Boaventura: “a esquerda pode retomar as ruas em todo o mundo”
Manifestação em Madri, articulada pelo Podemos em 31 de Janeiro, logo após vitória eleitoral do Syriza, na Grécia. Milhares gritam “tic tac tic tac”, sugerindo fim de linha para elite política.
Partidos tradicionais desprezaram
mobilização social. Mas ela é resgatada por grupos que já não se baseiam em
militância, vanguardas ou grandes líderes.
Por Boaventura de Sousa Santos por E-mail |
Tradução: Inês Castilho
Há
40 anos Boaventura de Sousa Santos participou das lutas que construíram as
então nascentes democracias ibéricas. Agora, este sociólogo português (Coimbra,
1940), doutorado por Yale (EUA) e professor de Coimbra e Wisconsin (EUA),
continua atento aos movimentos sociais – mas quem o escuta são os dirigentes do
Podemos, especialmente Juan Carlos Monedero, a quem qualifica de “cabeça
brilhantíssima”.
Syriza,
na Grécia. Podemos, na Espanha. Tempo de Avançar, em
Portugal. É coincidência ou têm uma fonte comum?
Há um esvaziamento geral da democracia que, no sul da Europa, chegou até nós
quase ao mesmo tempo. E todos os países haviam adotado o modelo atual, a
social-democracia, uma combinação única de altos níveis de produtividade e
proteção social. Com o desenvolvimento da União Europeia (UE), assistimos a uma
transformação política que demonstrou não ser um modelo sustentável. Washington
impôs o neoliberalismo, com os mercados e as privatizações, e o Estado num
papel secundário; na época, os partidos socialistas eram fortes em nossos
países e resistiram à mudança. Mas o modelo neoliberal entrou por uma estrutura
supranacional, a União Europeia. E os partidos socialistas se adaptaram a
partir de Tony Blair, com a “terceira via”, ou o “capitalismo de rosto humano”.
A proteção social passou a ser vista como um engano, um grande investimento, um
custo. É o que chamo de democracia de baixa intensidade, com níveis muito altos
de desigualdade, aos quais não estávamos acostumados na Europa.
O
grande desencadeador é a crise grega de 2010?
Sim. Em vez de considerá-la um
problema europeu, optou-se por considerá-la um problema nacional da Grécia. Só
recebeu ajuda ao adaptar-se às condições impostas pela UE. O modelo, não muito
diferente do ditado pelo FMI e Banco Mundial à América Latina e à África, logo
se aplicaria à Irlanda, a Portugal e à Espanha. E assim estamos: países onde
Europa e democracia eram consideradas sinônimo de bem-estar, porque chegaram
juntas, de repente representam a Europa do mal-estar.
Conhecemos
os efeitos da crise, mas não a receita desses partidos.
Syriza
e Podemos são embriões, buscam uma reconstrução democrática de alta
intensidade, de um estilo novo. Não vão voltar à social-democracia dos anos 70.
Seu
crescimento se dá às custas dos partidos de esquerda clássicos.
É
que os partidos da esquerda tradicional – os socialistas, os comunistas – não
estavam enfrentando a crise. A sociedade utilizou então outras vias políticas;
primeiro, ocupando as ruas, porque é o único espaço público não colonizado
pelos mercados. Acreditam que os parlamentos e os governos estão colonizados
pelos mercados. Enxergam a promiscuidade política entre a elite política e a
financeira.
Ocupam
as ruas e… ?
E
conseguem mobilizar pessoas que nunca tiveram interesse pela politica. Nesse
processo de esvaziamento democrático, os partidos tradicionais – e muitos
intelectuais – haviam desprezado as ruas. Consideravam que com as massas não se
faz política, porque estão despolitizadas. Syriza e Podemos dizem que essas
massas não estão despolitizadas, estão desencantadas, e essa ideia transforma
os protestos numa construção política totalmente diferente: não assentada na
militância, nas vanguardas ou nos grandes líderes, mas em organizações de
bairro que muitas vezes começaram seu trabalho pela via social.
Uma
nova era?
Eu
a considero a segunda liberação (a primeira foi o fim das respectivas
ditaduras). Até agora olhávamos para a Standard&Poor’s cada vez que
ousávamos aumentar o salário mínimo. Com a vitória do Syriza, vivemos um novo
tempo. De repente, a troika desapareceu. Politizamos a Europa outra vez. Isso é
bom.
Não
parece bom para a Alemanha.
Custa
a Angela Merkel aceitar que haja na Europa uma outra política emergente.
Àqueles que haviam dito que o problema grego era um problema europeu, voltamos
a dizer que a solução grega é uma solução europeia. Ninguém imagina que vá
haver uma solução para a Grécia que não repercuta na Espanha, Portugal e
Itália.
E
os mercados serão derrotados?
O
capitalismo inflexível vai ter de mudar, e mudará. O capitalismo sempre se
adapta, porque acaba sendo lucrativo.
E
como será ele?
Mais
inovador e com mais imaginação econômica. O que o ministro das Finanças grego,
Yanis Varoufakis, anda dizendo é o que expressão também economistas nada
revolucionários, mas prêmios Nobel como (Joseph) Stigliz e (Paul) Krugman:
renegociar a dívida e dar à Grécia as condições oferecidas à Alemanha para sua
reconstrução.
Todos
economistas. Não há políticos imaginativos?
Tivemos
uma geração de políticos preguiçosos, porque todos haviam vindo de cima, da UE
ou dos mercados. Seus antecessores — Willie Brandt, Felipe González, Mário
Soares — tinham imaginação, sabiam que havia decisões que dependiam deles. No
caso de Syriza e Podemos são jovens, gente politizada já há tempos, que não
entrou agora no barco, o que poderia acarretar-lhes a acusação de populistas.
Mas
parece que são acusados.
Populismo
é o terceiro grande insulto do período a que nos referimos. Na ditadura, o
insulto àquele que contestava o regime era comunista; com a democracia, quem
criticava era chamado de fascista; e agora estamos com populista. Populismo é a
ligação direta entre o líder e o povo; a perda da intermediação política, e uma
confiança carismática no líder. O Syriza e o Podemos vêm de movimentos de base,
assembleias de cidadãos…, o contrário do populismo ou, se quiser, o populismo
invertido, de baixo para cima – uma combinação de democracia participativa e
democracia representativa. Tampouco são pioneiros. Nos anos 90, a prefeitura de
Porto Alegre (Brasil) realizava orçamentos participativos: a
população decidia quanto de dinheiro ia para a saúde. O problema sempre
foi que a democracia participativa funcionava bem no âmbito local, mas não
havia mecanismos para estendê-lo a todo o país. Veremos se o Syriza e o Podemos
conseguem.
Você
parece otimista.
Estamos
num bom momento para os cidadãos; não sei se tão bom para os mercados. Mas é
bom para a democracia e para a Europa. Não será tampouco um momento de revolução
socialista. Estamos na construção de uma sociedade digna. Esses partidos devem
manter o nível de participação com certa rotina. Se, uma vez alcançado o poder,
as pessoas se desmobilizam, haverá retrocesso social.
E
o que acontecerá com os partidos socialistas e comunistas?
Depois
de muitos anos pensando apenas em si mesmos, é hora de atravessar o deserto. No
fundo, são os responsáveis pela emergência dessas novas forças.
O
paradoxo é que o Podemos, diz que não é nem de esquerda nem de direita.
Não
são nem desta esquerda nem desta direita. Rejeitam as receitas antigas de
esquerda e de direita. A lógica da alternância desacreditou uma e outra.
Parece
que, ao culpar os mercados, nos esquecemos da corrupção.
Para
estas novas forças, a luta contra a corrupção vai ser fundamental.
Um
dos criadores do Podemos, Juan Carlos Monedero, já começava a defraudar a
Fazenda.
Comparado
ao caso Bárcenas, o de Monedero é ridículo. As acusações são uma manobra
desesperada dos que se opõem a ele.
Conhece
Monedero?
Em
2011 ele escreveu o prólogo do meu livro O milênio
órfão: ensaios para uma nova cultura política. É um intelectual
brilhante, com uma formação teórica extraordinária.
O
núcleo do Podemos é formado por professores com salário público, e que a
universidade mantém firme para quando voltarem. São a nova casta?
Eu
me considero um intelectual de retaguarda. Há uma tradição das ciências sociais
envolvidas com as lutas sociais. Essa geração da Universidade Complutense de
Madri quer contribuir com o bem-estar da sociedade. Além disso, peço aos
professores que impulsionem uma renovação democrática a mesma credibilidade que
se dá aos economistas que acreditam na bondade da “austeridade”. De modo que
privilégio, nenhum.
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