O Judiciário no Brasil, segundo Fábio Konder Comparato
Julgamento de Filipe dos Santos (1936)
Em estudo
especial, um grande jurista brasileiro traça história de um poder submisso às elites, corrupto em sua essência e comprometido secularmente com a Injustiça
Por Fábio Konder Comparato
“A quem há de ser atribuída no Estado a função jurisdicional? Em
razão do que, devem os titulares desse poder exercê-lo? É admissível que os
órgãos judiciários atuem sem controles? A resposta a tais perguntas
fundamentais não pode ser feita no plano puramente teórico, sem uma análise
concreta da realidade social em que se insere a organização política. Este
artigo busca definir, com base nesses elementos estruturantes, a característica
própria da realidade social brasileira nos cinco séculos de sua formação
histórica, para poder compreender, em seguida, a atuação dos órgãos judiciários
dentro desse amplo contexto social, e concluir com uma proposta de mudança em
função do bem comum.”
Assim resume seu estudo
sobre o poder judiciário brasileiro o professor Fábio Konder Comparato,
professor titular de Filosofia do Direito e professor emérito da USP, doutor em
Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa pela Universidade de
Coimbra. Autor de vários livros, entre eles Muda Brasil – um projeto de Constituição, de 1987, com uma das primeiras
propostas de regulação da mídia no país, Konder Comparato é reconhecido pela
defesa da democracia e dos direitos humanos. Atuou em causas importantes da
vida do país: foi um dos advogados de acusação no processo de impeachment do
ex-presidente Fernando Collor e autor de uma das ações populares contra a
privatização da Companhia Vale do Rio Doce; criticou várias vezes a
criminalização do MST e em 2009, ao lado da professora Maria Vitória Benevides,
veio a público contra um editorial da Folha de S.Paulo que definiu como “ditabranda” a
ditadura militar brasileira.
Ao dar um panorama da
história brasileira da perspectiva do sistema judiciário, este estudo lança luz
no poder talvez mais obscuro do tripé que governa a República. Aquele que, em
sua máxima instância – o Conselho Nacional de Justiça –, não é submetido a
controle algum.
A função judiciária é essencial a toda organização política. Foi
a partir da instituição dos juizados reais na Baixa Idade Média, garantindo paz
e justiça às populações mais pobres, exploradas pelos barões feudais e
menosprezadas pelas autoridades eclesiásticas, que nasceu e pôde desenvolver-se
o Estado moderno.
Em assim sendo, não se
pode deixar de indagar: – A quem há de ser atribuída no Estado a função
jurisdicional? Em razão do que, devem os titulares desse poder exercê-lo? É
admissível que os órgãos judiciários atuem sem controles?
A resposta a tais perguntas fundamentais não pode ser feita no plano puramente
teórico, sem uma análise concreta da realidade social em que se insere a
organização política. Tal realidade define-se, essencialmente, por dois fatores
intimamente relacionados: de um lado, a estrutura efetiva (e não apenas
oficial) de poder dentro da sociedade; de outro lado, a mentalidade coletiva
vigente, entendendo-se como tal o conjunto dos valores éticos predominantes no
meio social. No Estado contemporâneo, notadamente no quadro da civilização
capitalista, a mentalidade coletiva passou a ser moldada decisivamente pelo
grupo social detentor do poder supremo, em função de seus próprios interesses.
Comecemos, pois, por
tentar definir, com base nesses elementos estruturantes, a característica
própria da realidade social brasileira nos cinco séculos de sua formação
histórica, para poder compreender, em seguida, a atuação dos órgãos judiciários
dentro desse amplo contexto social, e concluir com uma proposta de mudança em
função do bem comum.
O Dualismo Estrutural da
Sociedade Brasileira
Desde os primeiros
decênios da colonização portuguesa, a sociedade aqui organizada apresentou um
caráter dúplice: por trás do mundo jurídico oficial, protocolarmente
respeitado, sempre existiu uma realidade de fato bem diversa, em geral oculta
aos olhares externos, realidade essa em tudo conforme aos interesses próprios
dos titulares do poder efetivo.
Estes últimos, ao longo
de nossa evolução histórica, formaram uma parelha, constituída pela aliança dos
potentados econômicos privados com os grandes agentes estatais. Os componentes
desse casal político, desde o início da empresa colonizadora – pois a
colonização do Brasil, como bem salientou Caio Prado Jr. teve um caráter
nitidamente mercantil – buscaram, antes de tudo, realizar seus próprios
interesses e nunca o bem comum do povo. Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil,
publicada originalmente em 1627, assinalou esse fato com palavras
candentes: “Nem um
homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada um do
bem particular”.
Na verdade, esse conúbio
empresarial-estatal, bem ao contrário do que sustenta a ideologia do
liberalismo econômico, é da essência do sistema capitalista. Como disse o
grande historiador Fernand Braudel, que lecionou na Universidade de São Paulo
logo após a sua fundação, e estudou em profundidade a história da civilização
capitalista nos séculos XV a XVIII, com particular atenção à economia
brasileira, “o
capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado”.
Ora, desde o início da colonização, o
Brasil foi dotado de uma estrutura de poder e de uma mentalidade coletiva
marcadas pelo “espírito capitalista” de que falou Max Weber.
Em consequência, nunca
existiu, no seio de nossos grupos dominantes, uma clara consciência do
patrimônio público: os recursos estatais, mesmo quando oriundos de tributos,
sempre foram tidos como uma espécie de ativo patrimonial da sociedade de fato,
formada pelos empresários privados e os agentes estatais. De onde decorreu o
fato de a corrupção só dar ensejo à abertura de processo penal quando de
pequeno montante. Para os grandes corruptos – pelo menos até bem pouco tempo, e
fora da Administração Central! – sempre prevaleceu o velho costume da
impunidade. Ou seja, suje-se
gordo! como ilustrou Machado de Assis em conto famoso de Relíquias de Casa Velha.
Outro fator decisivo, na
consolidação da estrutura de poder e na formação do caráter nacional
brasileiro, foi a persistência legal do sistema de trabalho escravo durante
quase quatro séculos. Importa salientar que a prática do escravismo não se limitou
ao setor empresarial, à época fundamentalmente agrícola, mas abrangeu também,
de modo amplo, o meio urbano, a vida doméstica e a própria Igreja Católica.
Como assinalou o Visconde de Cairu em carta a um amigo, datada de 1781, “é
prova de extrema mendicidade o não ter um escravo”.
Dentre os vários efeitos
sociopolíticos engendrados pela escravidão no Brasil, dois merecem destaque.
Em primeiro lugar, a
não-aceitação, na mentalidade coletiva e nos costumes sociais, do princípio de
que “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos”,
como proclama o Artigo Primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948. A desigualdade social, com a qual nos defrontamos todos os dias,
raramente nos escandaliza; ela aparece, ao contrário, como algo inerente à
própria natureza humana.Luciano Figueiredo, Casa da Palavra, 2013, pp. 254/255.
No campo político,
predomina a convicção de que o poder só pode ser eficientemente exercido pela
camada superior da população, a mal chamada elite, e que a soberania popular, expressa
logo no primeiro artigo de nossa atual Constituição, é mero ideal retórico.
Ainda aí, como se vê, vigora a duplicidade de ordenamentos jurídicos, figurando
o oficial como simples fachada do edifício público, em cujo interior – oculto
aos olhares externos – a vida se organiza de forma bem diversa.
O segundo efeito grave
do escravismo na organização da sociedade brasileira é a tolerância com o abuso
de poder, público ou privado, velha herança da imunidade criminal de que sempre
gozaram os grandes senhores de escravos. Os excessos ou abusos de poder são
considerados fatos normais. Como bons exemplos dessa anomalia
institucionalizada, basta lembrar a ausência de punição dos agentes estatais,
responsáveis pelas inúmeras atrocidades cometidas sistematicamente durante a
ditadura getulista e o regime empresarial-militar instaurado em 1964. Em ambos
esses casos paradigmáticos, com o objetivo de “virar a página” ao término do
regime de exceção, os oligarcas lançaram mão do instituto da anistia, com o
beneplácito do Judiciário.
Posição do Judiciário no
Contexto da Realidade Social Brasileira
O corpo de magistrados,
entre nós, sempre integrou de modo geral os quadros dos grupos sociais
dominantes, partilhando integralmente sua mentalidade, vale dizer, suas
preferências valorativas, crenças e preconceitos; o que contribuiu
decisivamente para consolidar a duplicidade funcional de nossos ordenamentos
jurídicos nessa matéria. Ou seja, nossos juízes sempre interpretaram o direito
oficial à luz dos interesses dos potentados privados, mancomunados com os
agentes estatais, como se passa a expor.
Brasil colônia
Durante todo o período colonial, como as cidades no interior do território eram
pouco numerosas e muito afastadas umas das outras, as autoridades judiciárias
jamais puderam exercer, efetivamente, suas funções nas vastas áreas onde se
estendia sua jurisdição. A consequência natural foi que a administração da
justiça coube, inevitavelmente, aos poderosos
do sertão, os quais detinham os postos de coronéis ou
capitães-mores da milícia. Unia-se, assim, a força militar com o poderio
econômico, o que fazia da administração da justiça uma verdadeira caricatura.
Os conselheiros do Rei,
em Lisboa, procuraram corrigir essa distorção no final do século XVII, editando
várias medidas, entre as quais a limitação do tempo de exercício da função
militar de capitão-mor e a nomeação de juízes ordinários, em princípio não
sujeitos ao poder dos grandes proprietários rurais. Evidentemente, tais medidas
não produziram efeito algum, quando mais não fosse porque era impossível
encontrar no sertão pessoas alfabetizadas em número suficiente para exercer as
funções de magistrados. Levada essa questão ao conhecimento dos conselheiros da
Coroa, responderam estes que pouco importava fossem os magistrados analfabetos,
contanto que seus auxiliares imediatos soubessem ler e escrever...
Na verdade, foi o forte
vínculo de parentesco ou compadrio dos magistrados locais com as famílias
de mor qualidade,
que levou à criação dos juízes
de fora. Como esclareceu em 1715 o Marquês de Angeja, Vice-Rei do
Brasil, com essa nova espécie de magistrados procurava-se impedir que os juízes
locais “permitissem aos culpados de prosseguir em seus crimes, em razão de
parentesco ou deferência”.Isto, sem falar no fato costumeiro de vários juízes
tornarem-se fazendeiros ou comerciantes, apesar da incompatibilidade legal do
desempenho de funções oficiais com o exercício de uma atividade econômica
privada, quer em seu próprio nome, quer por intermédio de parentes ou amigos.
Como instâncias de
recurso judiciário, mas exercendo também funções administrativas, tivemos
inicialmente os donatários, em seguida os capitães-mores e os
capitães-generais, e finalmente o Governador-Geral, depois denominado Vice-Rei.
Em seguida, foram criados, com competência recursal e de corregedoria sobre os
juízes de primeira instância, os ouvidores de comarca, e acima destes os
ouvidores gerais, todos nomeados pelo Rei. Nos séculos XVII e XVIII,
fundaram-se, respectivamente na Bahia e no Rio de Janeiro, dois Tribunais da
Relação, com competência revisional em última instância, tribunais esses cujo
presidente nato era o Governador Geral, depois Vice-Rei.
Nenhum desses órgãos
judiciários superiores, porém, pôde exercer o necessário controle dos atos das
autoridades administrativas. Era mesmo costume que os Governadores, na
qualidade de presidentes dos Tribunais da Relação, procurassem se conciliar as
boas graças dos desembargadores, acrescentando aos ordenados destes, gratificações extraordinárias
denominadas propinas.
E quanto à fiscalização que devia ser exercida pelo Conselho Ultramarino sobre
o conjunto dos altos funcionários aqui em exercício, ela sempre deixou muito a
desejar, pois até o século XVIII havia uma só viagem marítima oficial por ano
entre Lisboa e o Brasil.
É de se lembrar, aliás,
que o primeiro Ouvidor-Geral a exercer suas funções no Brasil, o Desembargador
Pero Borges, aqui chegado com Tomé de Souza em 1549, tinha um passado funcional
pouco limpo. Em 1547, ele foi condenado a devolver à Fazenda Régia o dinheiro
que desviara das obras de construção de um aqueduto, de cuja supervisão fora
encarregado, em sua qualidade de Corregedor de Justiça em Elvas, no Alentejo. A
mesma sentença suspendeu-o por três anos do exercício de cargos públicos. No
entanto, em 17 de dezembro de 1548 o Rei o nomeou Ouvidor-Geral no Brasil, ou
seja, a maior autoridade judiciária abaixo do Governador-Geral. Vale dizer:
para o exercício de cargos públicos nesta terra as condenações penais anteriores
de nada contavam.
Para nos darmos conta da
generalidade dos casos de prevaricação de magistrados no período colonial,
basta ler alguns ofícios de presidentes dos Tribunais da Relação da Bahia e do
Rio de Janeiro no século XVIII.
Em 22 de janeiro de
1725, por exemplo, Vasco Fernandes César de Menezes escreveu da Bahia ao Rei de
Portugal nos seguintes termos:
“Senhor – Pelo Conselho
Ultramarino dou conta a V. Majestade do mal que procedem os Ouvidores do Ceará,
Paraíba, Alagoas, Sergipe del Rei, Rio de Janeiro e São Paulo, e das desordens
e excessos que se veem todos estes povos tão consternados e oprimidos, que
justamente se fazem dignos de que a grandeza e piedade de V. Majestade lhes não
dilate o remédio para que, com a dilatação dele não padeçam a última ruína ou
precipício a que continuamente os provoca a crueldade e tirania destes
bacharéis, que nenhum faz caso deste governo e muito menos desta Relação.”
Por sua vez, em 21 de
junho de 1768 o Marquês do Lavradio, na qualidade de Governador e
Capitão-General da Capitania da Bahia de Todos os Santos, enviou ofício ao
Vice-Rei Conde de Azambuja no Rio de Janeiro, no qual, entre outros fatos
relata:
“O Corpo da Relação
achei-o no estado que V. Excia. sabe a grande liberdade que eles se tinham
tomado uns com os outros o interesse público, que eles costumavam tomar nos
negócios particulares, em que eles estavam sendo juízes, finalmente a falta de
gravidade com que estavam em um lugar tão respeitoso, tudo me tem obrigado a
não faltar um só dia em ir presidir a Relação, donde me tem sido por várias
vezes necessário mostrar-lhes ou dizer-lhes o modo com que devem conduzir-se, e
a resolução em que estou de o não consertar diferentemente. Tenho o gosto de
que já hoje há menos disputas naquele lugar, não embaraçam uns os votos dos
outros, e procuram favorecer os seus afilhados com mais modéstia, ao menos com
um tal rebuço, que é necessário bastante cuidado para se descobrir os seus
afilhados particulares; porém, é certo que ainda os há, não considero que estes
se acabem enquanto persistirem alguns dos Ministros que aqui se conservam.”
Da mesma forma, em
ofício enviado em 1767 ao Secretário de Estado Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, irmão do Marquês de Pombal, o Vice-Rei do Brasil, Conde da Cunha,
assim se referiu ao Tribunal da Relação do Rio de Janeiro:
“Os ministros desta
Relação, que deviam concorrer para a boa harmonia do mesmo tribunal e para a
boa arrecadação da Real Fazenda, uniram-se ao chanceler João Alberto Castelo
Branco, para protegerem homens indignos, e outros devedores de quantias graves
à Real Fazenda; estes procedimentos foram tão excessivos que até na mesma
Relação e fora dela fizeram algumas desatenções ao procurador da Coroa.”
Nenhuma surpresa, por
conseguinte, se desde cedo entre nós, na maior parte dos casos, o serviço
judiciário existiu não para fazer justiça, mas para extorquir dinheiro. No
famoso Sermão de Santo
Antônio Pregando aos Peixes, [15] o Padre Vieira denuncia o
fato em palavras candentes:
“Vede um homem desses
que andam perseguidos de pleitos, ou acusados de crimes, e olhai quantos o
estão comendo. Come-o o Meirinho, come-o o Carcereiro, come-o o Escrivão,
come-o o Solicitador, come-o o Advogado, come-o o Inquiridor, come-o a
Testemunha, come-o o Julgador, e ainda não está sentenciado e já está comido.
São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os
corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está
executado nem sentenciado, e já está comido.”
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