Osmarino: Seringueiro diz que madeireiras concentram lucro e que Marina privatizou florestas públicas por até 70 anos
Osmarino Amâncio, na área
em que vive na Reserva Extrativista Chico Mendes, no interior do Acre
por Luiz Carlos Azenha
Osmarino Amâncio não é tão
conhecido quanto Chico Mendes. Mas, se há alguém que manteve seu contato com a
floresta desde o assassinato do companheiro de lutas, em dezembro de 1988, em
Xapuri, no Acre, foi ele. Ainda hoje Osmarino ocupa uma casa de madeira,
coberta com palha, no interior de uma reserva extrativista criada como
resultado da luta travada por toda uma geração de acreanos. A casa não tem
energia elétrica, nem água corrente. O celular não pega. É num lugar de difícil
acesso, na região de Brasileia.
Osmarino ganhou uma certa
visibilidade recentemente. Estávamos jantando em um restaurante, na cidade,
quando a imagem dele apareceu na propaganda eleitoral do PSTU, o Partido
Socialista dos Trabalhadores Unificado, em apoio a Zé Maria, candidato do
partido ao Planalto. O seringueiro do século 21 viaja constantemente para
participar de debates e palestras sobre a Amazônia, dentro e fora do Brasil.
Osmarino passou toda a sua
vida na floresta. Conta que sobrevive com uma renda anual de 15 mil reais. A
maior parte vem da coleta de castanhas e da produção de borracha, que acontecem
em épocas distintas do ano.
Ele vive sozinho. O
vizinho mais próximo está a uma hora e meia de caminhada. Para caçar e se
defender, tem um espingarda comum e uma calibre 12.
Quando nos guiou pelo
entorno de sua casa, Osmarino mostrou o roçado onde cultiva frutas, feijão e
milho. Reconhece todas as árvores e os cantos dos pássaros. Quando anoitece, lê
sob a luz de um candieiro ou ouve rádio. Enfrenta o mal de Chagas com receitas
locais (uma amiga prometeu tratá-lo com um extrato que exige a captura de dois
jabutis, um macho e uma fêmea), mas recentemente esteve em São Paulo para fazer
exames e tentar conter o que define como “inchaço do coração”.
Como Chico Mendes e Marina
Silva, Osmarino é descendente de um soldado da borracha. Nos anos 40, para cumprir
um acordo fechado com Washington durante a Segunda Guerra Mundial,
o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta)
despachou cerca de 50 mil homens, boa parte deles do Ceará, para extrair
borracha dos seringais do Acre. Depois da guerra, os que sobreviveram
continuaram por lá. Durante a ditadura militar, nos anos 70, preocupados com a
possibilidade de perder a Amazônia, os militares decidiram oferecer vantagens
econômicas a colonizadores saídos especialmente do Sul e Sudeste brasileiros,
conhecidos até hoje genericamente no Acre como “paulistas”.
Os “paulistas” chegaram
desmatando e trazendo gado. Deram de frente com os seringueiros, para eles
“invisíveis”. Houve dezenas de mortes e milhares de casas queimadas, no que
Osmarino define como uma guerra de baixa intensidade. Foi em reação à invasão
dos ruralistas que surgiram os sindicatos de Xapuri e Brasileia. Os
sindicalistas de esquerda recebiam o apoio ativo de gente da cidade,
especialmente de estudantes, como Marina Silva, ela mesma filha de seringueiros
e à época integrante do Partido Revolucionário Comunista e abrigada no PT.
Juntos, desenvolveram a tática do “empate”: cercar e expulsar os colonos
trazidos pelos fazendeiros para fazer o desmatamento.
Quase 40 anos depois, os
companheiros de então tomaram caminhos distintos. Wilson Sousa Pinheiro e Chico
Mendes foram assassinados. Lula, que esteve no Acre para dar apoio a Chico
Mendes, um dos fundadores do PT, mais tarde viria a ocupar o Planalto. Marina
Silva, que corajosamente participou de “empates”, agora é pretendente ao mesmo
cargo. Osmarino, que continuou seringueiro, ficou onde sempre esteve e se
tornou crítico da política de ambos para a Amazônia, especialmente pela
promessa nunca realizada de uma reforma agrária sob controle dos trabalhadores.
Osmarino diz que o
Projeto de Lei 11.284, de gestão das florestas, assinado quando Marina Silva
ocupava o Ministério do Meio Ambiente no governo Lula, se tornou uma herança
maldita. A lei regulamentou o manejo, supostamente sustentável, de milhões de
hectares de terras públicas.
Quase dez anos depois,
quais são as consequências? Segundo Osmarino, as madeireiras se fortaleceram na
região e aumentaram sua participação no financiamento de campanhas políticas.
Algumas lidam tanto com madeira extraída legalmente quanto ilegalmente. Ele
aponta para um gigantesco toari e diz que aquela árvore, que pode render ao
ocupante da terra 60 reais por metro cúbico, rende no mercado 4 mil reais às
madeireiras, em tábuas. Boa parte é exportada para se transformar em móveis ou
peças de madeira para construção, que valem uma fortuna, especialmente na
Europa.
“Não deixa lucro para o
seringueiro, não gera imposto no Brasil. É preciso agregar valor”, afirma
Osmarino. Ele está se organizando com sindicalistas da região para combater a
prática do manejo que, segundo ele, é rentável para as madeireiras e para as
ONGs, que fazem o papel de intermediárias.
O seringueiro enxerga
negócios onde muita gente só vê a tentativa de salvar o planeta. Negócios como
o da “certificação” de madeira extraída para exportação. Negócios como os
títulos dos créditos de carbono, que vão irrigar o sistema financeiro. Negócios
como o da biopirataria de concessionários que, sob o escudo do “manejo”,
controlam florestas públicas por até 70 anos.
No capítulo das ONGs, a
crítica de Osmarino não é novidade. Dado o baixo nível do jornalismo
brasileiro, ele até parece uma voz isolada. Não é. Giles Bolton, em Aid
and Other Dirty Business, trata de aspectos pouco debatidos do
onguismo. Há uma crescente literatura crítica à atuação do chamado “terceiro
setor”.
Osmarino, na seringueira
A entrevista com Osmarino
me fez lembrar de viagens à África, onde apontar uma câmera em direção a uma
pessoa sem se identificar pode criar graves problemas. Muitos africanos já se
deram conta do golpe. ONGs supostamente destinadas a ajudá-los fotografam
pessoas em situação de extrema pobreza para promover campanhas em seus países
de origem, levantando recursos que, em boa parte, acabam sustentando a própria
burocracia da organização. É a famosa “taxa de administração”. Quando estive em
Freetown, Serra Leoa, pouco depois do fim da guerra civil, a cidade se dividia
em um punhado de pessoas extremamente ricas, centenas de milhares de miseráveis
e uma classe média formada por funcionários de ONGs, com seus jipes e salas com
ar condicionado.
[Para entender outros
aspectos relacionados à "ajuda humanitária", ao onguismo e à ocupação
da Amazônia, o Viomundo fortemente recomenda aos leitores Pathologies
of Power e Infections and Inequalities, de Paul
Farmer; O Capital e a Devastação da Amazônia,
de Fiorelo Picoli, e O Banco Mundial e a terra,
organizado por Mônica Dias Martins]
Osmarino Amâncio vê, com
distinção, dois momentos de Marina Silva. A corajosa líder dos “empates” teve
um papel fundamental, já que no mundo machista dos seringueiros quem tivesse
medo de se mobilizar mudava de ideia quando via aquela jovem franzina disposta
a colocar a vida em risco em defesa dos seringueiros.
Hoje, no entanto, enxerga
uma candidata que se diz representante da “nova política” mas que, na opinião
do companheiro de Chico Mendes, se compôs com os interesses que combateu no
passado. Para Osmarino, na mesma medida dos que fazem a “velha política”.
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