O Judiciário no Brasil, segundo Fábio Konder Comparato (2)
Religioso, jornalista e revolucionário, Frei Caneca é condenado à morte em 1825, por rebelar-se contra o Império na Confederação do Equador
Em estudo especial, o grande jurista
brasileiro traça a história de um poder submisso às elites, corrupto em sua essência
e comprometido secularmente com a Injustiça
Brasil monárquico
A permanente duplicidade de ordenamentos jurídicos – um oficial, raramente
aplicado, e outro não-oficial, mas sempre efetivo – acentuou-se após a
independência do país. Como escreveu Sérgio Buarque de Holanda, “dificilmente
se podem compreender os traços dominantes da política imperial sem ter em conta
a presença de uma constituição ‘não escrita’ que, com a complacência dos dois
partidos, se sobrepõe em geral à carta de 24 e ao mesmo tempo vai
solapá-la”.
A revolta política que
levou à independência do país fez-se sob a égide de um pequeno grupo de
intelectuais, fascinados pelos ideais libertários e igualitários da Revolução
Francesa, logo depois consolidada em forma monárquica, ideais esses que
inspiraram a redação de nossa primeira Carta Política. Para os potentados
econômicos locais, porém, o que importava, antes de tudo, era o acesso aos
principais cargos administrativos e políticos, monopolizados pelos homens de
ultramar.
A Constituição de 1824
estabeleceu, solenemente, “a Divisão e harmonia dos Poderes Políticos” como “o
princípio conservador dos Direitos dos Cidadãos e o mais seguro meio de fazer
efetivas as garantias que a Constituição oferece” (art. 9). De acordo com tal
princípio, o Poder Judicial passou a ser um dos quatro Poderes Políticos (art.
10). Na vida real, porém, essa proclamada autonomia dos órgãos judiciários em
relação aos demais Poderes foi sempre ilusória. O corpo de magistrados
permaneceu estreitamente ligado às famílias dos ricos proprietários no plano
local, e subordinado ao Poder Executivo central na Corte.
Em 1827, reproduzindo
modelo já existente em Portugal, foi criado o cargo de juiz de paz, a ser
preenchido por pessoas sem formação específica e não remuneradas, eleitas pelos
cidadãos de cada paróquia. O Código de Processo Criminal de 1832, promulgado
sob o influxo das ideias liberais, confirmou a inovação e ampliou a competência
desses magistrados. Nos processos-crimes, cabia-lhes realizar o corpo de delito,
prender e interrogar os suspeitos, bem como denunciá-los perante o juiz de
direito. Nos processos cíveis, deviam eles procurar preliminarmente a
conciliação entre as partes, tendo competência para julgar as causas de pequeno
valor. Além disso, atuavam ainda os juízes de paz em matéria eleitoral,
determinando em cada pleito quem teria direito de voto.
Finalmente, competiam
ainda a tais magistrados várias funções policiais, tais como executar as
posturas das Câmaras de Vereadores sobre ordem e disciplina urbanas, resolver
as contendas entre moradores do distrito acerca de caminhos, pastos e danos
contra a propriedade alheia, destruir quilombos e comandar a força armada para
desfazer ajuntamentos que ameaçassem a ordem estabelecida.
Escusa dizer que tal instituição, malgrado sua aparência
democrática, tornou-se na realidade um instrumento decisivo no exercício do
poder local pelos senhores de engenho e grandes fazendeiros; os quais, aliás,
jamais se furtaram, em muitos casos, a se fazerem eleger, eles próprios, como
juízes de paz.
Por outro lado, e em aparente contraste com essa hegemonia dos
poderosos do sertão, o corpo de magistrados, com exceção dos juízes de paz,
permaneceu – sobretudo a partir da “política de regresso” dos conservadores,
instaurada em 1841 com a reforma do Código de Processo Criminal – submetido ao
poder político central. Competia doravante ao próprio Imperador nomear
diretamente os juízes de órfãos, os juízes municipais (com funções diversas das
dos juízes de paz), os juízes de direito (com competência territorial mais
ampla) e os promotores públicos.
Em pouco tempo, o processo de submissão do Judiciário ao
Executivo ampliou-se. A tal ponto que, em Circular de 7 de fevereiro de 1856
dirigida aos Presidentes das Províncias, o Imperador determinou que,
“competindo ao Poder Judiciário a aplicação aos casos ocorrentes das leis
penais, civis, comerciais e dos processos respectivos, cesse o abuso que
cometem muitas autoridades judiciárias, deixando de decidir os casos
ocorrentes, e sujeitando-os como dúvidas à decisão do governo imperial, pela
qual esperam, ainda que tardia seja, sobrestando e demorando a administração da
Justiça, que cabe em sua autoridade, e privando assim aos Tribunais Superiores
de decidirem em grau de recurso e competentemente as dúvidas que ocorrerem na
apreciação dos fatos e aplicação das leis”.
Obviamente, no entanto, por ocasião das nomeações de magistrados
locais, os chefes políticos da Corte ou das províncias acabavam sempre por se
compor com os grandes senhores rurais, quando mais não fosse porque as eleições
políticas eram decididas por estes últimos. Ainda aí, por conseguinte, o
ordenamento jurídico oficial não existia para valer, servindo unicamente de
fachada do edifício público.
Uma duplicidade ainda mais escandalosa ocorreu, durante todo o
Império, em matéria de escravidão.
A Constituição de 1824 declarou “desde já abolidos os açoites, a
tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis” (art. 179,
XIX).
Em 1830, porém, foi promulgado o Código Criminal, que previu a
aplicação da pena de galés. Conforme o disposto em seu art. 44, ela “sujeitará
os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados, e
a empregarem-se nos trabalhos públicos da província, onde tiver sido cometido o
delito, à disposição do Governo”. Escusa dizer que essa espécie de penalidade,
tida por não cruel pelo legislador de 1830, só se aplicava de fato aos
escravos.
E havia mais. Apesar da expressa proibição constitucional, os
cativos foram, até as vésperas da Abolição, mais precisamente até a Lei de 16
de outubro de 1886, marcados com ferro em brasa, e regularmente sujeitos à pena
de açoite. O mesmo Código Criminal, em seu art. 60, fixava para os escravos o
máximo de 50 (cinquenta) açoites por dia. Mas a disposição legal nunca foi
respeitada. Era comum o pobre diabo sofrer até duzentas chibatadas num só dia.
A lei referida só foi votada na Câmara dos Deputados porque, pouco antes, dois
de quatro escravos condenados a 300 açoites por um tribunal do júri de Paraíba
do Sul vieram a falecer.
Tudo isso, sem falar dos castigos mutilantes, como todos os
dentes quebrados, dedos decepados ou seios furados.
Ora, até a Abolição, os órgãos judiciários jamais se preocuparam
em impedir a aplicação desse direito não escrito da escravidão, quando mais não
fosse porque vários magistrados eram proprietários de fazendas, com bom número
de escravos.
O melhor exemplo dessa cegueira deliberada dos órgãos
judiciários a respeito dos abusos do sistema escravista foi a permanência do
tráfico negreiro por longos anos, em situação de gritante ilegalidade.
Um alvará de 26 de janeiro de 1818, baixado pelo Rei português
ainda no Brasil, em cumprimento a tratado celebrado com a Inglaterra,
determinou a proibição do comércio infame sob pena de perdimento dos escravos,
os quais “imediatamente ficarão libertos”. Tornado o país independente,
firmou-se com a Inglaterra nova convenção, em 1826, pela qual o tráfico que se
fizesse depois de três anos da troca de ratificações seria equiparado à
pirataria. Durante a Regência, sob pressão dos ingleses, tal proibição foi
reiterada com a promulgação da Lei de 7 de novembro de 1831. Pelo teor desse
diploma legal, eram declarados livres “todos os escravos, que entrarem no
território ou portos do Brasil, vindos de fora”. Eles seriam reexportados “para
qualquer parte da África”, e os “importadores” sujeitos a processo penal;
entendendo-se por “importadores”, não só o comandante, o mestre e o
contramestre da embarcação, mas também os armadores da expedição marítima, bem
como todos aqueles que “cientemente comprarem como escravos” as pessoas
ilegalmente trazidas ou desembarcadas no Brasil.
Como se tratava simplesmente de uma “lei para inglês ver”,
segundo a expressão consagrada, nenhuma das penas nela cominadas foi jamais
aplicada em juízo. Calcula-se terem sido para aqui contrabandeados como
escravos, desde a promulgação daquele diploma legal até 1850 – quando entrou em
vigor a Lei Eusébio de Queiroz, que reiterou a proibição do tráfico negreiro –
nada menos do que 750 mil africanos.
Mesmo após a promulgação desta última lei, no entanto, a
responsabilização criminal dos traficantes de escravos e seus comparsas deixou
de ser plenamente efetivada, dado que a competência para julgar tais crimes era
do tribunal do júri, cujos integrantes submetiam-se, obviamente, à pressão dos
potentados locais. Como assinalou Saint-Hilaire, “o temor das vinganças,
muito fáceis no interior, onde a polícia é quase sem força, contribui a tornar
os jurados mais indulgentes; eles são a isso levados pelo hábito bem antigo de
ceder a todas as solicitações (empenhos)”. E acrescentou que até 1847 a própria
legislação em vigor estimulava a “excessiva moleza” dos jurados.
Não era de surpreender, por conseguinte, se por efeito da
ausência de controles oficiais efetivos sobre a atuação da magistratura, sua
honestidade durante o Império tenha deixado muito a desejar.
Os mentores intelectuais da Constituição de 24 de março de 1824,
sem dúvida preocupados com a longa tradição de venalidade do corpo judiciário
durante o período colonial, decidiram incluir dois dispositivos tendentes a
extirpá-la, senão reduzi-la ao máximo:
Art. 156 – Todos os Juízes de Direito e os Oficiais de Justiça
são responsáveis pelos abusos de poder e prevaricações que cometerem no
exercício de seus Empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por Lei
regulamentar.
Art. 157 – Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá
contra eles ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo
próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo
obedecida na Lei.
Não se sabe se tais determinações constitucionais foram
cumpridas. O que se sabe, porém, é que alguns ilustres viajantes estrangeiros –
e até o próprio Imperador D. Pedro II – fizeram questão de pôr em foco a
generalizada corrupção da magistratura, que grassou durante o período
monárquico.
No relato de sua Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e
Minas Gerais, efetuada no segundo decênio do século XIX, Auguste de
Saint-Hilaire comenta que “em um país no qual uma longa escravidão fez, por
assim dizer, da corrupção uma espécie de hábito, os magistrados, libertos de
qualquer espécie de vigilância, podem impunemente ceder às tentações”.
Na mesma época, o comerciante John Luccock, que para cá viera
após a Abertura dos Portos, comentando o costume da aquisição por vizinhos, em
hasta pública, de terras penhoradas pelo não pagamento de impostos, observa:
“Nessa transação, observam-se estritamente as formalidades
legais e tem-se a ilusão de que a propriedade foi adjudicada ao maior ofertante
da hasta pública; mas na realidade, o favoritismo prevalece sobre a justiça e o
direito, pois que não há ninguém bastante atrevido para aumentar o lance de uma
pessoa de fortuna e influência.” […] “Na realidade, parece ser de regra que em
todo o Brasil a Justiça seja comprada. Esse sentimento se acha por tal forma
arraigado nos costumes e na maneira geral de pensar, que ninguém o considera
ilegal [a tort]; por outro lado, protestar contra a prática de semelhante
máxima pareceria não somente ridículo, como serviria apenas para atirar o
queixoso em completa ruína.”
Aliás, como apontou Charles Darwin em seu diário da viagem do
Beagle, em data de 3 de julho de 1832, quando fazia estadia no Brasil, a
desonestidade da Justiça era apenas uma parte da corrupção generalizada do
serviço público:
“Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra
um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui
podem ser subornados. Um homem pode tornar-se marujo ou médico, ou assumir
qualquer outra profissão, se puder pagar o suficiente. Foi asseverado com
gravidade por brasileiros que a única falha que eles encontraram nas leis
inglesas foi a de não poderem perceber que as pessoas ricas e respeitáveis
tivessem qualquer vantagem sobre os miseráveis e os pobres.”
Segundo consta, nem mesmo o mais alto tribunal do Império
permaneceu isento de corrupção. Em declaração ao Visconde de Sinimbu, D. Pedro
II desabafou:
“A primeira necessidade da magistratura é a responsabilidade
eficaz; e enquanto alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por
exemplo, certos prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça,
não se conseguirá esse fim”.
O período republicano
A Constituição de 1891, ao dispor sobre o Poder Judiciário, estabeleceu expressamente,
mas tão-só para os juízes federais, a garantia de vitaliciedade, determinando
ainda que “os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser
diminuídos” (art. 57, caput e § 1º). Tal norma deixava supor que
essas garantias constitucionais não seriam necessariamente aplicáveis à
magistratura estadual; o que felizmente foi afastado.
Durante os governos militares de Deodoro e Floriano, houve
grande pressão política para submeter os julgamentos do novo Supremo Tribunal
Federal ao poder de controle final do Senado. Como a Carta Política
estabelecera, à imagem da Constituição norte-americana, a competência do Senado
Federal para julgar os Ministros do Supremo em caso de impeachment,
sustentou-se que, mesmo fora dessa hipótese, caberia àquele órgão político
rever as decisões da mais alta Corte de Justiça. Essa opinião absurda recebeu
longa e profunda refutação por parte de Rui Barbosa, em seu discurso de posse
do lugar de sócio do Instituto dos Advogados, na sessão de 11 de maio de
1911. Ela foi, afinal, abandonada.
Registre-se, porém, a conclusão desalentadora de João Mangabeira
sobre atuação do Supremo Tribunal Federal, desde sua instituição até o início
do Estado Novo getulista em 1937:
“O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e
destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do
Governo, a deixava desamparada nos dias de risco ou de terror, quando,
exatamente, mais necessitada estava ela da lealdade, da fidelidade e da coragem
dos seus defensores.”
Registre-se ainda que durante a República Velha, com apoio nas
ideias federalistas, a dominação de fato dos potentados locais (os famosos
“coronéis”) sobre os magistrados recrudesceu enormemente.
A Constituição de 1934, que vigorou apenas por três anos,
acrescentou em benefício dos magistrados, além da vitaliciedade e
irredutibilidade de vencimentos, também a garantia da inamovibilidade, sem
fazer distinções entre juízes ou tribunais federais e estaduais (art. 64).
Dispôs, contudo, que “os juízes, ainda que em disponibilidade, não podem
exercer qualquer outra função pública, salvo o magistério e os casos previstos
na Constituição”; acrescentando que “a violação deste preceito importa a perda
do cargo judiciário e de todas as vantagens correspondentes” (art. 65).
A Constituição de 1946 estabeleceu para os magistrados em geral,
além das três garantias acima citadas, a determinação de que “a aposentadoria
será compulsória aos setenta anos de idade ou por invalidez comprovada, e
facultativa após trinta anos de serviço público, contados na forma da lei”
(art. 95).
Instaurado o regime de exceção empresarial-militar com o golpe
de Estado de 1964, manteve-se pro forma a vigência do ordenamento
constitucional, com a supressão de fato das liberdades e garantias individuais,
bem como dos direitos sociais. Em 13 de dezembro de 1968, o chamado Ato
Institucional nº 5 emasculou a magistratura, ao decretar a suspensão oficial
das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e
estabilidade (art. 6º), além de oficializar a suspensão do habeas corpus “nos
casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e
social e a economia popular” (art. 10). Isto quanto à Justiça Civil, pois a
Justiça Militar, durante toda a duração do regime autoritário, colaborou
vergonhosamente na repressão dos opositores políticos.
Extinto o regime autoritário, foi promulgada em 1988 a
Constituição Federal em vigor, a qual regulou o Poder Judiciário com muito
maior amplitude do que todas as anteriores.
Aliás, já na fase final do regime autoritário, exatamente em 14
de março de 1979, foi editada a Lei Complementar nº 35, instituindo a Lei
Orgânica da Magistratura Nacional. Entre outras disposições, essa lei criou o
Conselho Nacional da Magistratura. Em 1998, porém, em simples despacho de um de
seus Ministros, o Supremo Tribunal Federal julgou-o extinto, em razão da
superveniência àquela Lei Complementar da Constituição Federal de 1988, a qual
nada dispunha a respeito do mencionado Conselho. Ele foi, afinal, ressuscitado,
doravante sob a denominação de Conselho Nacional de Justiça, pela Emenda
Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004.
A criação desse órgão de controle da magistratura veio, sem dúvida,
atender à necessidade – longamente sentida desde o período colonial, como
lembrado acima – de se estabelecer um regime de responsabilidade mais amplo e
preciso dos magistrados. A reação destes à criação do novo órgão foi, porém,
desde logo muito negativa. Antes mesmo de sua publicação oficial, a Emenda nº
45 foi objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3367), proposta
pela Associação dos Magistrados Brasileiros. O Supremo Tribunal Federal, embora
afastando por unanimidade o vício formal da inconstitucionalidade, decidiu
tão-só por maioria julgar improcedente a ação em sua totalidade.
Assinale-se, por fim, como evento significativo de um começo de
mudança na mentalidade conservadora de nossos magistrados, a fundação em 13 de
maio de 1991 da Associação Juízes para a Democracia. Ela tem como objetivos
estatutários a defesa do regime democrático de direito, fundado na dignidade da
pessoa humana, a democratização interna do Poder Judiciário, bem como a
valorização das funções jurisdicionais como autêntico serviço público, isto é,
serviço ao povo.
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