reação dos pacientes. O acolhimento foi muito bom.
– No
início, por causa da língua diferente, tivemos algumas incongruências, mas
agora a comunicação está muito boa. Além disso, a relação médico-paciente é
muito, muito, muito legal!
– Eu falo
devagar para eles. Ao final da consulta, pergunto se entenderam tudo. E, ainda,
peço para eles repetirem pra mim.
– Nós
estamos trabalhando com uma população muito pobre. Eles precisam de mais
atenção e amor, nós estamos fazendo o possível para dar isso.
– A reação
dos médicos brasileiros contra nós, cubanos, foi também político-ideológica e
não apenas corporativa.
– Logo que
cheguei, fui trabalhar com uma médica brasileira totalmente contrária ao Mais Médicos. Ela não queria
saber da gente. Mas, depois de algum tempo, mudou de opinião e me disse:
“Eu gosto de trabalhar com os médicos cubanos. Vocês dão mais atenção aos
pacientes e nós temos de aprender como vocês fazem isso”. Hoje somos muito bons
colegas. Eu acho que com o tempo a opinião dos médicos brasileiros em relação a
nós vai mudar.
– Qual a
principal diferença entre a nossa escola de medicina e a brasileira?Pelo que eu
detectei até agora, a nossa preconiza fazer muita clínica médica. Ensina-nos a
conversar bastante com o paciente, o que é muito importante. É, para mim,
a principal diferença.
– A gente
tem que lembrar que o paciente não é uma doença. Às vezes só de conversar com
conosco, ele melhora. O entorno dele é quase sempre complicado e nós não
podemos ignorar isso.
– Em minha
modesta opinião, no Brasil, é preciso fortalecer a atenção básica à
saúde. E o primeiro contato com a população tem de ser o melhor possível.
Estamos aqui para ajudar como irmãos, para que o primeiro contato da população
com o sistema de saúde seja o melhor possível.
FIM DA
CONSULTA DE TRÊS MINUTOS E ASSISTÊNCIA MAIS HUMANA
Pesquisa
realizada de janeiro a julho de 2014 pela Secretaria de Saúde de Novo Hamburgo
com 564 usuários do programa revela o êxito do Mais Médicos junto à população: 98,6% estão
satisfeitos, sendo que 90% deram-lhe notas 9 e 10.
“É o
serviço público mais bem avaliado pelos usuários, supera o Samu, os correios e
os bombeiros”, observa Luiz Carlos Bolzan, secretário de Saúde do município e
presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Rio Grande do Sul
(Consems/ RS).
Os gestores
também estão satisfeitos:
* Os
médicos do programa estão oito horas por dia na comunidade.
* Têm o
perfil para trabalhar com saúde da família e atenção básica.
* Se
propõem a atuar em equipe e fazer visitas domiciliares.
Resultado: em Novo Hamburgo , a
cobertura da assistência à população saltou de 30% para 76% .
Além disso,
a pesquisa feita em Novo
Hamburgo já permite detectar alguns resultados positivos Mais Médicos.
O
secretário Luiz Carlos Bolzan destaca três:
1. Resgate
da prática clínica e da assistência mais humana nos serviços públicos de saúde
Antes a
consulta durava três a cinco minutos e se resumia à prescrição de medicamentos
a partir de uma queixa, sem fazer qualquer exame clínico. Os pacientes diziam
que às vezes o médico nem olhava no rosto deles.
Essa prática
está sendo deixada de lado.
Agora, a
consulta demora de 20, 30, 40 minutos, permitindo ao médico fazer realmente uma
avaliação clínica do pacientes, discutir e prescrever o tratamento.
É
justamente a clínica que permite a criação do vínculo médico-paciente.
E se isso
acontece, é maior a possibilidade de o paciente seguir as recomendações e
retornar à reconsulta. Consequentemente, maior possibilidade de sucesso do
tratamento em relação à queixa apresentada.
2. Prescrição
mais criteriosa de medicamentos
A pesquisa
realizada em Novo Hamburgo revela que os profissionais do Mais Médicos dão menos remédios por receita do que
fora do programa.
E quanto
menos medicamentos, menor o risco de danos colaterais e maior a
possibilidade de o paciente seguir o tratamento recomendado.
3.Aumento
das imunizações que não fazem parte das campanhas de vacinação
Por
exemplo, a vacina contra a febre amarela, recomendada para quem mora ou vai
viajar para áreas de risco da infecção.
Isso tem
muito a ver com a maior atenção na consulta e no enfoque da prevenção de
doenças. Afinal, faz parte uma consulta bem feita, o médico perguntar a todo
paciente se está em dia com as vacinas.
SE AÉCIO
TIVESSE SIDO ELEITO, MAIS MÉDICOS ACABARIA; IMPOSSÍVEL SEM OS CUBANOS
Não é à toa
que, quando questionadas por mim, Conceição Lemes, sobre a hipótese do fim do Mais Médicose os cubanos irem embora,
Jaci, Emília e Rosilene foram taxativas: “De jeito, nenhum!”
Rosilene,
mãe de quatro filhos, argumenta: “Todos nós só ganhamos com a vinda deles. Eu
acho que eles deveriam ficar aqui para sempre”.
Não é
o que aconteceria se Aécio Neves, candidato do PSDB à presidência,tivesse
ganhado as eleições.
Explico.
Em julho,
durante ato, em Brasília, na Associação Médica Brasileira (AMB), quando recebeu
apoio de representantes da entidade, Aécio afirmou, sob os aplausos: “Os cubanos têm prazo de validade, ficarão aqui por três
anos”.
O número de
médicos existentes hoje no Brasil é insuficiente para atender às necessidades
do país.
Novos
recursos de Medicina estão sendo abertos. Porém, como a formação é demorada – 6
anos de graduação, mais 2 ou 3 de Residência Médica –, esses novos médicos só
estarão disponíveis no mercado por volta de 2022.
Cuba é o
único país do mundo que forma grande número de médicos. Os cubanos estão sendo fundamentais
na epidemia de ebola, na África.
Consequentemente,
sem os cubanos é impossível manter o Mais Médicos. Haveria um hiato entre os
médicos que estão se formando aqui e as necessidades da população brasileira.
Novo
Hamburgo é a prova. Sem o programa, no mínimo 12 mil consultas por mês
deixariam de ser feitas, retardando a sequência de atendimento.
Repercutiria,
aliás, em todo o Rio Grande do Sul, onde 76% dos municípios aderiram
aos Mais Médicos, que hoje chega a pessoas
que antes não tinham acesso à assistência médica: populações rurais, indígena.s,
de assentamentos dos trabalhadores sem terra, quilombolas, periferias das
grandes cidades, pessoas atingidas por barragens.
“O Mais Médicos está democratizando
o acesso à assistência médica como nunca se viu antes no país”, avalia Bolzan.
“Contudo, por má-fé ou motivos político-ideológicos, dirigentes de entidades
médicas continuam difundindo informações equivocadas. Pena que eles tenham uma visão
corporativa tão limitada, a ponto de relegar a saúde da população a segundo
plano.”
Em tempo 1: Convictamente.
durante anos e anos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a
Associação Médica Brasileira (AMB) bateram na mesma tecla: no Brasil não
havia falta de médicos, mas má distribuição deles pelo país.
O Mais Médicos provou que essa
afirmação era corporativista e não baseada em evidências
científicas: no Brasil, os médicos estão mal distribuídos, sim, mas também
faltam muitos profissionais.
O primeiro
especialista a mostrar a realidade foi o professor Mílton de Arruda Martins,
titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina (FMUSP), em entrevista, aqui
no Viomundo
Em tempo 2:
Como repórter especializada na área de saúde há 34
anos e usuária do SUS, observo que, no Brasil, a prática da
clínica médica é cada vez menos valorizada, prejudicando os pacientes. Muitos
médicos sequer ouvem direito as queixas dos doentes. Nesse particular,acredito
eu, profissionais brasileiros têm a aprender com os cubanos.
Em tempo 3: Se a
presidenta Dilma Rousseff teve a ousadia de bancar o Mais Médicos – afinal,
quem precisa de assistência médica, não pode esperar a solução ideal, que é a
criação da carreira de Estado –, Novo Hamburgo tem a sorte de contar com um
secretário da Saúde exemplar.
Luiz Carlos
Bolzan é competente, ótimo gestor, humano e ético. Além disso tudo,
100% comprometido com o SUS, ao contrário de uns e outros que se fantasiam
de “susetes” para ficar bem na fita com o pessoal da saúde pública.
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