Charlie Hebdo promove a islamofobia
Em primeiro
lugar, eu condeno os atentados do dia do 7 de janeiro. Não
acho que a violência seja a melhor solução para nada, embora também não seja do tipo que foge com o rabo entre as pernas com medo de uma cara feia. Um dos meus lemas é a
frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da
humanidade.
Não acho
que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro. Ninguém merece. A morte é a
sentença final, não permite que o sujeito evolua, mude. Em momento nenhum, eu
quis que os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles
evoluíssem, que mudassem.
Após o
atentado, milhares de pessoas se levantaram no mundo todo para protestar contra
os atentados. Eu também fiquei assustado, e comovido, com isso tudo. Na
internet, surgiu o refrão para essas manifestações: Je Suis Charlie. E aí a
coisa começou a me incomodar.
A Charlie
Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970 e identificada com a
esquerda pós-68. Não vou falar de toda a trajetória do semanário. Basta dizer
que é mais ou menos o que foi o nosso Pasquim.
Isso lá na
França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e
já de uma forma bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal
dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja,
a direita européia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de
Expressão”, mas tem mais…
O editor da
revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000
chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que gerou
críticas da colega de revista Mona Chollet – críticas que foram resolvidas com
a saída dela).
Ele ficou
no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido
só como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges
relacionadas ao Islã – ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011.
Uma pausa
para o contexto. A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria,
imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos
igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição
de “cidadão de segunda classe”.
Após os
atentados do World Trade Center, a situação piorou. Já ouvi de pessoas que
saíram de um restaurante “com medo de atentado” só porque um árabe entrou.
Lembro de ter lido uma pesquisa feita há alguns anos (desculpem, não consegui
achar a fonte) em que 20 currículos iguais eram distribuídos por empresas
francesas. Eles eram praticamente iguais. A única diferença era o nome dos
candidatos.
Dez eram de
homens com sobrenomes franceses, ou outros dez eram de homens com sobrenomes
árabes. O currículo do francês teve mais que o dobro de contatos positivos do
que os do candidato árabe. Isso foi há alguns anos. Antes da Frente Nacional,
partido de ultra-direita de Marine Le Pen, conquistar 24 cadeiras no parlamento
europeu…
De volta à
Charlie Hebdo: Ontem vi Ziraldo chamando os cartunistas mortos de “heróis”. O
Diário do Centro do Mundo (DCM) os chamou de “gigantes do humor politicamente
incorreto”.
No Twitter,
muitos chamaram de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta
do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo são de péssimo
gosto, mas isso não está em
questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por
dois motivos.
O primeiro
é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o profeta
Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. (Isso gera situações
interessantes, como o filme A Mensagem – Ar Risalah, de 1976 – que conta a
história do profeta sem desrespeitar esse dogma – as soluções encontradas são
geniais!).
Qual é o
objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão
banalizado quanto o catolicismo”. Ok, o catolicismo foi banalizado. Mas isso
aconteceu de dentro pra fora. Não nos foi imposto externamente.
Note que
ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos
específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã,
por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os
valores ocidentais ao mundo todo.
Atacar a
cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras
publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram
processar a revista.
Os
tribunais franceses – famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerância
(ver Caso Dreyfus) – deram ganho de causa para a revista. Foi como um
incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e
textos contra o Islã.
Mas existe
outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os
muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam
caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo
alusões à violência (quantos trocadilhos com “matar” e “explodir”…).
Alguns
argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do
momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização.
Nem sempre
existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que
na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no
Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não
critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam…
E aí
colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos
já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase:
“Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem
esse poder. Se a piada é preconceituosa, ela transmite o preconceito. Se ela
sempre retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo
árabe é terrorista.
Se esse
árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu
vizinho muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que
inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a
Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são
alvo de ataques de grupos de extrema-direita.
Esses
ataques matam pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como
disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas.
No artigo
do Diário do Centro do Mundo, Paulo Nogueira diz: “Existem dois tipos de humor
politicamente incorreto. Um é destemido, porque enfrenta perigos reais. O outro
é covarde, porque pisa nos fracos. Os cartunistas do jornal francês Charlie
Hebdo pertenciam ao primeiro grupo. Humoristas como Danilo Gentili e derivados
estão no segundo.” Errado. Bater na população islâmica da França é covarde. É
bater no mais fraco.
Uma das
defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam
católicos e judeus. Isso me lembra o já citado gênio do humor (sqn) Danilo
Gentilli, que dizia ser alvo de racismo ao ser chamado de Palmito (por ser alto
e branco). Isso é canalha.
Em nossa
sociedade, ser alto e branco não é visto como ofensa, pelo contrário. E – mesmo
que isso fosse racismo – isso não daria direito a ele de ser racista com os
outros. O fato do Charlie Hebdo desrespeitar outras religiões não é atenuante,
é agravante. Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema
delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas isso é
motivo para matarem os caras!?” Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência
apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na
humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter
sido evitado. Bastava que a justiça francesa tivesse punido a Charlie Hebdo no
primeiro excesso. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem
passar”.
“Mas isso é
censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados
da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se decide que
você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa,
isso é censura.
Quando se
diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados –
como o racismo ou a homofobia – isso é censura. Ou mesmo situações mais banais:
quando dizem que você não pode usar determinado personagem porque ele é
propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim.
Por
coincidência, um dos assuntos mais comentados do dia 6 de janeiro – véspera dos
atentados – foi a declaração do comediante Renato Aragão à revista Playboy. Ao
falar das piadas preconceituosas dos anos 70 e 80, Didi disse: “Mas, naquela
época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se
ofendiam.”
Errado.
Muitos se ofendiam. Eles só não tinham meios de manifestar o descontentamento.
Naquela época, tão cheia de censuras absurdas, essa seria uma censura positiva.
Se alguém tivesse dado esse toque n’Os Trapalhões lá atrás, talvez não teríamos
a minha geração achando normal fazer piada com negros e gays.
Perderíamos
algumas risadas? Talvez (duvido, os caras não precisavam disso para serem
engraçados). Mas se esse fosse o preço para se ter uma sociedade menos racista
e homofóbica, eu escolheria sem dó. Renato Aragão parece ter entendido isso.
Deixo claro
que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que
deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser banidas do humor.
Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos.
Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as
consequências venham na forma de processos judiciais do que de balas de fuzis.
Voltando à
França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do
que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar.
Em
discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o
nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada”. Essa fala mostra
exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses
(de direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população do país
não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”.
Essa
colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente
incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem
imigrantes de expressar sua religião até… charges ridicularizando o estilo de
vida dos muçulmanos!
Muitos
chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as
vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que
locais de culto islâmico na França foram atacados – um deles com granadas! —
nessa madrugada, a coisa perde um pouco a beleza.
É a
resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a França declarar “guerra ao
fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos
muçulmanos” – e ela sabe disso).
Por isso
tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro de ontem, eu não sou Charlie.
No twitter, um movimento – muito menor do que o #JeSuisCharlie – começa a
surgir.
Ele fala do
policial, muçulmano, que morreu defendendo a “liberdade de expressão” para os
cartunistas do Charlie Hebdo ofenderem-no. Ele representa a enorme maioria da
comunidade islâmica, que mesmo sofrendo ataques dos cartunistas franceses,
mesmo sofrendo o ódio diário dos xenófobos e islamófobos, repudiaram o ataque.
Je ne suis pas Charlie. Je suis Ahmed.
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