Como o processo de sonegação da Globo sumiu da Receita e sobreviveu no submundo do crime
Os originais do processo
Esta é a segunda reportagem
especial da série sobre o processo da sonegação da Globo, fruto de nosso
projeto de crowdfunding no Catarse. Na primeira,
detalhamos a operação para aquisição dos direitos de transmissão da Copa
do Mundo de 2002.
No dia 2 de
julho do ano passado, um grupo de blogueiros, com o Centro de Estudos de Mídia
Alternativa Barão de Itararé e o Mega Cidadania à frente, foi ao Ministério
Público Federal no Rio de Janeiro e entregou uma representação com 25 páginas
do processo da Receita Federal em que os donos da TV Globo são
responsabilizados pela prática de crime contra a ordem tributária.
O procurador recebeu os documentos e encaminhou para a Polícia Federal, que
abriu inquérito. “Tinha grande esperança de que o crime fosse, finalmente,
apurado, em razão da independência do Ministério Público”, diz Alexandre César
Costa Teixeira, autor do blog Mega Cidadania.
No último 7 de
outubro, dois dias depois do primeiro turno das eleições, o inquérito foi
arquivado, por decisão do delegado Luiz Menezes, da Delegacia Fazendária da
Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro. A decisão teve endosso
do Ministério Público e foi acatada pela 8ª Vara Federal Criminal do Estado.
“A frustração é
muito grande. Eu me empenhei muito para que esse caso não ficasse impune”,
disse Alexandre, ao saber que a representação dele e de seus amigos acabou no
arquivo da Justiça Federal.
“Eles não
chamaram nenhum de nós para depor, mesmo sabendo que fomos nós que conseguimos
as páginas do processo que havia desaparecido da Receita. É um absurdo”,
afirma. “O sentimento é de indignação”, diz ele, que já foi funcionário do
Banco do Brasil e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
Alexandre faz
parte de uma rede que atuou na internet, em junho do ano passado, para
fortalecer as manifestações de rua. Foi ele quem entregou a Miguel do Rosário,
do site O Cafezinho, os documentos que incriminavam a Globo, o que provocou, em
julho de 2013, uma manifestação em frente à porta da Globo, na rua Von Martius,
Jardim Botânico, em que foram distribuídos adesivos com a frase “Sonegação é a
maior corrupção”.
O processo
desapareceu da Receita Federal no dia 2 de janeiro de 2007 , quando já estava
separado para que uma cópia fosse encaminhada ao Ministério Público Federal,
com uma representação para fins penais, em que Roberto Irineu
Marinho, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho são apontados como
responsáveis por crimes contra a ordem tributária.
Uma investigação
da Receita Federal apontou a agente administrativa Cristina Maris Meinick
Ribeiro como responsável pelo sumiço. A prova mais forte contra ela é um vídeo
que registra a entrada e a saída da Delegacia da Receita Federal.
Na entrada,
Cristina Maris aparece com uma bolsa. Na saída, além da bolsa, ela tem uma
sacola, onde, segundo testemunhas, estavam as três pastas do processo.
Seis meses
depois do crime, a agente administrativa acabou presa, a pedido do Ministério
Público Federal, mas ficou apenas dois meses e meio atrás das grades.
Sua defesa,
formada por cinco advogados, conseguiu no Supremo Tribunal Federal um habeas
corpus, numa decisão em que o relator foi o ministro Gilmar Mendes.
Em janeiro de
2013, Cristina Maris foi condenada a 4 anos e onze meses de prisão. O juiz que
assina a sentença escreveu que Cristina agiu “com o evidente propósito de
obstar o desdobramento da ação fiscal que nele se desenvolvia, cujo montante
ultrapassava 600 milhões de reais.”
No mesmo
processo em que foi condenada por ajudar a Globo, Cristina Maris respondeu à
acusação de interferir no sistema de informática da Receita Federal para
dificultar a cobrança de impostos de outras três empresas.
Cristina Maris
vive hoje num apartamento da avenida Atlântica, esquina com a rua Hilário de
Gouveia, em Copacabana, mas não dá entrevista. Informado de que eu gostaria de
conversar com ela, o porteiro acionou o interfone e, depois de falar com
alguém, disse que ela não estava.
O processo da
Receita Federal permaneceu desaparecido até que Alexandre conseguiu com um
amigo cópia de 25 páginas do processo e as entregou para Miguel do Rosário, que
publicou em O Cafezinho.
Eu fui
apresentado ao amigo de Alexandre em um apartamento no centro da cidade. Sob
condição de não ter seu nome revelado, ele me levou, no dia seguinte, a uma
casa no subúrbio carioca, e ali telefonou para outra pessoa, a quem pediu para
trazer “a bomba”.
Não eram apenas
25 páginas, mas o processo inteiro, original.
Meia hora
depois, chegaram dois homens, um deles com uma mochila preta nas cotas.
Abrigaram a
mochila e tiraram de dentro os dois volumes do processo, mais o apenso.
Os documentos são originais, inclusive
os ofícios da TV Globo, em papel timbrado, em que a empresa, questionada,
entrega os documentos exigidos pela Receita Federal.
Alguns desses documentos são os
contratos em que a Globo, segundo o auditor fiscal Alberto Sodré Zile, simula
operações de crédito e débito com empresas abertas no Uruguai, Ilha da Madeira,
Antilhas Holandesas, Holanda e Ilhas Virgens Britânica, a maior parte delas
paraísos fiscais.
Esses contratos, que o auditor Zile
classifica como fraude, têm a assinatura de Roberto Irineu Marinho e de João
Roberto Marinho. TV Globo, Power, Porto Esperança, Globinter, Globo Overseas
são algumas das empresas que fazem negócios entre si para, ao final, adquirir
uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, a Empire, que tinha como sede uma
caixa postal compartilhada com Ernst & Young Trust Corporation e detinha os
direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002.
Analisada superficialmente, a papelada
indica que a Globo tem uma intensa atividade internacional, e está em busca de
novos espaços no exterior. Vistos com lupa, como fez o auditor da Receita
Federal, esses documentos mostram que tudo não passou de simulação.
As empresas são todas controladas pela
família Marinho e os contratos são de mentirinha. No fundo, o que a Globo busca
é se livrar do imposto de renda que deveria ser pago na fonte, ao comprar os
direitos de transmissão da Copa do Mundo.
O amigo de Alexandre esclarece que os
dois homens que guardam a bomba não pertencem à quadrilha que faz desaparecer
processos das repartições públicas do Rio de Janeiro, a qual a ex-funcionária
da Receita Federal Cristina Maris prestou serviço.
Os processos estiveram em poder da quadrilha
até que o amigo de Alexandre conseguiu resgatá-lo da única maneira que se
negocia com bandidos: pagando o preço do resgate. Ele não diz o valor.
Alexandre recebeu os originais e quis
entregá-los à Polícia Federal num fim de semana. Mas, ao saber que se tratava
do inquérito da Globo, o delegado de plantão teria se recusado a ficar com os
documentos.
Alexandre decidiu então esperar ser
chamado para depor, oportunidade em que entregaria uma cópia do processo ou
mesmo o original, caso o delegado quisesse. Mas a intimação que ele esperava
receber nunca chegou.
“Dizem que o processo da Receita
Federal foi remontado, com cópias fornecidas pela Globo. Seria interessante
comparar o original com esse processo remontado, se é que foi remontado”,
afirma.
Na sexta-feira da semana passada, eu
procurei o delegado encarregado do inquérito, Luiz Menezes.
Quando perguntei do inquérito, ele
disse: “Esse inquérito já foi relatado e foi para a justiça federal.” Quando
perguntei sobre a conclusão dele, respondeu: “Arquivo”. Por quê? “A Globo
apresentou o DARF de recolhimento do imposto.” O senhor se lembra de quanto era
o DARF? “Não”.
Na 8ª Vara Federal Criminal do Rio de
Janeiro, a informação que obtive é que, no dia 7 de outubro, o processo deixou
existir, tomando o caminho do arquivo, como sugerido pelo delegado, com a
anuência do Ministério Público Federal.
Sobre a hipótese de ter havido crime de
lavagem de dinheiro, cuja punibilidade não é extinta mesmo com o pagamento de
imposto atrasado, o delegado Luiz Menezes não quis falar.
Por que um processo que desapareceu dos
escaninhos da Receita Federal em janeiro de 2007, beneficiando a TV Globo,
sobreviveu no submundo do crime?
Segundo o amigo de Alexandre, a
situação saiu do controle da Globo quando o processo caiu nas mãos de um homem
que tentou extorquir dinheiro da empresa.
“A Globo pagou para fazer desaparecer o
processo da Receita e teria que pagar de novo”, diz.
Aqui entra uma versão em que é difícil
separar a lenda da verdade.
Com a ajuda de um aparato policial
amigo, a Globo teria tentado retomar os documentos à força, mas a operação
falhou, e o processo continuou no submundo até que foi trazido à luz pela
militância na internet.
Hoje, mesmo contendo informações de
teor explosivo, as autoridades querem distância do processo.
“A Globo é blindada. Nós tentamos
chamar a atenção para o problema, mas ninguém se dispõe a ouvir”, diz
Alexandre.
Na época da Copa, Alexandre procurou as
empresas de outdoor do Rio de Janeiro, para divulgar um anúncio em que informa
da existência do processo e pede a apuração.
A campanha era assinada pelos
blogueiros, mas nenhuma empresa de outdoor aceitou abrigar a mensagem.
Enquanto órgãos oficiais não investigam
o caso, o processo da Receita Federal que envolve a Globo continuará sendo
transportado em mochilas no subúrbio do Rio de Janeiro.
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