Fique Atento. Saiba como são os Golpes de Estado do Século XXI
Por
Victor Farinelli, no site da Fundação
Mauricio Grabois:
Houve um tempo em
que se defendia no Brasil a ideia de que já não havia espaço para golpes de
Estado na América Latina. Supostamente, as ditaduras nos haviam ensinado o que
não queríamos, e nos Anos 90, alguns comentaristas políticos diziam isso, com
uma segurança contagiante, tanto que me contagiaram na época.
Lembrei desses
comentaristas – mas não vou citar nomes, até porque acho que realmente
acreditavam nisso – quando, já trabalhando como jornalista, vivi na Argentina e
no Chile, e pude constatar que a punição aos crimes dessas ditaduras deixou
marcas na sociedade e nas instituições. Porém, no Brasil, onde pouquíssimo
criminosos da ditadura foram julgados, e nenhum deles condenado, eu só me
lembro deles quando vejo essa nova tendência brasileira de ir às ruas pedir
intervenção militar.
Decidi
então conferir se de fato ela tem fundamento. E não tem! Resumi a pesquisa
somente ao jovem Século XXI que vivemos, e me deparei com os seis mais recentes
golpes de Estado latinoamericanos – um a cada dois anos e meio. Antes de
analisar algumas características deles, recordemos, por ordem cronológica,
quais foram e como ocorreram:
Venezuela, 2002
O interessante do
cenário que se viveu na Venezuela há treze anos atrás é que talvez ele não seja
muito diferente do Brasil atual. A começar pelo fato da disputa política
envolver a PDVSA (estatal petroleira venezuelana, a Petrobrás deles).
Durante os
primeiros três meses daquele ano, a oposição, junto com os meios de comunicação
hegemônicos, começaram uma campanha de desprestígio contra a empresa,
questionando seus resultados e sua gestão. Alguns dos principais gerentes da
PDVSA apoiavam as críticas e convocaram uma greve geral a partir do dia 9 de
abril. A resposta do presidente Hugo Chávez foi a demissão dos gerentes que
convocaram a greve, a nomeação de um novo diretor para a empresa e o anúncio de
manifestações em defesa da soberania venezuelana sobre o petróleo, em locais
diferentes dos protestos pela greve.
No terceiro dia da
greve, os manifestantes opositores mudaram o trajeto da marcha, o que causou
temor por um possível confronto. Antes que isso pudesse acontecer, foram
percebidos disparos contra as duas manifestações, que produziram 19 mortes, a
maioria com tiros na cabeça. A oposição acusou o presidente Chávez pelas mortes
e o exército invadiu o Palácio Miraflores na noite de 11 de abril, saindo de lá
com o presidente preso. Horas depois, Pedro Carmona Estanga, líder dos
empresários, jurava como presidente imposto pelos grupos que apoiaram o golpe,
e dissolvia o Parlamento, a Corte Suprema, o Ministério Público e o Conselho
Nacional Eleitoral.
Porém, seu mandato
durou algumas horas. Uma multidão de centenas de milhares de chavistas se
reuniu nos bairros carentes de Caracas e foi até o palácio presidencial, exigir
a restituição do presidente. O clamor popular levou alguns grupos militares a
desobedecerem o alto mando, o que permitiu o regresso de Chávez ao poder.
Análises de
criminalística e dos vídeos relacionados ao dia do confronto das marchas
provaram que os disparos haviam partido de franco-atiradores da polícia
localizados estrategicamente nos edifícios contíguos, e que faziam parte do
golpe. Alguns chefes policiais foram condenados, mas anistiados, em 2007, por
decreto do próprio Hugo Chávez.
O documentário
Chávez; Inside the Coup (Chávez: Bastidores do Golpe), das cineastas irlandesas
Kim Bartley e Donnacha O´Brian, que na América Latina foi chamado La Revolución
no Será Transmitida (A Revolução Não Será Televisionada), é o melhor trabalho
jornalístico, contendo riqueza de detalhes sobre o contexto do golpe de Estado
na Venezuela, em 2002.
Haiti, 2004
Após a morte de um
de seus líderes, em setembro de 2003, a guerrilha Frente para a Liberação e
Reconstrução Nacional inicia uma série de ataques em regiões do interior do
país.
No dia 5 de
fevereiro de 2004, conseguiram tomar a cidade de Gonaïves, terceira cidade mais
populosa do Haiti, no litoral norte do país, e duas semanas depois dominaram
Cap-Haïtien, segunda cidade mais importante. No dia 29 de fevereiro, os
rebeldes invadiram a capital Port-Au-Prince. Horas depois, o então presidente
Jean-Bertrand Aristide era derrubado, mas não necessariamente pelas milícias.
Uma vez no exílio, na África do Sul, Aristide assegurou que nunca havia
renunciado, acusando os Estados Unidos de terem-no sequestrado e levado à força
para fora do país. Os opositores ao presidente deposto contestaram a versão, e
responsabilizaram Aristide pela crise econômica e a miséria que assolava o
país, e o acusaram de não conter a corrupção nas instituições públicas.
Logo, o país sofreu
intervenção de forças da ONU. cujo objetivo declarado era o restabelecimento da
ordem democrática, em missão que contou com o apoio de diversos países
latinoamericanos, incluindo o Brasil. Após a queda de Aristide, o presidente
Boniface Alexandre governou o país interinamente, até 2006, quando foi eleito
René Preval.
Bolívia, 2008
No segundo semestre
daquele ano, uma série de confrontos entre grupos apoiadores e opositores ao
presidente Evo Morales começam a acontecer em departamentos no leste do país,
os que compõem a chamada Meia Lua, principalmente nos quatro (Pando, Beni,
Santa Cruz e Tarija), onde a população indígena não é maioria – o que revelou o
preconceito étnico como uma das origens do enfrentamento.
Durante cerca de
vinte dias, os grupos opositores, liderados por prefeitos da região da Meia
Lua, organizaram bloqueios de estradas, greves, ocupação de prédios estatais e
até mesmo a sabotagem de um dos principais gasodutos do país. Alguns dirigentes
opositores pediam a derrubada de Morales. Outros, principalmente os de Santa
Cruz, tentaram organizar um referendo para independência do departamento ou de
toda a região da Meia Lua.
No dia 11 de
setembro, um grupo de dezesseis camponeses indígenas que apoiavam o presidente
foram assassinados, no departamento de Pando, o que foi seguido por outros
ataques racistas contra populações indígenas nas regiões insurgentes. A
oposição afirmou que presidente perdia o controle do país, e tentou derrubá-lo.
Michelle Bachelet,
então presidenta do Chile e presidenta pró-tempore da Unasul, convocou um
encontro extraordinário dos presidentes. A entidade classificou os ataques como
uma tentativa de desestabilização da democracia boliviana, e anunciou uma série
de medidas em conjunto para apoiar o governo boliviano. Diante da total falta
de apoio dos demais países do continente, a oposição boliviana decidiu baixar a
guarda, desarmar os bloqueios, e até mesmo a ideia de referendo separatista foi
abandonada.
Honduras, 2009
No dia 28 de junho,
estava programado um referendo para decidir sobre a viabilidade ou não de uma
assembleia legislativa para a reforma política do país. Durante a madrugada, um
grupo de militares, comandado pelo general Ramón Vásquez Velásquez, invadiu a
tiros a casa presidencial e sequestrou o presidente Manuel Zelaya, levando-o de
pijamas a um aeroporto, onde foi despachado de avião até a Costa Rica.
Através de uma
manobra legislativa, o presidente do Congresso, Roberto Micheletti, conseguiu
colocar a si mesmo na presidência, e governou durante seis meses, até a
realização de eleições, em novembro, onde foi eleito o opositor Porfirio Lobo.
Manuel Zelaya
tentou regressar a Honduras em ao menos três ocasiões, e obteve sucesso na
terceira vez, onde conseguiu asilo na Embaixada do Brasil durante cinco meses,
até ser definitivamente condenado ao exílio.
Após o golpe,
diferentes organizações denunciaram aos organismos internacionais uma escalada
de atentados contra comunidades de bairros pobres, cidades da zona rura,
movimentos sociais e pequenos meios de comunicação alternativos. Atualmente, o
país é apontado pela ONU como o de maior índice de homicídios no mundo.
Equador, 2010
Setembro é mesmo um
mês preferido para golpes de Estado, principalmente na América do Sul. Neste
caso, o confronto aconteceu no dia 30, durante uma greve de policiais. O
próprio presidente Rafael Correa foi até um quartel principal da polícia
negociar com os grevistas, mas não obteve resultados.
Os líderes do
movimento, insatisfeitos com a negativa presidencial, realizaram rapidamente um
ataque a comitiva presidencial, com granadas de gás lacrimogênio. Membros da
guarda presidencial conseguiram salvar Correa, resguardando-o no Hospital
Militar, que ficava próximo ao quartel. O edifício foi cercado pelos policiais
grevistas, que chegaram a abrir fogo.
Manifestantes em
favor de Correa foram ao local do conflito, protestar contra os ataques, e
também receberam disparos. Após a intervenção do Exército, a situação foi
controlada, embora tenha terminado com as mortes de dois membros da Guarda
Presidencial, dois policiais grevistas e um estudante que estava entre os
manifestantes em favor do governo, além de 274 feridos.
Paraguai, 2012
Em maio, a
desocupação de uma chácara, na localidade de Curuguaty, no sudeste do país,
levou a um confronto entre policiais e camponeses sem-terra, que terminou com
um saldo de dezessete mortes (onze camponeses e seis policiais). As críticas ao
manejo da situação por parte do governo levou a um pedido de julgamento
político do presidente Fernando Lugo, que finalmente aconteceu no dia 22 de
junho, e terminou com 39 votos a favor (apenas 4 contra) de declará-lo culpado
por uma suposta crise institucional, cuja pena era a sua destituição do cargo.
Lugo tentou se
defender com o argumento de que não havia nenhum tipo de manifestação popular
contra o governo pelas mortes em Curuguaty e que toda a pressão emanava dos
partidos opositores e da imprensa paraguaia, que defendia os interesses dos
latifundiários e do agronegócio, mas não conseguiu comover os legisladores. Foi
substituído no poder pelo seu vice, Federico Franco, cujo partido PLRA (Partido
Liberal Radical Autêntico) já sinalizava uma ruptura com o governo, desde a
criação da esquerdista Frente Guasú, em 2010.
No ano seguinte,
novas eleições presidenciais levariam ao poder o empresário Horacio Cartes, um
dos articuladores da derrubada de Lugo – que foi eleito senador, no mesmo pleito.
Daqui por diante
Fazendo um balanço
dos seis golpes que descrevemos acima, pode-se observar que quatro deles
conseguiram a destituição do presidente, embora um deles tenha sido revertido
no dia seguinte. Os outros obtiveram resultados políticos permanentes.
Outra
característica importante dos quatro golpes concluídos, sobretudo em comparação
com os do século anterior, é que geraram substitutos civis, ainda havendo
evidente participação militar em pelo menos dois deles.
Cinco desses golpes
ocorreram contra países da chamada Alba (Alternativa Bolivariana Para os Povos
da América), embora a Venezuela tenha sofrido seu golpe antes da entidade
existir – o Haiti, que é somente membro observador, também sofreu seu golpe
antes, e Honduras deixou de ser membro depois da queda do seu presidente.
Durante os 13 anos
de governos do PT, Lula e Dilma venceram o câncer e defenderam um projeto
baseado na distribuição de renda. Agora, enfrentam uma oposição que já não
titubeia ao falar em impeachment.
Além dos golpes de
Estado, os presidentes latinoamericanos também estão tendo que enfrentar neste
século uma macabra coincidência (ou talvez não seja mera coincidência, segundo
algumas teorias) com respeito a sua saúde – e, outra coincidência, todos os
casos envolvendo governantes de com alianças de esquerda ou centro-esquerda.
Hugo Chávez terminou falecendo em 2013, vítima de um câncer, o mesmo mal que
afetou Lula da Silva (2011), Dilma Rousseff (2009), Cristina Kirchner (2011) e
Fernando Lugo (2010). A exceção dos brasileiros, os outros três enfrentaram a
doença em pleno exercício de seus mandatos. Também houve a morte de Néstor
Kirchner, em 2010, após um inesperado ataque cardiorrespiratório, quando o
ex-presidente argentino exercia o cargo de secretário-geral da Unasul. Em 2013,
Cristina Kirchner passaria por um novo susto, sendo levada a uma cirurgia de
emergência, para retirada de um coágulo no cérebro.
Atualmente, três
países vivem situações simultâneas de instabilidade institucional. Na
Argentina, a oposição e o grupo de mídia Clarín tentam levar adiante a tese de
que a presidenta Cristina Kirchner está envolvida no suposto assassinato do
promotor Alberto Nisman, enquanto o país vive um ano eleitoral em que a
mandatária não poderá concorrer à reeleição, e com um governismo que ainda não
decidiu o candidato à sucessão. O venezuelano Nicolás Maduro, herdeiro político
de Chávez, enfrenta uma forte crise, com intensa confrontação política nas
ruas, desde janeiro de 2014, e no ano que vem poderia ter que enfrentar um referendo
sobre a continuidade de seu mandato. Enquanto isso, Dilma Rousseff inicia o seu
mandato com forte pressão da oposição nas ruas, e a oposição declarada até de
líderes de partidos da base aliada, num cenário onde já não há cautela para o
uso da palavra impeachment.
Mas reitero, este
tópico foi para contestar a lembrança que tenho da ideia de que não há mais
espaço para golpes de Estado na América Latina, que deve ter nascido e morrido
naqueles Anos 90, em que se acreditava que a História havia acabado com a queda
do Muro de Berlim. Contudo, não estou apostando em que pode acontecer um sétimo
golpe, ou em quão breve isso poderia ocorrer, ainda que haja os que não
acreditam em bruxas mas sabem que elas existem – e alguns ainda arriscam dizer
de que país elas vêm.
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