IMIGRAÇÃO: EUROPA ATRASOU-SE 500 ANOS
Com
um certo cinismo, seria até possível considerar o apelo de Federica Mogherini,
chefe da diplomacia da União Européia, para desmantelar o esquema de imigração
de africanos para o Velho Mundo. Claro que mesmo assim seria preciso discordar
de qualquer ação militar, contra homens e mulheres que não tem como se defender
em alto mar. Mas a ideia tem um defeito anterior e essencial: um atraso de
cinco séculos.
Aqueles
barcos que hoje atravessam o Mediterrâneo são sucessores diretos de milhares de
embarcações, de várias etapas da tecnologia de navegação, que deixaram a África
a partir do momento em que a civilização européia organizou e explorou a
escravidão de um Continente inteiro, mudando sua história e comprometendo seu
futuro. Perdemos a conta dos milhões de seres humanos que foram transportados
pelos oceanos, em porões sombrios, famintos, correntes nos pés. Mas sabemos que
ali começou uma história que não volta mais e que deve ser encarada como aquilo
que foi e é.
Veja
que epopeia, desde aquela fase da evolução humana que os autores europeus
chamam de Descobrimento, povoando nossa imaginação com homens de olhar
intrépido, lunetas e calças de almofada.
A
riqueza daquele período se encontrava na América mas o braço que tinha músculos
para explorar o ouro e a prata — e depois colher o café, plantar o algodão —
erguendo tantos degraus de civilização e de cultura, vinha da África. Foi dali
que saiu a mão-de-obra cativa e baratíssima que permitiu os primeiros séculos
de globalização.
Talvez
fossem embarcações maiores, muito mais infectas e menos seguras. Mas eram os
mesmos barcos com as mesmas pessoas, os bisavós, trisavós, tataravós. Não
adianta negar: chegaram até hoje. Estão aí, na nossa frente, ao nosso lado.
Naquele
período tardio e muito menos glorioso, que deve ser compreendido como o
primeiro e colossal o holocausto da história da humanidade — a observação é da
judia Hannah Arendt — o inesquecível Rei Leopoldo, da Belgica, mandava decepar
mãos, braços e pernas de negros que não entregavam uma cota fixa de diamantes
para o império colonial.
Quando
este colonialismo selvagem, sem pudores, parou de funcionar, inventou-se o
apartheid, o colonialismo interno, protegido pelos heróis do conservadorismo
contemporâneo, adorados por jovens economistas de senho franzido: Ronald Reagan
e Margaret Thatcher.
O
projeto de ataque militar aos barcos que hoje atravessam o Mediterrâneo
expressa um momento de regressão cruel da história humana, quando uma
diplomacia imperial controla, corrompe e derruba governos, inviabiliza Estados
nacionais, planeja transformar nações inteiras em campos de exploração e
enriquecimento rápido.
Mas
a dificuldade não vêm da África. Está na Europa.
Enfrentando
a pior crise econômica dos últimos 80 anos, respondida com políticas suicidas
de austeridade, os povos europeus assistem ao ressurgimento do fascismo — em
diversas variações — em suas fronteiras. A prolongada crise econômica mundial
não está na China, nem nos Estados Unidos. Mas no enfraquecimento da Europa,
região que abriga o maior e mais rico mercado consumidor do planeta.
Em
cada país, os ataques aos direitos dos trabalhadores e da população pobre são
questionados, dia após dia. No plano externo, vigora uma diplomacia da pilhagem
e da exploração, sem qualquer perspectiva de estimulo ao desenvolvimento e
combate a miséria — ainda que dentro dos marcos tradicionais da divisão mundial
da riqueza.
É
essa falta de perspectiva que expulsa os africanos de seu continente, novamente
assaltado pela História dos outros. A violência política é consequência. O
fanatismo também.
Sejam
ou não capazes de aceitar a ideia, os povos europeus tem uma imensa
responsabilidade política e moral com o destino dos povos africanos. O mesmo
vale para o império norte-americano, principal promotor e beneficiários das
últimas etapas de globalização, que tudo controla e vigia.
Não
é caridade. Têm o dever de devolver uma parte do que tomaram no momento em que
se decidiu transformar o mundo numa realidade integrada e a humanidade numa
grande massa, heterogênea e mesmo desigual, mas interdependente. E quem
discorda precisa admitir que já passaram cinco séculos para se defender outra
ideia.
Comentários
Postar um comentário
comentário no blogspot