EUA: por trás da Casa Branca, o Estado Profundo
Há o governo visível localizado em torno do National Mall, em
Washington, mas também há outro governo, mais sombrio e indefinido, que não é
explicado na escola secundária ou observável por turistas na Casa Branca ou no
Capitólio. O primeiro consiste na política partidária tradicional de
Washington: a ponta do iceberg que os jornais e TVs enxergam diariamente e que,
em teoria, pode ser controlado via eleições. O subsolo do iceberg será
denominado Estado Profundo, que
opera por sua própria bússola, independentemente de quem está, em teoria, no
poder.
Durante os últimos cinco anos, a mídia
vem sendo inundada por especialistas que criticam a política fragmentada de
Washington. O saber convencional diz que desacordo e impasses entre os partidos
são a nova normalidade. Certamente é isso mesmo, e tenho sido um dos críticos
mais severos desse estado de coisas. Mas é também imperativo reconhecer os
limites dessa crítica, quando se trata do sistema de governo norte-americano.
Por um lado, a crítica é evidente: naquilo que pode ser observado pelo público,
o Congresso está num impasse irremediável, o pior desde os anos 1850, década
violentamente rancorosa anterior à Guerra Civil.
Como escrevi em “The Party is Over“,
o objetivo atual dos congressistas republicanos é debilitar o poder executivo,
pelo menos até que um presidente republicano seja eleito (uma meta que as leis
de exclusão de eleitores, em estados controlados pelo Partido pretendem
claramente alcançar).
O presidente Obama não pode executar seu orçamento e políticas domésticas; por
causa do incessante obstrucionismo do GOP, ele não apenas não pode preencher um
grande número de vagas na magistratura federal, como sequer consegue a nomeação
de suas mais inócuas indicações para a administração federal. Democratas que controlam
o Senado responderam enfraquecendo a obstrução das nomeações, mas os
republicanos vão com certeza reagir com outras táticas parlamentares
protelatórias. Esta estratégia resulta na anulação dos braços do Poder
Executivo no Congresso, por um partido que tem maioria em apenas uma das casas
do Congresso.
A despeito dessa aparente impotência, o
presidente Obama pode matar cidadãos americanos sem o devido processo, deter
indefinidamente prisioneiros sem acusação, exercer vigilância tipo “arrastão”,
sem mandado judicial, contra o povo norte-americano, e envolver-se em caça às
bruxas sem precedentes – ao menos desde a era McCarthy – contra funcionários
federais (o chamado Insider
Threat Program, ou “Programa
de Ameaça Interna”). Nos Estados Unidos, esse poder caracteriza-se pela
exibição de força intimidatória
maciça,
pelas polícias de nível local, estadual e federal. No exterior, o presidente
Obama pode iniciar guerras à vontade e envolver-se em praticamente qualquer
outra atividade, sem muita licença do Congresso Nacional, incluindo aí a
organização do pouso forçado de um avião que transportava um
presidente de Estado soberano sobre território estrangeiro. Apesar da
hipocrisia habitual sobre a expansão de poderes do Executivo por Obama, suposto
aspirante a ditador, até recentemente ouvimos muito pouco de congressistas
republicanos sobre essas ações – com a exceção menor de um provocador como o
senador Rand Paul, do Kentucky. Os democratas, salvo alguns independentes como
Ron Wyden, do Oregon, não estão tampouco perturbados – a ponto de permitirem
aparente perjúrio de funcionários do Executivo, em
depoimento sob juramento ao Congresso, sobre vigilância ilegal.
Estes não são casos isolados de uma
contradição; eles têm sido tão onipresentes que a tendência é ignorá-los como
ruído de fundo. Em 2011, no período em que a guerra política em torno do teto
da dívida começava a paralisar o serviço de governança em Washington, o governo
dos Estados Unidos de alguma forma conseguiu recursos para derrubar o regime de
Muammar Kadhafi na Líbia, e quando a instabilidade criada pelo golpe respingou
até o Mali, providenciou assistência aberta e encoberta para que houvesse ali
uma intervenção francesa. Num momento em que havia um debate acalorado sobre
inspeções contínuas da carne e do controle de tráfego aéreo civil, por causa da
crise orçamentária, nosso governo foi de algum modo capaz de comprometer 115
milhões de dólares para manter uma guerra civil na Síria, e pagar ao menos 100 milhões de libras para o
Escritório de Comunicações do governo do Reino Unido para comprar influência e
acesso à inteligência daquele país. Desde 2007, duas pontes que ligam rodovias
interestaduais desabaram devido à falta de manutenção da infra-estrutura, uma
delas matando treze pessoas; durante esse mesmo período, o governo gastou 1,7 bilhões de dólares na construção
de um edifício do tamanho de dezessete campos de futebol, em Utah. Essa estrutura
gigantesca destina-se a permitir que a Agência de Segurança Nacional (NSA)
armazene um yottabyte de informações, a maior que os
cientistas da computação jamais tiveram. Um yottabyte é igual a 500 quintilhões
de páginas de texto. Eles precisam disso tudo para armazenar cada traço
eletrônico que você faz.
Sim, há outro governo oculto por trás
daquele que é visível em cada extremidade da Pennsylvania Avenue, uma entidade
híbrida de instituições públicas e privadas a governar o país, oportuna e
inoportunamente, conforme padrões consistentes, conectados, mas apenas
intermitentemente controlados pelo Estado visível cujos líderes escolhemos.
Minha análise desse fenômeno não é a exposição de uma cabala secreta e
conspirativa; em sua maioria, o Estado dentro do Estado esconde-se à vista de
todos, e seus operadores atuam principalmente à luz do dia. Também não pode ser
chamado com precisão de “establishment”. Todas as sociedades complexas têm um
“establishment”, uma rede social comprometida com seu próprio enriquecimento e
perpetuação. Quanto ao seu escopo, recursos financeiros e alcance global
direto, o estado norte-americano híbrido, o Estado Profundo, consiste numa única
classe. Isso posto, ela não é nem onisciente nem invencível. Nem é a
instituição tão sinistra (embora tenha aspectos altamente sinistros) quanto
implacavelmente bem entrincheirada. Longe de ser invencível, seus fracassos,
como no Iraque, Afeganistão e Líbia, são bastante rotineiros, de modo que só a
proteção do Estado Profundo a seu pessoal de alto escalão lhes permite escapar
das consequências de sua tão frequente inépcia.
Como consegui fazer uma análise do Estado
Profundo, e por que estaria eu apto a fazê-la?
Como membro da equipe do Congresso especializado em segurança
nacional, por 28 anos, e detentor de um certificado de segurança top secret, eu me encontrava pelo menos nas
franjas do mundo que estou descrevendo, ainda que não totalmente, pela adesão
plena e disposição psicológica. Mas, como praticamente todas as pessoas
empregadas, fui até certo ponto assimilado pela cultura da instituição em que
trabalhava, e só lentamente – a partir de pouco antes da invasão do
Iraque – , é que passei a questionar fundamentalmente as razões de Estado que
motivam as pessoas que são “os decisores”, para citar George W. Bush.
Assimilação cultural é parte daquilo que
o psicólogo Irving L. Janis chamou de “pensamento de grupo”, a
capacidade camaleônica das pessoas assimilarem os pontos de vista dos seus
superiores e colegas. Esta síndrome é endêmica em Washington: a cidade é
caracterizada por modismos repentinos, sejam eles orçamento bienal, grandes
negócios ou invasão de países. Então, depois de um tempo, todos os garotos
espertos da cidade largam mão dessas ideias, como se contivessem material
radioativo. Assim como os militares, todo mundo tem de embarcar na missão, e
questionar a missão não é um movimento propulsor da carreira. O universo de
pessoas que analisam criticamente os fatos nas instituições em que trabalham
sempre será pequeno. Como disse Upton Sinclair: “É difícil fazer um homem entender alguma coisa quando seu salário
depende de não entender essa coisa.”
Sentar-se olhando para o relógio na
parede quase branca do escritório às onze da noite, jurando nunca, jamais em
sua vida comer outro pedaço de pizza pra viagem, não é uma experiência que
convoca os mais altos instintos literários de um possível memorialista. Depois
de um tempo, um funcionário estatal começa a ouvir coisas que, em outro
contexto, seriam bastante impressionantes, ou pelo menos notáveis, e ainda
assim elas simplesmente escapam da consciência: “Isso significa que o número de
grupos terroristas contra os quais estamos lutando é informação
confidencial?” Não se admira que poucas pessoas sejam denunciantes,
para além da terrível retaliação que a denúncia de irregularidades
frequentemente provoca: a menos que seja abençoado com imaginação e fino senso
de ironia, é fácil tornar-se imune à curiosidade do próprio ambiente.
Parafraseando o inimitável Donald Rumsfeld, eu não sabia tudo o que sabia, pelo
menos até estar há um par de anos longe do governo para refletir sobre isso.
O Estado Profundo não abrange todo o
governo. É um híbrido de segurança nacional e agências de aplicação da lei: o
Departamento de Defesa, o Departamento de Estado, o Departamento de Segurança
Interna, a Agência de Inteligência Central (CIA) e o Departamento de Justiça.
Isso inclui também o Departamento do Tesouro, por causa de sua jurisdição
sobre os fluxos financeiros, sua aplicação de sanções internacionais e sua
simbiose orgânica com Wall Street. Todas essas agências são coordenadas pelo
Gabinete Executivo do Presidente via Conselho de Segurança Nacional. Certas
áreas chaves do Judiciário pertencem ao Estado Profundo, como a Corte de
Vigilância de Inteligência Exterior, cujas ações são um mistério até mesmo para
a maioria dos membros do Congresso. Está também incluído um punhado de
tribunais federais cruciais, tais como o Distrito Leste de Virgínia e o
Distrito Sul de Manhattan, nos quais são conduzidos procedimentos sensíveis em
casos de segurança nacional. O componente final do governo (e possivelmente o
último em prioridade entre os ramos formais de governo estabelecidos pela
Constituição) é uma espécie de filé do Congresso, que consiste na liderança do
Congresso e alguns membros dos comitês de Defesa e Inteligência. O resto do
Congresso, normalmente tão turbulento e partidarizado, é em sua maioria apenas
intermitentemente consciente do Estado Profundo e, quando necessário,
normalmente resigna-se diante de algumas poucas e bem escolhidas palavras de
emissários do Estado.
Eu assisti a esse tipo de submissão em
várias ocasiões. Um incidente memorável foi a votação da Lei de Alterações da
Vigilância de Inteligência Estrangeira, de 2008. Essa lei legalizou
retroativamente a vigilância ilegal e inconstitucional revelada pela primeira
vez pelo The New York
Times em 2005 e indenizou as
empresas de telecomunicações pela cooperação nesses atos. A lei passou
facilmente: só se exigiu a invocação da palavra “terrorismo” e a maioria dos
membros do Congresso respondeu como limalha de ferro a um imã. Um dos que
responderam desse modo foi o senador Barack Obama, logo depois consagrado
candidato presidencial pelos Democratas na Convenção Nacional, em Denver. Ele então já
havia ganho a maioria dos delegados ao fazer campanha à esquerda de sua
principal oponente, Hillary Clinton, sobre os excessos da guerra ao terrorismo
e a erosão das liberdades constitucionais.
Como o voto sobre a indenização mostrou,
o Estado Profundo não consiste apenas de agências governamentais. O que é
eufemisticamente denominado empresa privada é parte integral das suas
operações. Na série especial do The
Washington Post denominada “Top Secret America”,
Dana Priest e William K. Arkin descreveram o escopo do Estado Profundo
privatizado, e o tanto de metástase que sofreu após os ataques de 11 de
setembro. Existem hoje 854 mil funcionários do governo com autorização de
confidencialidade – um número maior do que o dos principais funcionários civis.
Embora eles estejam espalhados em todo o país e em todo o mundo, é
inconfundível sua grande concentração em torno dos subúrbios de Washington:
desde o 11 de
Setembro, 33 instalações para a inteligência ultra secreta foram
construídas ou estão em construção. Combinadas , elas ocupam o espaço de
quase três Pentágonos – cerca de 17 milhões de metros quadrados. Setenta por
cento do orçamento da comunidade de inteligência vão para o pagamento de
contratos. E a separação entre o governo e as companhias prestadoras de
serviços é altamente permeável: o diretor de Inteligência Nacional, James R. Clapper, é um
ex-executivo do Booz Allen, um dos maiores empreiteiros de inteligência do
governo. Seu antecessor, o almirante Mike
McConnell, é o vice-presidente em exercício da mesma empresa. A Booz
Allen é 99 por cento dependente de negócios com o governo. Esses empreiteiros
agora dão o tom político e social em Washington, assim como estão cada vez mais
definindo a direção do país. Mas estão fazendo isso em silêncio. Seus atos
não constam dos Registros do Congresso ou no Registro Federal, e raramente são
submetidos a audiências no Congresso.
Washington é o nódulo mais importante,
mas não o único do Estado Profundo que domina os EUA. Tramas invisíveis de
dinheiro e ambição conectam a cidade a outros nódulos. Um é Wall Street, que
fornece o dinheiro que mantém a máquina política em vigília e operação, como um
teatro de marionetes. Se os políticos esquecem suas tramas e ameaçam o status quo, Wall Street
inunda a cidade de dinheiro e advogados para ajudar mãos contratadas a lembrar
dos seus próprios interesses. Os executivos das gigantes financeiras ainda têm
imunidade penal de fato. Em 6 de março de 2013 , ao testemunhar perante o Comitê
Judiciário do Senado, o procurador-geral Eric Holder declarou o seguinte: “Estou preocupado que algumas dessas instituições se tornem tão grandes
que fique difícil para nós processá-los, por haver indícios de que se os
processarmos, se dirigirmos a eles uma acusação criminal, isso terá um impacto
negativo sobre a economia nacional, talvez até mesmo sobre a economia mundial.”
Isso, dito pelo diretor de aplicação da lei de um sistema de justiça que
praticamente aboliu o direito constitucional de julgamento para os
réus mais pobres acusados de certos crimes. Não é demais dizer que Wall Street
pode ser o proprietário final do Estado Profundo e suas estratégias. Se não por
outra razão, porque possui dinheiro para premiar agentes do governo com uma
segunda carreira que é lucrativa para além dos sonhos da avareza – certamente
para além dos sonhos de um assalariado do governo.
O corredor entre Manhattan e Washington é
uma estrada bem trilhada para as personalidades que tornaram-se conhecidas por
todos nós desde a desregulamentação maciça de Wall Street: Robert Rubin,
Lawrence Summers, Henry Paulson, Timothy Geithner e muitos outros. Nem todo o
tráfego envolve pessoas ligadas às operações puramente financeiras do governo:
em 2013, o general David Petraeus juntou-se à KKR (Kohlberg Kravis Roberts,
anteriormente) da Rua 57, em
New York , uma empresa de administração de fortunas privadas
com 62,3 bilhões de dólares em ativos. A KKR é especializada na gestão de
aquisições e finanças alavancadas; a perícia do general Petraeus nessas áreas
não é clara; sua capacidade de vender influência, no entanto, é uma mercadoria
conhecida e valorizada.
Petraeus, e a maioria dos avatares do
Estado Profundo – os conselheiros da Casa Branca que impeliram Obama a não
impor limites à remuneração dos executivos (CEOs) de Wall Street, os
especialistas do think tank ligado à empreiteira que pediram para “manter o
curso” no Iraque, os gurus econômicos que demonstraram perpetuamente que a
globalização e a desregulamentação são uma bênção que nos torna melhores no longo
prazo – são cuidadosos ao fingir que não têm ideologia. Sua pose preferida é a
do tecnocrata politicamente neutro que oferece conselhos bem considerados, com
base em conhecimento profundo. Isso é nonsense.
Eles estão completamente tingidos pela cor da ideologia oficial da classe
governante, uma ideologia que não é especificamente nem democrata nem
republicana. No plano interno, seja qual for sua crença particular sobre
questões sociais essencialmente polêmicas, como o aborto ou o casamento gay,
quase sempre acreditam no “Consenso de Washington”: financeirização,
terceirização, privatização, desregulamentação e mercantilização do trabalho.
Internacionalmente, defendem o excepcionalismo norte-americano do século XXI: o
direito e o dever de os Estados Unidos se intrometerem em todas as regiões do
mundo, a diplomacia coercitiva, de botas no chão, e o direito de ignorar as normas internacionais de comportamento
civilizado dolorosamente conquistadas. Parafraseando o que Sir John
Harrington disse mais de 400 anos atrás sobre a
traição, agora que a ideologia do Estado Profundo prosperou, ninguém se atreve
a chamá-lo de ideologia. É por isso que descrever a tortura com a denominação
de tortura na televisão aberta é considerado menos como heresia política do que
como um lapso imperdoável de etiqueta de Washington: como fumar um cigarro
diante das câmeras, simplesmente “não se faz” nos dias de hoje.
Depois das revelações de Edward Snowden
sobre a extensão e profundidade da espionagem praticada pela Agência Nacional
de Segurança [NSA, National Security Agency], tornou-se publicamente evidente
que as grandes empresas de tecnologia da informação do Vale do Silício também são um nódulo vital do Estado
Profundo. Ao contrário dos contratantes militares e de inteligência, o Vale do
Silício vende especialmente para o mercado privado; mas seus negócios são
tão importantes para o governo que surgiu um estranho relacionamento. Embora o
governo pudesse simplesmente obrigar as empresas de alta tecnologia a cumprir
as ordens da NSA, ele prefere cooperar com tão importante motor da economia do
país, talvez com um quid
pro quo implícito. Isso
talvez explique a extraordinária indulgência do governo com as práticas do Vale
em matéria de propriedade intelectual. Se um norte-americano “desbloqueia” seu
smartphone (ou seja, modifica-o para que possa usar outro provedor que não o
determinado pelo fabricante), pode sofrer uma multa de até 500mil dólares e
vários anos de prisão; tudo isso apesar dos alardeados direitos de
propriedade do cidadão consumidor. A pose libertária dos magnatas do Vale do
Silício, tão cuidadosamente cultivada por seus relações públicas, foi sempre
uma farsa. Há muito o Vale do Silício vem rastreando para fins comerciais as
atividades de cada pessoa que usa um dispositivo eletrônico; não é de
surpreender que o Estado Profundo deva igualar o Vale e fazer o mesmo para os
seus próprios fins. Também não é surpreendente que ele recrute o apoio do Vale.
Ainda, apesar do papel essencial
desempenhado pela Baixa Manhattan (Lower Manhattan, onde está situado
Wall Street) e o Vale do Silício, o centro de gravidade do Estado Profundo está
firmemente localizado dentro e no entorno do anel rodoviário de Washington
(o Beltway),
isto é, junto aos fornecedores e lobistas do governo federal, em oposição
aos interesses da população estadunidense. A expansão e consolidação do Estado
Profundo em torno do Beltway parece ser uma paródia dos frequentes pronunciamentos
de que a governança em Washington é disfuncional e fragmentada. Que o Estado
Profundo, oculto e não-responsável, flutue livremente acima do engarrafamento
entre as duas extremidades da Pennsylvania Avenue é o paradoxo do governo
americano no século XXI: ataques aéreos, extração de dados, prisões secretas
e controle tipo panóptico, por um lado; e,
por outro, as visíveis, ordinárias instituições parlamentares de governo em
declínio, até o status de uma república de bananas, em meio ao colapso gradual
da infraestrutura pública.
Os resultados dessa contradição não são
abstratos, como se poderá atestar num passeio pelas falidas, deterioradas, apodrecidas
cidades do meio-oeste norte-americano. Nem sequer estão limitados àquelas
partes do país largadas pra trás por um Consenso de Washington que decretou a
financeirização e desindustrialização da economia no interesse da eficiência e
lucros para o acionista. Esse paradoxo é evidente até mesmo dentro do próprio
Beltway, a região metropolitana mais rica da nação. Embora demógrafos e
urbanistas invariavelmente considerem Washington como “cidade global”, isso nem
sempre é evidente para aqueles que vivem ali. Praticamente toda vez que há uma
forte tempestade de verão, dezenas – ou mesmo centenas – de milhares de
residentes ficam sem energia
elétrica, muitas vezes por vários dias. Há racionamentos de água
ocasionais em grandes áreas, em razão do estouro de adutoras mal construídas e
inadequadamente mantidas. Para a área metropolitana de Washington, é uma tarefa
hercúlea construir uma ligação ferroviária para o seu aeroporto internacional –
com sorte, ela poderá ser concluída até 2018.
Terá o Estado visível, constitucional,
aquele contemplado por Madison e os outros Fundadores da nação norte-americana,
finalmente começado a agitar-se contra as reivindicações e usurpações do Estado
Profundo? Talvez, até certo ponto. O desdobramento das revelações no âmbito da
vigilância sem mandado da NSA tornou-se tão notório que até mesmo apologistas
institucionais, como a senadora Diane Feinstein, começaram a recuar – ainda que
apenas retoricamente – de suas intempestivas defesas da agência. À medida que
mais pessoas começam a despertar do estado sugestionável e de medo que o 11 de
Setembro criou em suas mentes, é possível que a tática de uma década, já, do
Estado Profundo, de gritar
“terrorismo!” cada vez
que enfrenta resistência, não esteja mais provocando a mesma resposta
pavloviana de dócil obediência. E o povo norte-americano, possivelmente até
mesmo os seus legisladores, estão ficando cada vez mais cansados dos intermináveis pesadelos no Oriente Médio.
Mas há outra razão mais estrutural pela
qual o Estado Profundo pode ter atingido o pico de sua posição de domínio.
Embora pareça flutuar acima do estado de direito, sua natureza essencialmente
parasitária, capturadora de riquezas, significa que ainda está amarrado a
processos formais de governança. O Estado Profundo prospera quando há
funcionalidade tolerável nas operações cotidianas do governo federal. Enquanto
as dotações são aprovadas a tempo, as listas de promoção são confirmadas,
orçamentos negros (ou seja, secretos) são chancelados, vantagens fiscais
especiais para certas corporações são aprovados sem controvérsias, enquanto não
são feitas muitas perguntas embaraçosas, as engrenagens do estado híbrido rodam
sem fazer barulho. Mas quando uma casa do Congresso é tomada por ultra-fundamentalistas do Tea Party, a vida torna-se mais
difícil para a classe dominante.
Se há alguma coisa que o Estado Profundo
requer é fluxo de recursos... silencioso, ininterrupto, e a confiança de que as
coisas se darão como aconteciam no passado. Ele está até mesmo disposto a
tolerar um grau de impasse: disputas partidárias sobre questões culturais podem
ser uma distração útil para sua agenda. Mas recentes palhaçadas do Congresso
envolvendo o sequestro, a paralisação do governo e a ameaça de calote sobre a
extensão do teto da dívida têm perturbado esse equilíbrio. E uma dinâmica de
extremo impasse desenvolveu-se entre as duas partes, de tal modo que continuar
algum nível de sequestro é politicamente a opção menos má para ambas as partes,
embora por razões diferentes. Por mais que muitos republicanos queiram aliviar
o orçamento para os órgãos de segurança nacional, eles não podem reverter
totalmente o sequestro sem os democratas demandarem aumentos de receita. E
democratas, ao querer gastar mais em programas domésticos arbitrários, não
podem anular o sequestro em programas nacionais ou de defesa sem que os
republicanos insistam em cortes de direitos.
Por isso, no futuro previsível, o Estado
Profundo deve restringir seu apetite por dinheiro do contribuinte: ofertas
limitadas podem suavizar o sequestro, mas é improvável que pedidos de agências
sejam totalmente financiados no futuro próximo. Mesmo operações rentistas de
Wall Street foram afetadas: depois de ajudar a financiar o Tea Party para fazer
avançar suas próprias ambições plutocráticas, o Big Money da América está agora lamentando ter
criado o monstro Frankenstein. Como crianças brincando com dinamite, a
compulsão do Tea Party para levar a nação ao calote de crédito alarmou os
adultos que comandam as alturas do capital; estes agora dizem aos políticos que
pensavam ter sido contratados para desbaratá-los.
O voto da Câmara para desfinanciar os
programas de vigilância ilegal da NSA foi igualmente ilustrativo da natureza
disruptiva da insurgência do Tea Party. Democratas comprometidos com as
liberdades civis, sozinhos, nunca teriam chegado tão perto da vitória; o
inflexível deputado Justin Amash (R-MI), do Tea Party, que inclusive aborreceu a comunidade de negócios por seu
fundamentalismo sobre limite da dívida, foi o principal patrocinador republicano
da emenda do NSA, e a maioria dos republicanos que votaram com ele estavam
alinhados com o Tea Party.
Em vista das resistências, em 17 de
janeiro, o presidente Obama anunciou revisão nos programas de coleta de dados
da NSA, incluindo a retirada de custódia do NSA de um banco de dados de
registros de telefones domésticos, ampliando os requisitos para mandados
judiciais e acabando com a espionagem de (indefinidos) “líderes estrangeiros
amigáveis”. Os críticos denunciaram as alterações como uma jogada de relações
públicas cosmética,
mas ainda assim elas são significativas, já que o clamor tornou-se tão alto que
o presidente sentiu a necessidade política de enfrentá-lo.
Quando as contradições internas de uma
ideologia dominante vão tão longe, os antagonismos aparecem e aquela ideologia
começa lentamente a desintegrar-se. Oligarcas corporativos como os irmãos Koch
já não estão
totalmente satisfeitos com
o grupo de frente político pseudo-populista que ajudaram a constituir e financiar.
O Vale do Silício, por todas as tendências tipo Ayn Rand de seus principais
jogadores, suas estratégias off-shore e consequente exacerbação da desigualdade
de renda, está agora pressionando o Congresso para restringir a NSA,
um componente central do Estado Profundo. Algumas empresas de tecnologia estão
se mobilizando para criptografar
seus dados. Empresas de alta tecnologia, assim como governos, buscam o domínio
sobre as pessoas pela coleta de dados pessoais, mas as empresas estão
abandonando o barco, agora que a reação adversa do público aos escândalos da
NSA ameaça seus lucros.
O resultado de todos esses desdobramentos
é incerto. O Estado Profundo, baseado nos pilares gêmeos do imperativo da
segurança nacional e hegemonia corporativa, parecia até recentemente
inabalável, e os últimos eventos podem ser uma perturbação apenas temporária em
sua trajetória. Mas a história tem uma maneira de derrubar o altar dos
poderosos. Embora as duas grandes ideologias materialistas e deterministas do
século XX, o marxismo e o Consenso de Washington, tenham decretado
sucessivamente que a ditadura do proletariado e a ditadura do mercado eram
inevitáveis, o futuro na verdade é indeterminado. Pode ser que as correntes
econômicas e sociais profundas criem o quadro da história, mas essas correntes
podem ser canalizadas, sofrer reviravoltas ou mesmo ser revertidas pelas
circunstâncias, o acaso e a ação humana. Temos apenas que refletir sobre
despotismos glaciais extintos, como a URSS ou Alemanha Oriental, para
conscientizar-nos de que nada é para sempre.
Ao longo da história, sistemas estatais
com pretensões agigantadas de poder reagiram ao seu meio de duas maneiras. A
primeira estratégia, refletindo a esclerose das elites dirigentes, consiste em
repetir que não há nada errado, que o status
quo reflete a boa sorte única
da nação favorecida por Deus, e que aqueles que pedem mudanças são apenas
arruaceiros subversivos.
A segunda estratégia é adotada, em graus
diferentes e com diversos objetivos, por figuras de personalidades tão
contrastantes como Mustafa Kemal Attatürk, Franklin D. Roosevelt, Charles
de Gaulle e Deng Xiaoping. Eles com certeza não eram revolucionários por
temperamento; sua natureza era conservadora, se tanto. Mas eles entenderam que
as culturas políticas em que viviam estavam fossilizadas e incapazes de
adaptar-se aos tempos. No impulso de reformar e modernizar os sistemas
políticos que herdaram, os primeiros obstáculos a serem superado eram os mitos
ultrapassados que estavam incrustados no pensamento das elites do seu tempo.
À medida que os Estados Unidos
confrontam-se com seu futuro após experimentar duas guerras fracassadas, uma
economia precária e 17 trilhões de dólares de dívida acumulada, a controvérsia
nacional encontra-se dividida em dois campos: o primeiro, dos “declinistas”,
enxerga um sistema político fragmentado, disfuncional e impossível de reformar,
e uma economia que em breve será ultrapassada pela China. O outro campo, dos
“reformadores”, oferece uma profusão de panacéias para transformar a nação:
financiamento público das eleições para cortar a artéria de dinheiro entre os
componentes corporativos do Estado Profundo e os funcionários dependentes de
financiamento para eleger-se; reverter a maré da terceirização nas funções de
governo e os conflitos de interesse que ela cria; uma política fiscal que
valorize o trabalho humano mais que as transações financeiras; e uma política
comercial que privilegie a exportação de produtos manufaturados sobre a
exportação de capitais para investimento.
Tudo isso é necessário, mas não
suficiente. As revelações de Snowden, cujo impacto foi surpreendentemente
forte; a iniciativa descarrilada de intervenção militar na Síria; e um
Congresso turbulento, cujas disfunções tornaram-se grave inconveniente para o
Estado Profundo, mostram que há agora um profundo, embora ainda incipiente,
apetite por mudança. O que os EUA não têm é uma figura com autoconfiança serena
para nos dizer que os ídolos gêmeos de segurança nacional e do poder
corporativo são dogmas ultrapassados, que não têm nada mais a oferecer-nos .
Assim libertas, as próprias pessoas irão desvendar o Estado Profundo com
velocidade surpreendente.
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