O terrorismo, a extrema direita e o suicídio europeu
De um lado, grupos cujo fanatismo
nega o próprio Islã. De outro, um continente que convive cada vez mais com a
extrema-direita e que agora vê, como ameaça… o Syriza
Por Flávio Aguiar, no Blogue do Velho Mundo
O ato
terrorista contra os jornalistas do Charlie Hebdo francês, em Paris, que também provocou
a morte de um funcionário da revista, de dois policiais no ato e possivelmente
de mais um em tiroteio posterior, é apenas a ponta de um iceberg.
A Europa
inteira está assentada sobre uma bomba-relógio. Não é uma bomba comum, porque
casos como o do Charlie Hebdo mostram que ela já está explodindo.
Nas pontas da bomba estão duas forças antagônicas, com práticas diferentes,
porém com um traço em comum: a intolerância herdeira dos métodos fascistas de
antanho.
De um
lado, estão pessoas e grupos fanatizados que reivindicam uma versão do
islamismo incompatível com o próprio Islã e o Corão, mas que agem em nome de
ambos. Os contornos e o perfil destes grupos estão passando por uma
transformação – o que aconteceu também nos Estados Unidos, no atentado em
Boston, durante a maratona, e no Canadá, no ataque ao Parlamento, em Ottawa.
Cada vez
mais aparecem “iniciativas individuais” nas ações perpetradas. Este tipo de
terrorismo se fragmentou em pequenos grupos – muitas vezes de familiares – que
agem “à la cria”, como se dizia, em ações que parecem “espontâneas” e até “imalucadas”,
mas que obedecem a princípios e uma lógica cuja versão mais elaborada, para
além da “franquia” em que a Al-Qaeda se transformou, é o Estado Islâmico que se
estruturou graças à desestruturação do Iraque e da Síria. São fanáticos que
negam a política consuetudinária como meio de expressão de reivindicações e
direitos: negam, no fundo, a própria ideia de “direitos”, inclusive o direito à
vida, como fica claro no gesto assassino que vitimou o Charlie Hebdo.
Do outro,
estão os neofascistas – ou antigos redivivos – que se agarram à bandeira do
anti-islamismo também fanático como meio de arregimentar “as massas” em torno
de si e de suas propostas. Agem de acordo com as características próprias dos
países em que atuam, mobilizando, de acordo com as circunstâncias, as palavras
adequadas. No Reino Unido, criaram o United Kingdom Independence Party – UKIP,
Partido da Independência do Reino Unido, nome malandro que oculta e ao mesmo
tempo carrega a ojeriza pela União Europeia. Na França têm a Front Nationale da
família Le Pen, que mobiliza o velho chauvinismo francês que lateja o tempo
todo desde o caso Dreyfus, ainda no século XIX. Na Alemanha é feio ser
nacionalista alemão, desde o fim da Segunda Guerra. Então criou-se um movimento
– Pegida – que se declara de “Patriotas Europeus contra a Islamização do
Ocidente”, procurando uma fachada pseudo-universalista para seus preconceitos
anti-Islã e anti-imigrantes.
Esta, aliás, é a bandeira comum
destes movimentos: fazer do imigrante ou do refugiado político ou econômico o
bode-expiatório da situação de crise que o continente vive, assim como no passado
se fez com o judeu e ainda hoje se faz com os roma e sinti (ditos “ciganos”).
Na Itália, este fascismo latente organiza-se com o nome de “Liga Norte”,
mobilizando o preconceito social contra o sul italiano, tradicionalmente mais
empobrecido. São movimentos que, embora busquem por vezes o espaço da política
partidária, como é o caso do UKIP e da Front Nationale, ou mesmo da Liga Norte,
têm como cosmovisão a negação da política como espaço universal de manifestação
de direitos e reivindicações. Negam a política como campo de manifestação das
diferenças, barrando ao que consideram, como autoridade, o direito à expressão
ou mesmo aos direitos comuns da cidadania. O exemplo histórico mais acabado
disto foi o próprio nazismo que, chegando ao poder pelas urnas, fechou-as em
seguida.
O caldo de
cultura em que vicejam tais pinças contrárias à vigência dos princípios
democráticos é o de uma crise econômico-financeira que se institucionalizou
como paisagem social. Na Europa a tradição é a de que crises deste tipo levam a
saídas pela direita. O crescimento do UKIP e da Front Nationale, partidos mais
votados nas respectivas eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2013, é
eloquente neste sentido. Na Alemanha as manifestações de rua do Pegida vêm
crescendo sistematicamente, atingindo o número de 18 mil pessoas na última
delas, na cidade de Dresden, reduto tradicional de manifestações nostálgicas em
relação ao passado nazista devido a seu (também criminoso) bombardeio ao fim da
Segunda Guerra pelos britânicos.
Deve-se
notar, como fator de esperança, que manifestações contra estas formas de
intolerância – o terrorismo que reivindica o Islã como inspiração e os
movimentos de extrema-direita – têm tomado corpo também. Houve manifestações de
solidariedade aos mortos na França em várias cidades européias e na Alemanha
manifestações contra o Pegida reuniram milhares de pessoas em diferentes
cidades. Mas pelo lado da extrema-direita cresce a aceitação de suas palavras
de ordem na frente institucional (líderes do novo partido alemão Alternative
für Deutschland têm acolhido reivindicações do Pegida) e junto à opinião
pública. Na Alemanha, recente pesquisa trouxe à baila o dado preocupante de que
61% dos entrevistados se declararam “anti-islâmicos”.
Como ficou
feio alegar motivos racistas, o que se alega agora no lado intolerante é a
“defesa da religião” ou a “incompatibilidade cultural”. Os assassinos do Charlie Hebdo gritavam – segundo
testemunhas – estarem “vingando o profeta”, referência a caricaturas de Maomé
consideradas ofensivas. Na outra ponta jovens da Front Nationale, também no ano
passado, recusavam a pecha de racistas e declaravam aceitar o mundo
muçulmano – em “seus territórios”, não na Europa agora dita “judaico-cristã”,
puxando para seu aprisco a etnia ou religião que a extrema-direita européia
antes condenava ao ostracismo, ao campo de concentração e ao extermínio.
Os
partidos e políticos tradicionais, em sua maioria, estão brincando com fogo,
sem se dar conta, talvez. Não aceitam o reconhecimento, por exemplo, que grupos
por eles apoiados na Ucrânia são declaradamente fascistas, homofóbicos e até anti-semitas.
Preferem exacerbar o sentimento anti-russo e anti-Putin. Durante mais de uma
década, as duas agências do serviço secreto alemão concentraram-se em esmiuçar
a vida dos partidos e grupos de esquerda (além dos possíveis terroristas
islâmicos) e negligenciaram criminosamente o controle sobre os grupos e
terroristas alemães. No momento, o “grande terror” que se alastra no
establishment europeu não é o de que a extrema-direita esteja em ascensão,
embora isto também preocupe, mas é o provocado pela possibilidade de que um
partido de esquerda, o Syriza, vença as eleições na Grécia (marcadas para 25 de
janeiro), forme um governo, e assim ponha em risco os sacrossantos pilares dos
planos de austeridade.
Nega-se o
pilar da democracia: contra o Syriza agitam-se as ameaças de expulsão da Grécia
da zona do euro e até da União Europeia; ou seja, procura-se castrar a livre
manifestação do povo grego através da chantagem política e econômica. Se
as coisas continuarem como estão, poderemos estar assistindo o suicídio da
Europa que conhecemos. O que nascerá destes escombros ainda se está por ver,
mas boa coisa não será — nem para a Europa, nem para o mundo.
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