O Brasil explica a si mesmo - Editorial da Carta Capital
Os mesmos que viram Carlota Joaquina partir do Rio de Janeiro em 1821 assistem à passagem da manifestação contra Dilma no interior do Rio Grande do Sul, domingo 15 de março
Estado patrimonialista, governo
no breu, povo no limbo pela prepotência de uma elite predadora e irresponsável.
por Mino Carta
O general De Gaulle não tinha uma boa
opinião a nosso respeito. Disse um dia: “O Brasil não é um país sério”. Meu pai
dissera algo mais preciso bem antes do que ele, começos da década de 50: “A
situação aqui é sempre grave, nunca séria”. Tudo depende do significado que se
atribui ao qualificativo. Vejamos. A crise política, econômica e social que o
País enfrenta agora é seriíssima.
Poderia
ser de outra maneira? É como se estivéssemos a colher mais uma prova da
incompatibilidade entre Brasil, democracia autêntica e senso republicano. Por
isso, mesmo a gravidade do momento carece, de certa forma, de seriedade por
resultar da pequenez moral e intelectual das personagens que a precipitam.
A
nação paga por sua imaturidade, por uma espécie de incapacidade orgânica de
sair da Idade Média em que cuidou de mantê-la a dita elite. Ou, por outra, de
absorver a contento a ideia de democracia, a partir dos pressupostos básicos,
essenciais, que a viabilizam. Um celebrado sociólogo, professor universitário,
aponta as manifestações de domingo como prova da nossa pujante democracia. Só
mesmo Deus haverá de apiedar-se da alma dele.
O
mestre, uspiano aliás, não é exemplo isolado. Longe disso, a ignorância campeia
mesmo nos mais elevados patamares da cultura nativa. Falei, porém, em nação, e
sequer nação ela é, na acepção correta. Sabemos que o País foi excepcionalmente
favorecido pela natureza. Haveríamos de entender por que não esteve à altura da
dádiva. A única certeza em matéria: o povo é a vítima coral do inesgotável
instinto de predação dos donos do poder.
Momentos
houve, a deixarem transparecer o anseio de democracia, primeiro as
manifestações fluviais das Diretas Já, depois as eleições de Lula e Dilma, sem
exclusão da segunda em outubro do ano passado. As esperanças de 1984
naufragaram no Congresso e o povo teve de se conformar com as indiretas de 85,
a celebrar pretensamente a redemocratização onde a democracia jamais foi
praticada. Quando se apresentou a possibilidade de que o processo de
modernização social pudesse finalmente ser encaminhado, desabou o golpe de 64.
Figueiredo
saiu pelos fundos do Planalto em março de 85, mas o que se deu em seguida não
foi o retorno às esperanças da quadra espraiada entre o mandato de Getúlio
eleito em 1950 e o golpe civil-militar, que muitos, até anteontem, chamavam de
revolução. Perdão, com erre grande. As mudanças pelas quais o mundo passou
influenciaram a situação do Brasil e da América Latina, desde o declínio
avançado do império soviético até o fracasso norte-americano no Vietnã, desde o
primeiro choque do petróleo até a candidatura da China a protagonista da cena
global. Etc. etc., não custa averiguar.
O Brasil,
por seu lado, retomou o andante de uma política de cartas marcadas, de uma
desigualdade social sem par e de uma economia baseada em boa parte na
exportação tradicional de commodities. Daí, um solavanco. Um ex-metalúrgico,
fundador e líder do Partido dos Trabalhadores, ganha as eleições de 2002 e
desfaz outra tradição, a dos presidentes bacharéis engravatados. O destino é
generoso com Lula, ele não deixa de sê-lo com o próprio destino. Faz algumas
concessões, algo assim como pagar o preço de um começo de política social nunca
dantes navegada, capaz de tirar da miséria milhões e milhões de brasileiros,
conquanto não lhes propicie automaticamente a consciência da cidadania.
A situação
econômica mundial favorece o ex-sapo barbudo, capaz de vencer batalhas muito
duras para figurar ao cabo de dois mandatos como o presidente brasileiro mais
popular de todos os tempos, justo prêmio para quem fez o melhor governo dos tempos
todos. Como era de se esperar, ao contrário de Fernando Henrique Cardoso, faz
seu sucessor, ou seja, sua sucessora. Os tempos globais mudaram, entretanto, o
neoliberalismo atingiu muitos dos seus objetivos devastadores, e promete
alcançar outros, quem sabe letais. Neste contexto internacional há de ser
analisado o governo de Dilma Rousseff, enquanto o cenário nacional, a partir de
2003, em nome da chamada governabilidade, impõe a incômoda aliança com o PMDB.
O qual, como disse o vice-presidente Michel Temer, antes do último pleito, com
outras palavras, mas com sentido solar, apoia quem for poder. Arlequim da
política.
E
o PT? O partido conduziu Lula ao governo e no governo porta-se como todos os
demais, conforme as regras useiras deste nosso tempo medieval, sem detrimento
do uso de computadores e celulares cada vez mais sofisticados. Bem disse a
presidenta, a corrupção é senhora idosa. Espanta, porém, que o PT a mantenha em
vida com dedicação total. Basta isso para explicar os dias de hoje? O vácuo de
poder, a falta de liderança, a nau desgovernada? É o próprio Brasil que explica
a si mesmo.
Quando
na noite de domingo 15 despontam
no vídeo os ministros Cardozo e Rossetto, fiquei entre atônito e perplexo. Dois
pobres-diabos, diria meu pai, aquele que falou antes de De Gaulle. Pergunto-me
o que faria, nas mesmas circunstâncias, um estadista, e nem ouso falar de um
Churchill ou de um Roosevelt. No entanto, imaginar que figuras tamanhas possam
medrar entre nós é sonho impossível. Pois é. Ouvimos palavras inúteis, melhor
seria não pronunciá-las. Sem dizer de Cardozo, e do seu currículo, a incluir
serviços advocatícios a favor de Daniel Dantas, e também políticos, ao conduzir
o então predecessor Márcio Thomaz Bastos para um jantar na casa do “democrata”
Heráclito Fortes em companhia do banqueiro do Opportunity. Ano de 2005, e não
perco tempo para ilustrar as intermináveis façanhas de Dantas. Sublinho,
apenas: não é extraordinariamente brasileiro aquele jantar?
Não me detenho em Cardozo, chamo
atenção para as falhas da presidenta na escolha dos seus principais
colaboradores. E na incapacidade geral de mudar as fórmulas e renovar as
estratégias. De recorrer a receitas ditadas pela imaginação, pela pontual
interpretação dos eventos. Nada disso, não se escapa aos panos quentes e à
tentativa de seduzir à velha maneira o inimigo figadal. Deste ponto de vista, o
documento da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, secreto e
brasileiramente vazado, é peça exemplar. Sugere-se ali, como tentativa de
antídoto, aumentar o volume de publicidade governista na mídia paulista, por
ser São Paulo o epicentro das manifestações anti-Dilma. Donde, trata-se de
apaziguar pretensos jornalistas e seus empregadores ao som do vil metal, em vez
de brindá-la com aquilo que merece. O fim do monopólio e do oligopólio
midiáticos, como é próprio de uma verdadeira democracia.
É
do conhecimento até do mundo mineral que a mídia nativa assumiu há muito tempo
o papel de oposição, e foi decisiva para as
marchas antidemocráticas de domingo 15. A secundar os
interesses da minoria privilegiada e a se aproveitar, em larga medida, da
credulidade, do espírito de imitação, da vocação festeira de inúmeros
brasileiros. Atente para aquilo que haveria de ser óbvio, senhora presidenta: é
a mesma mídia que está a transformar em heróis os senhores do PMDB que no
momento controlam o Congresso e, se permitir, o seu próprio destino, muito
antes do que o PSDB. Herói, este sim, e sublinho a palavra, é Cid Gomes, já ex-ministro da Educação, mal
chegado ao posto. Saído do governo por obra da pressão peemedebista, réu por
ter dito a sacrossanta verdade. Brasileiro raro, brasileiro destemido, fiel aos
princípios que declara com a devida nitidez e sem hesitação, e com insólito
espírito público.
Gomes
é atípico. Típicas da desfaçatez e da hipocrisia dos donos do poder são as
manchetes do Globo e do Estadão de segunda 16. Ambos os jornalões evocam as manifestações
das Diretas Já em São Paulo, dia 25 de janeiro de 1984, aniversário da cidade.
Apinhou a Praça da Sé com 500 mil sonhadores da democracia, contra a vontade
dos mesmos Globo e Estadão,
críticos ferozes do movimento. Naquela tarde, os repórteres globais tiveram de
se manter afastados da praça, a bem de sua incolumidade física. De noite, uma
perua da emissora foi incendiada na Avenida Paulista.
Tratava-se da vanguarda de uma imprensa
que implorou o golpe de 64 e o apoiou até o fim, com grandes benefícios sobretudo
para a Vênus Platinada, que os teve também na redemocratização de fancaria. O
Brasil de 2015 não é o de 64. Como illo
tempore, de todo modo, chances de diálogo não há. E nunca houve. O que
talvez hoje se verifique é uma perspectiva de radicalização. Nem por isso o
desfecho desta crise torna-se previsível. A radicalização é evidente, aonde
leva não se sabe, mesmo porque as tendências habituais de leniência e
resignação estão no DNA do País.
Se Dilma busca a costumeira conciliação das elites, ao
nomear Joaquim Levy para a Fazenda, ou fazer de Rossetto e Cardozo seus
porta-vozes, ou a cumular de publicidade a mídia paulista, ou ao anunciar
programas anticorrupção, ou ao facilitar a saída de Cid Gomes do seu
ministério, está profunda e irremediavelmente errada.
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