O prisioneiro que apavora o império americano (final)
Reportagem em duas partes. Leia a primeira aqui
–
O caso Assange chegou à
Suprema Corte do Reino Unido, finalmente, em maio de 2012. Num julgamento que
acolheu o mandato de detenção europeu (EAW, European Arrest Warrant) – cujas
rígidas exigências não deixaram quase nenhuma margem de manobra aos tribunais –
os juízes acharam que os procuradores europeus podiam emitir mandatos de
extradição no Reino Unido, sem qualquer supervisão judicial, apesar de o
Parlamento pretender o contrário. Eles deixaram claro que o Parlamento havia
sido “enganado” pelo governo Blair. O tribunal ficou dividido, 5 a 2, e decidiu
contra Assange.
Contudo, o presidente da
Suprema Corte, Lord Phillips, cometeu um erro. Ele aplicou a Convenção de Viena
na interpretação de tratados, permitindo que o Estado ignorasse a letra da lei.
Como apontou a advogada de Assange, Dinah Rose QC, isso não se aplica ao EAW.
A Corte Suprema
reconheceu esse erro crucial somente quando teve de lidar com outra apelação
contra o mandato, em novembro de 2013. A decisão sobre Assange estava errada,
mas era tarde demais para retroceder. Com a iminência da extradição, o
procurador sueco disse aos advogados de Assange que este, uma vez na Suécia,
seria imediatamente levado a uma das infames prisões preventivas da Suécia.
Era difícil a escolha de Assange: extradição para um país que se
recusou a dizer se ia ou não enviá-lo para os EUA; ou ir atrás do que parecia
ser sua última oportunidade de refúgio e segurança. Apoiado pela maioria dos
países da América Latina, o corajoso governo do Equador concedeu ao criador do Wikileaks
o status de refugiado, com base em provas documentais e aconselhamento jurídico
de que ele enfrentava perspectiva de punição cruel e incomum nos EUA; de que
essa ameaça violava seus direitos humanos básicos; e de que próprio governo
dele, a Austrália, o havia abandonado e era conivente com Washington. A
primeira-ministra trabalhista australiana, Julia Gillard, havia até mesmo
ameaçado deter seu passaporte.
Gareth Peirce, a
renomada advogada de direitos humanos que representa Assange em Londres, escreveu
ao então ministro do exterior australiano, Kevin Rudd: “Dado o alcance do
debate público, frequentemente baseado em pressupostos inteiramente falsos … é
muito difícil tentar preservar para Assange qualquer presunção de inocência.
Assange tem agora sobre sua cabeça não uma, mas duas espadas de Dâmocles, de
potencial extradição para duas jurisdições diferentes por causa de dois
supostos crimes, nenhum dos quais são crimes em seu próprio país, e sua
segurança pessoal está em risco em circunstâncias altamente carregadas de teor
político.”
Somente quando contatou
o Alto Comissariado Australiano em Londres, Peirce
recebeu uma resposta – que não replicava nenhum dos pontos levantados. Numa
reunião a que compareci com ela, o cônsul geral australiano, Ken Pascoe, fez a
espantosa afirmação de que sabia “apenas o que leio nos jornais” sobre os
detalhes do caso.
Enquanto isso, a
perspectiva de um erro judiciário grotesco ficou submersa numa campanha
injuriosa contra o fundador do WikiLeaks. Profundamente pessoal, mesquinha, com
ataques cruéis e desumanos dirigidos a um homem não acusado de qualquer crime,
e ainda assim submetido ao mesmo tratamento de um réu que enfrenta extradição
acusado de assassinar sua esposa. O fato de que a ameaça sofrida por Assange
significava uma ameaça a todos os jornalistas, à liberdade de expressão, ficou
esquecido em meio à sordidez e ambição.
Publicaram-se livros, negociaram-se filmes, carreiras na mídia foram
alavancadas às custas do WikiLeaks, com a
suposição de que atacar Assange era um jogo justo e ele era pobre demais para
processá-los. As pessoas ganharam dinheiro, muito dinheiro, enquanto o
WikiLeaks lutava para sobreviver. O editor do The
Guardian, Alan Rusbridger,
considerou as revelações do WikiLeaks, que seu jornal publicou, “um dos maiores
furos jornalísticos dos últimos 30 anos”. A publicação tornou-se parte de seu
plano de marketing para aumentar o preço de capa do jornal.
Sem que um centavo
sequer fosse para Assange ou para o WikiLeaks, um badalado livro do Guardian conduziu a um lucrativo filme de
Hollywood. Os autores do livro, Luke Harding e David Leigh, descreveram
Assange, gratuitamente, como uma “personalidade destruída” e “cruel”. Eles
também revelaram a senha secreta que Assange havia dado em confiança ao jornal,
destinada a proteger um arquivo digital com os telegramas da embaixada dos EUA.
Com Assange agora preso na embaixada do Equador, Harding, postado do lado de
fora, junto à polícia, regozijou-se em seu blog dizendo que “a Scotland Yard
deverá rir por último.”
A injustiça cometida
contra Assange é uma das razões pelas quais o Parlamento reformou, mais tarde,
o Ato de Extradição (Extradition Act), para prevenir o mau uso do mandato de
detenção europeu. A perseguição draconiana usada contra ele não poderia mais acontecer;
acusações teriam de ser feitas e “interrogatórios” seriam insuficientes como
base para extradição. “Seu caso foi encerrado, estocado e colocado num barril”,
disse-me Gareth Peirce, “essas mudanças na lei significam que o Reino Unido
agora reconhece como certo tudo o que foi argumentado em seu caso. No entanto,
isso não o beneficia.” Em outras palavras, a mudança na legislação do Reino
Unido, em 2014, significa que Assange teria ganho o caso e não seria forçado a
asilar-se.
A decisão do Equador de
proteger Assange em 2012 tornou-se um grande caso internacional. Embora a
garantia de asilo seja um ato humanitário, e o poder de fazê-lo usufruído por
todos os Estados sob a legislação internacional, tanto a Suécia como o Reino
Unido recusaram-se a reconhecer a legitimidade da decisão do Equador. Ignorando
a lei internacional, o governo Cameron recusou-se a garantir para Assange uma
viagem segura até o Equador. Ao contrário, a embaixada equatoriana foi cercada
e seu governo sofreu abusos, com uma série de ultimatos. Quando o ministro do
Exterior, Willian Hague, ameaçou violar a Convenção de Viena de Relações
Diplomáticas, anunciando que iria remover a inviolabilidade diplomática da
embaixada e mandou a polícia prender Assange, a indignação causada em todo o
mundo forçou o governo a recuar. Numa noite, a polícia apareceu na janela da
embaixada em uma tentativa óbvia de intimidar Assange e seus protetores.
Desde então, Julian
Assange tem vivido confinado num pequeno quarto sob a proteção do Equador, sem
tomar sol e sem espaço para se exercitar, cercado pela polícia com ordem para
prendê-lo. Durante três anos, o Equador deixou claro à promotora pública sueca
que Assange está disponível para ser interrogado na embaixada de Londres, e por
três anos ela se manteve intransigente. Nesse período, a Suécia interrogou, no
Reino Unido, 44 pessoas ligadas à investigações policiais. Seu papel, e o do
Estado sueco, é evidentemente político; e para a promotora Marianne Ny, que
cuida do caso e se aposentará em dois anos, é necessário “vencer”.
Desesperado, Assange
recorreu do mandato de prisão nos tribunais suecos. Seus advogados citaram
acórdãos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, lembrando que ele esteve sob
detenção arbitrária e indefinida, que já foi virtualmente prisioneiro por mais
tempo que qualquer pena efetiva cabível em seu caso, ainda que fosse
considerado culpado. O juiz do Tribunal de Segunda Instância concordou com os
advogados de Assange: a promotora havia efetivamente violado o direito, ao
manter o caso suspenso durante anos. Outro juiz emitiu uma repreensão ao
Ministério Público. E ainda assim a promotora Ny desafiou o tribunal.
Em dezembro passado,
Assange levou seu caso à Suprema Corte sueca, que pediu explicações ao chefe de
Marianne Ny – o Promotor Geral da Suécia, Anders Perklev. No dia seguinte Ny
anunciou, sem explicações, que havia mudado de ideia e iria interrogar Assange
em Londres.
Em sua apresentação à
Suprema Corte, o procurador geral fez algumas concessões importantes:
argumentou que a coerção de Assange havia sido “intrusiva” e que o período na
embaixada foi de “grande pressão” sobre ele. Admitiu inclusive que, se o
processo tivesse algum dia ido para acusação, julgamento, e cumprimento de
sentença na Suécia, Julian Assange já teria deixado a prisão há muito tempo.
Numa decisão dividida,
um juiz da Corte Suprema argumentou que o mandato de prisão deveria ter sido
revogado. A maioria dos juízes resolveu que, já que a promotora disse que iria
agora para Londres, os argumentos de Assange haviam se tornado “consideráveis”.
Mas o Tribunal de Justiça decidiu que, se ela não tivesse mudado de ideia de
repente, teria se pronunciado contra a procuradora. Justiça por capricho. Em
artigo publicado na imprensa sueca, um antigo procurador sueco, Rolf Hillegren,
acusou Ny de perder toda e qualquer imparcialidade. Ele descreveu como
“anormal” sua manutenção no caso e exigiu que ela fosse substituída.
Tendo dito que iria para
Londres em junho, Ny não foi, mas enviou um representante, sabendo que o
interrogatório não seria legal nessas circunstâncias, especialmente porque a
Suécia não se dignou pedir ao Equador que marcasse o encontro. Ao mesmo tempo,
seu escritório avisou o tabloide sueco Expressen,
que mandou seu correspondente em Londres ficar esperando “notícias” no lado de
fora da embaixada do Equador. A notícia foi que Ny estava cancelando o
compromisso e culpava o Equador pela confusão; e ainda, implicitamente, que
Assange era “não cooperativo” – quando a verdade era justamente o oposto.
À medida em que se
aproxima a data de prescrição dos “crimes” atribuídos a Assange – 20 de agosto
de 2015 – vai ter início, certamente, outro capítulo desta história horrenda.
Marianne Ny tentará tirar mais um coelho da cartola, para beneficiar os
comissários e procuradores em Washington. Talvez nada disto seja surpreendente.
Em 2008, uma guerra contra o WikiLeaks e Julian Assange foi prevista num
documento secreto do Pentágono preparado pelo “Setor de Avaliação de
Cyber-contrainteligência”. Ele descreve um plano detalhado para destruir o
sentimento de “confiança”, que é o ‘”centro de gravidade” do WikiLeaks. Isto
poderia ser conseguido com ameaças de “exposição [e] processo criminal”. O
objetivo era silenciar e criminalizar essa rara fonte de informação verdadeira
no jornalismo contemporâneo, difamando seu método. Enquanto esse escândalo
continua, a própria noção de justiça fica reduzida, juntamente com a reputação
da Suécia, e a sombra da ameaça dos Estados Unidos da América paira sobre todos
nós.
–
Para importante informação adicional, acesse os seguintes links:
Para importante informação adicional, acesse os seguintes links:
Comentários
Postar um comentário
comentário no blogspot