Espanha, a próxima a se rebelar?
Como surgiu, dos
Indignados, o “Podemos”. Por que está este prestes a derrubar partidos
tradicionais, que se auto-sabotaram. Que transformações políticas e econômicas
propõe
De Vicenç Navarro - Por E-mail|
Tradução: Inês Castilho
Uma imenso mar humano povoou as ruas de Madri
no último sábado. Centenas de milhares de pessoas manifestaram-se, atendendo a
um chamado do partido-movimento Podemos, criado há menos de um ano.
Esperançosas após a vitória eleitoral do Syriza, na Grécia, elas sinalizaram
que a Europa vai continuar tremendo, nos próximos meses. Que já não será fácil
manter “ajustes fiscais” [“austeridade”, na Europa] que cortam direitos e
mantêm as rendas financeiras. Que a suposta “racionalidade econômica” não
poderá mais ser usada como pretexto para afastar a sociedade das decisões e
transferi-las a “especialistas”. Que pode estar com os dias contados o sistema
em que dois partidos — rivais na disputa pelo Estado, mas cada vez mais
semelhantes nas políticas que adotam — alternam-se eternamente no poder.
Que ventos produzem o furacão espanhol? Até
há um ano, o sistema bipartidário instituído há quatro décadas parecia
inabalável. PP (centro-direita) e PSOE (ex-social-democrata) estavam
acomodados, com diferenças mínimas de tom, ao mesmo projeto que resultou — na
Espanha e na maior parte do mundo — num aumento brutal das desigualdades
sociais. Um partido ligado à esquerda história (“Izquierda Unida”) cumpria um
previsível papel de coadjuvante.
Três fatores parecem ter sacudido este
ambiente de pasmaceira. No texto abaixo, Vicenç Navarro, co-autor do programa econômico do Podemos,
explica em detalhes, e em seu complexo contexto histórico, quais são. Os
partidos tradicionais auto-sabotaram-se, por julgarem que, à falta de
alternativas, a população se acomodaria mais uma vez a uma democracia reduzida
a teatro. A difusão de novas formas, desierarquizadas, de relações sociais,
tornou grotesco o controle das instituições por um punhado de “líderes”
partidários — hoje conhecidos na Espanha como “a casta”. Por fim, o próprio
Podemos teve sabedoria para converter a energia rebelde dos Indignados de 2011
num projeto de transformações que dialoga de igual para igual com as maiorias —
ao invés de auto-distanciar-se delas por meio de jargões e métodos de “direção”
anacrônicos.
Assim como o Syriza, o Podemos viverá
oportunidades e desafios imensos, nos próximos meses. Ainda no primeiro
semestre, disputará eleições municipais. A formação de um novo governo, por
meio de um pleito antecipado, pode ocorrer ainda em 2015. Sobreviverá à
necessidade de encontrar saídas para a crise — e aos riscos de ser cooptado
pelo sistema que quer transformar? Navarro parece dizer que a resposta está em
aberto. “É o fim de um período, sem que saibamos o que virá depois”, diz ele,
referindo-se a Gramsci. Quando o futuro é incerto, cada ato e atitude são
importantes. Vale conhecer o que está em jogo na Espanha e na Europa, neste
exato momento (A.M.)
Alguma coisa
acontece na Espanha. Um partido fundado há apenas um ano, o Podemos, com um
programa claramente de esquerda, poderia ganhar a maioria no Parlamento
espanhol, se as eleições fossem hoje. Após a vitória do Syriza nas eleições
gregas de 25 de janeiro, tem-se especulado sobre a possibilidade do Podemos
alcançar feito semelhante nas eleições parlamentares da Espanha no final deste
ano. Mas, o que está conduzindo o partido ao sucesso?
O apoio ao Podemos está intrinsecamente
ligado às políticas impostas pelo governo conservador do Partido Popular,
liderado por Mariano Rajoy. Essas políticas incluíram os maiores cortes em
gastos sociais públicos (desmantelando o subfinanciado Estado de bem-estar
social espanhol) desde que a democracia foi estabelecida na Espanha, em 1978, e
as mais duras reformas trabalhistas fixadas no mesmo período, as quais
deterioraram substancialmente as condições do mercado de trabalho. Os salários
baixaram 10% desde a Grande Recessão iniciada em 2007, e o desemprego alcançou
um recorde histórico de 26% (52% entre os jovens). O percentual de trabalho temporário
e precário aumentou, tornando-se a maioria dos novos contratos no mercado de
trabalho (mais de 52% da totalidade dos contratos); 66% dos desempregados não
têm nenhuma forma de seguro desemprego ou assistência pública.
Essas medidas criaram um enorme problema de
falta de demanda interna, importante causa da recessão duradoura. Houve apenas
um recente crescimento muito limitado, devido principalmente à queda dos preços
do petróleo, a uma desvalorização do euro e ao compromisso, pelo Banco Central
Europeu (BCE), de comprar títulos públicos. O governo espanhol não teve nada a
ver com esses fatos, embora reivindique a limitada recuperação como
resultado de suas políticas.
As políticas atuais foram promovidas
pela União Europeia por meio do Conselho Europeu, da Comissão Europeia e do
BCE, e pelo Fundo Monetário Internacional. Foram realizadas na Espanha com
apoio e estímulo do capital financeiro, das principais corporações e seu
instrumento político, o Partido Popular. A direita espanhola conseguiu, possivelmente,
o que sempre quis: a redução dos salários e a asfixia da proteção social, com o
esfacelamento do estado de bem-estar. Essas políticas são aquilo que os
participantes da última reunião do G20 na Austrália apresentaram como
estratégia a ser seguida por todos os países, elegendo a Espanha como país
modelo.
Por que razão os cortes foram feitos?
A redução dos salários e do número de pessoas
que recebem salários, assim como a redução dos gastos públicos,
resultaram num enorme declínio da demanda interna e, consequentemente, do
crescimento econômico. A queda dos salários significou aumento do endividamento
das famílias e das pequenas e médias empresas. A dívida aumentou enormemente.
Isso significa que também as transações bancárias aumentaram enormemente (a
Espanha tem um dos maiores setores bancários na Europa, proporcionalmente três
vezes maior que o dos Estados Unidos). Mas a baixa rentabilidade da economia
produtiva significou um grande aumento dos Investimentos bancários
especulativos, causando enormes bolhas, das quais a mais importante foi a bolha
imobiliária.
Quando a bolha ainda estava inchando, um
sentimento de euforia dominava oestablishment político. Até mesmo o governo do líder
socialista, José Luis R. Zapatero, sentia que, em tempos de crescimento tão
exuberante, os impostos deviam ser reduzidos – seu slogan então era que
“reduzir os impostos devia ser um objetivo da esquerda”. Reduziu enormemente os
tributos, em especial sobre ganhos de capital e rendas elevadas. E em 2007,
quando a bolha explodiu, surgiu um grande buraco nas receitas do Estado: 27
bilhões de euros. De acordo com economistas do departamento de estatística do
Ministério das Finanças, 70% desse buraco era devido aos cortes de impostos, e
apenas 30% à queda da atividade econômica no início da Grande Recessão.
Foi assim que começaram os cortes – sob o
falso argumento de que era preciso enfrentar as medidas de austeridade porque o
país estava gastando muito. Na realidade, quando a crise começou, o Estado
espanhol tinha superávit. Na verdade, o gasto público da Espanha é muito baixo:
muito menor do que exigiria o seu nível de desenvolvimento econômico. Os cortes
demonstram a natureza política dessas intervenções.
Zapatero congelou as
aposentadorias públicas para economizar 1,5 bilhão de euros, quando
poderia ter obtido 2,5 bilhões recuperando os impostos sobre a propriedade, que
havia abolido; revertendo a redução dos impostos sobre herança (2,3 bilhões);
ou revertendo a diminuição dos impostos de indivíduos com rendimento anual de
120 mil euros (2,2 bilhões). Esses cortes foram mais tarde ampliados
por Rajoy, que cortou 6 bilhões do Serviço Nacional de Saúde, argumentando,
como dissera antes Zapatero, que “não havia alternativa” — a frase mais
frequentemente usada na narrativa oficial.
Contudo, havia alternativas. Ele poderia ter
revertido a redução de impostos sobre o capital para grandes corporações, que
havia aprovado, obtendo 5,5 bilhões. De fato, escrevi, junto com Juan Torres e
Alberto Garzón, um livro a esse respeito intitulado Hay Alternativas: Propuestas para
Crear Empleo y Bienestar Social em España. O livro demonstrou, com números
claros e convincentes, que havia na verdade outras opções às políticas
impostas. Tornou-se um best-seller na Espanha e foi largamente utilizado
pelo movimento dos Indignados.
O movimento dos Indignados
O corte dos gastos públicos e as três
reformas do mercado de trabalho realizadas primeiro pelo governo
socialista (PSOE) e depois pelo governo conservador (PP), despertaram a
ira de muitos cidadãos, já que nenhuma dessas medidas havia recebido um mandato
popular genuíno. Nenhuma dessas políticas foi mencionada no programa eleitoral
dos partidos governantes. Em resposta, o movimento Indignados surgiu e
espalhou-se rapidamente por todo o país. Seus slogans, tais como “A classe
política não nos representa”, tornaram-se largamente populares. Em
consequência, as instituições começaram a perder legitimidade, enquanto o
Estado respondia tentando reprimir o movimento. Contudo, isso não deteve os
Indignados: muitos de seus líderes eram jovens e portanto profundamente
afetados pela crise.
O movimento reclamava uma segunda transição,
pedindo o fim do regime de 1978 (o sistema político estabelecido quando
terminou a ditadura) e a elaboração de uma nova ordem democrática, explicando a
necessidade de substituir as instituições representativas existentes por
outras, complementadas por novas formas de participação democrática tais como
referendos e/ou assembleias populares. O objetivo era estabelecer um sistema
democrático autêntico, com formas de participação direta dos cidadãos tais como
referendos, acrescidas de formas indiretas tais como a democracia
representativa, de modo a garantir que os partidos políticos fossem muito mais
democráticos do que são hoje.
Os Indignados tiveram um impacto enorme,
sendo seu primeiro passo um protesto contra o slogan “Não há alternativas”. De
fato, a liderança do movimento exibiu nosso livro, Há Alternativas, diante da polícia, que
tentava controlar a manifestação. A fotografia de milhares de pessoas mostrando
o livro foi amplamente distribuída dentro do movimento e publicada pela
imprensa. Seu alvo principal era, essencialmente, destacar que havia, sim,
alternativas, e questionar a legitimidade do Estado, que impunha políticas para
as quais não tinha mandato popular.
O novo partido político: Podemos
Os Indignados tornaram-se conscientes de que,
paralelamente aos protestos, tinham também de intervir na arena política – e
foi assim, essencialmente, que o Podemos começou. Os líderes do Podemos surgiram
do grupo de pessoas que desempenharam um papel de liderança no movimento.
Alguns são membros do jovem corpo docente do Departamento de Ciências Políticas
e Sociais na maior universidade pública da Espanha, Complutense. Muitos haviam
sido ativistas nos movimentos de juventude do Partido Comunista Espanhol.
Independentemente de sua origem, todos
sentiam que a raiz do problema era o controle do Estado por uma classe de
políticos sustentados principalmente pelos maiores partidos – o partido
conservador-liberal (PP) e o socialista (PSOE) – que se relacionavam
intimamente e estavam vinculados às principais corporações financeiras e
bancárias que corromperam as instituições do Estado. Eles clamavam pelo
estabelecimento de um Estado democrático e uma Europa democrática – “uma Europa
do povo, não a Europa dos banqueiros”.
Eles participaram das eleições para o
Parlamento Europeu em 2014 e tiveram muito mais votos que esperavam. Em
seguida, e mais importante, pesquisas revelaram crescimento substancial de seu
apoio popular. A ponto de se tornar claro, ao final de 2014, que o Podemos
poderia chegar ao governo – uma situação que seus criadores nunca haviam
pensado possível em tão pouco tempo. A mensagem do partido, “Vote contra a
casta. Jogue-os todos fora”, ressoou profundamente entre o eleitorado. Parece
claro que a maioria da população está farta do establishment político e mediático e voltou-se
para o Podemos como alternativa.
No entanto, a esta altura ainda faltava ao
partido uma estrutura claramente definida. Isso impôs a necessidade urgente de
desenvolver uma organização partidária, baseada num modelo de assembleia e a
partir de uma base proposta pela liderança. Para preparar este programa,
pediram a mim e a Juan Torres (co-autor de Hay
Alternativas) que formulássemos
um esboço do programa econômico que um governo do Podemos deveria implementar,
se eleito. Este esboço seria a base para uma vasta discussão no interior do
partido. O documento recebeu um título inicial autoexplicativo: “A necessidade
de democratizar a Economia para acabar com a crise e ampliar Justiça Social,
Bem-estar e Qualidade de Vida – Uma proposta para abrir um debate e resolver os
problemas da economia espanhola”. Foi amplamente distribuído pelo Podemos, com
novo nome: “Um projeto
econômico para pessoas” (Un proyecto económico para la gente). Teve enorme impacto.
A apresentação da proposta, pelo porta-voz do
Podemos, Pablo Iglesias, junto conosco, como autores, tornou-se um grande
acontecimento na Espanha. A hostilidade da velha mídia e dos ornais econômicos,
assim como dos intelectuais e porta-vozes dos grandes partidos governistas (PP
e PSOE) produziu alguns ataques furiosos ao documento e a seus autores. Na
Europa, o presidente do banco central alemão (Bundesbank) sustentou que as
propostas expressas no texto causariam prejuízos às economias da Espanha e da
Europa. Em paralelo a estas respostas negativas sem precedentes, no entanto,
houve ampla aceitação das pessoas comuns, a ponto de alterar a agenda do debate
econômico e desafiar a ideologia que o impregnava.
Nosso documento não é um orçamento para o
futuro governo do Podemos, mas traça as linhas estratégicas a se4 seguidas. A
análise das causas da crise está focada no enorme crescimento da desigualdade,
responsável pelas crises financeira, econômica e política. Coloca no centro da
análise o conflito do capital (sob a hegemonia do setor financeiro) contra o
trabalho. Ele levou a um enorme declínio da demanda doméstica, causada pela
redução real dos salários, aumento do desemprego e cortes nas despesas
públicas. Voltadas a reverter este crescimento da desigualdade, as propostas,
portanto, sugerem ampliar a demanda doméstica (elevando os salários e o
emprego) e expandindo os gastos e investimentos públicos (em particular, os
relacionados à infraestrutura social)
Sublinha-se também a necessidade de expandir
os bancos públicos, como forma de oferecer crédito a famílias e a pequenas e
médias empresas. Propõe-se a redução da jornada de trabalho para 35 horas e a
idade de aposentadoria, dos 67 anos atuais para 65 – o que reverteria posições
aprovadas pelo PP e PSOE. O impacto do programa fortaleceria o trabalho às
custas do capital. Além disso, defende-se a clara necessidade de corrigir
desigualdades de gênero, inclusive como forma de ampliar o emprego. E
demonstrou que todas estas propostas poderiam ser sustentadas por meio de uma
Reforma Tributária e da redução das fraudes fiscais.
Que explica o sucesso do Podemos?
É fácil responder a pergunta. Há enorme ira
popular diante do que o Podemos chama dela casta. O termo inclui as elites
governantes no establishment político, que desenvolveram
cumplicidade aberta com as corporações financeiras e não-financeiras que
dominam as instituições e a mídia. O apelo para “jogá-los todos fora” desperta
apoio geral entre a maioria do povo espanhol.
Além disso, o Podemos foge dos jargões, usa
linguagem comum, redefine luta de classes como o conflito entre os que estão no
topo e todos os demais. É uma narrativa que mobiliza uma base de apoio ampla e
diversa. Além disso, o partido tornou central, em sua estratégia, a luta pela
democracia – e a redefiniu para incluir distintas formas de participação, como
referendos (definidos como el
derecho a decidir), além das
formas tradicionais de representação. É por seu compromisso democrático que
aceitou o direito a autodeterminação das diferentes nações que exitem na
Espanha, rompendo com a visão que esta seria um Estado uninacional.
A compreensão da Espanha como um Estado
“plurinacional” foi uma exigência de todos os partidos de esquerda (inclusive o
PSOE), mas foi abandonada durante a transição para a democracia pelo Partido
Socialista, por pressões do rei (apontado por Franco) e do exército. A ampla
reivindicação popular dos catalães pelo direito à auto-determinação (não confundir
com independência: 82% apoiam a primeira; apenas 33%, a segunda) criou enorme
tensão entre o governo central e o tornou altamente impopular.
O sucesso do Podemos tornou-se uma grande
ameça ao establishment espanhol (e europeu). Hoje, as
elites financeira, econômica, política e midiática na Espanha estão na
defensiva e em pânico. Aprovaram leis que tornam mais dura a repressão. Os
dirigentes dos grandes bancos estão particularmente preocupados. O presidente
do Santander, que morreu em setembro passado, anunciou pouco antes de falecer
que estava extremamente preocupado, frisando que o Podemos e a Catalunha
representavam, em sua opinião, grandes ameaças à Espanha – a sua Espanha, é
claro. E ele tinha rezão. O futuro agora está aberto. Como disse Gramsci certa
vez, é o fim de um período, sem que tenhamos visão clara sobre como sera o
próximo. A Europa e a Espanha estão fechando uma era. Resta saber como será a
próxima.
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