A Justiça no Brasil é braço da elite
Para o frei Henri Burin des Roziers não há reforma agrária porque a propriedade da terra é imposta pela violência
Defensor dos
sem-terra no Pará por mais de uma década, frei Henri Burin des Roziers fala do
País de hoje e dos anos setenta e oitenta.
por Leneide Duarte-Plon
De Paris
Em
seu quarto no convento Saint-Jacques, em Paris, a 12 mil quilômetros de Rio
Maria, pequena cidade do Pará onde defendeu na Justiça inúmeros camponeses
sem-terra, o frade dominicano e advogado Henri Burin des Roziers, 85 anos,
recebe CartaCapital para
falar da sua experiência no Brasil, onde foi morar em 1978. Rio Maria, campeã
de assassinatos por encomenda de líderes sindicais, é conhecida como “a terra
da morte anunciada” e, por isso, virou símbolo da luta camponesa no Pará.
O “advogado dos sem-terra” pertence a uma
tradicional família francesa. Estudou em Cambridge e fez doutorado na
Sorbonne, antes de se tornar alvo de matadores profissionais. Em 2005,
recebeu o Prêmio Internacional dos Direitos Humanos, na França, onde, em 1994,
fora condecorado com a Légion d’Honneur.
CartaCapital: Segundo
a Comissão Pastoral da Terra, entre 1985 e 2011, 1.610 pessoas foram
assassinadas no Brasil em conflitos de terras. Camponeses, padres, freiras e
advogados que defendiam os camponeses. Entre os estados brasileiros, o Pará é o
mais violento, com 645 mortos entre 1985 e 2013. Por que essa violência?
Henri
Burin des Roziers: Certamente, por causa da impunidade. Foi por isso que,
quando fui enviado a Rio Maria, trabalhei contra a impunidade dos pistoleiros e
seus mandantes, que tinham matado sindicalistas. Em Rio Maria, tinham
assassinado João Canuto, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais,
tinham ameaçado o outro presidente, que teve de fugir, e depois assassinaram
quem o sucedeu, Expedito Ribeiro de Souza. E nada acontecia. Por isso, passei
grande parte do meu tempo no Brasil tentando agir para que a Justiça julgasse e
condenasse os assassinos. Essa impunidade diminuiu um pouco, alguns foram
julgados.
CC: O
senhor obteve vitórias. Como se explica a violência em torno da terra no
Brasil?
HBR: Eles
continuaram a assassinar, claro, até hoje o fazem. Mas não da mesma forma
sistemática. Creio que por causa do nosso trabalho. A Justiça, hoje no Brasil,
ainda está ligada às classes dominantes. Na época, eles compravam juízes.
Obtivemos condenações formidáveis em Rio Maria, mas na hora da execução da pena
tivemos problemas por causa do conluio da Justiça com os ricos. Apesar de tudo,
acho que houve pequenos avanços. No País, há uma cultura da violência,
sobretudo no Norte. Ela se explica pela impunidade, mas também porque está na
estrutura da sociedade. Os que têm poder na região são violentos e a
propriedade da terra é uma realidade que se impõe pela violência.
CC: A
reforma agrária no Brasil é impossível? Por que nunca foi realizada?
HBR: Creio
que há uma razão histórica. Na história do Brasil, o problema da propriedade e
da terra é visceral. Talvez por causa das Capitanias Hereditárias e das
Sesmarias, no início da colonização. Os primeiros colonos recebiam o poder a
partir da terra. Desde a origem, o problema era fundamental. A terra como
símbolo de riqueza e poder.
CC: Por
que tanto Lula quanto Dilma Rousseff não ousaram fazer a reforma agrária?
HBR: Antes
deles houve quem tentasse. O golpe de Estado de 1964 aconteceu em parte por
causa das Ligas Camponesas de Francisco Julião. O problema da propriedade da
terra no Brasil é explosivo.
CC: Como
o senhor viu a nomeação da representante do agronegócio, grande latifundiária,
Kátia Abreu, para o Ministério da Agricultura ?
HBR: É
imcompreensível. Dilma Rousseff foi eleita com muita mobilização dos Sem-Terra,
do MST. Nomeou essa mulher para sobreviver, para ter um apoio político. Dilma
está fragilizada. Totalmente envolvida em um jogo difícil. Agora é o poder pelo
poder. É o que se dá com o PT. No Partido dos Trabalhadores, salvo algumas
exceções, o conjunto dos parlamentares luta para manter o poder. Não têm mais
preocupações ideológicas, não se empenham por reformas. Dilma Rousseff não tem
mais nada a ver com a Dilma Rousseff de Lula, quando chegou ao poder. Mas vale
dizer que era uma tecnocrata, não está na origem do PT.
CC: Depois
do assassinato da freira Dorothy Stang, em 2005, o senhor passou a ser
protegido por policiais. Por que o senhor era um alvo?
HBR: Porque
trabalhei no Brasil por muito tempo como advogado, principalmente como advogado
de acusação, se posso dizer assim, tentando levar à Justiça os matadores de
camponeses e seus mandantes. Levamos à Justiça assassinos de camponeses e
líderes do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria. Nos anos 80, os
fazendeiros da região tinham decidido que o sindicato teria de fechar. Para
tanto, mandaram matar, em dezembro de 1985, seu primeiro presidente, João
Canuto. Depois mataram seus dois filhos, José e Paulo. Não mataram a viúva
porque não a encontraram. O sucessor de Canuto teve de fugir para não ser
morto. Outro camponês, Expedito Ribeiro de Souza, assumiu a presidência do
sindicato e foi assassinado em 1991. Depois, assassinaram um diretor do sindicato,
Brás de Oliveira. Um companheiro dele conseguiu escapar, foi sequestrado e
mandado para longe de Rio Maria.
CC: Como
defensor dos sem-terra, o senhor passou a ser um alvo?
HBR: Lembro
que, já ameaçado de morte, Expedito foi convidado, em dezembro de 1990, a falar
num grande congresso da CUT, em São Paulo. Fez um discurso emocionante, diante
de mil trabalhadores. Disse que era pai de nove filhos e, como presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, estava ameaçado de morte.
Todos os amigos lhe diziam para ir embora, mas ele fora eleito presidente e não
podia abandonar os companheiros. O Le
Monde Diplomatique fez uma matéria sobre esse encontro na CUT, cujo título era:
“Esse homem vai ser assassinado”. E foi, em fevereiro de 1991.
CC: O
senhor estava lá?
HBR: Não,
eu estava deixando o Brasil e indo para a Guatemala. Com o assassinato de
Expedito, a Comissão Pastoral da Terra começou a procurar um advogado. Havia
advogados como Luiz Eduardo Greenhalgh, que naquele tempo era formidável.
Depois, deixou-se seduzir pelo poder, infelizmente. Tinha sido advogado de
presos políticos na ditadura. Havia também Márcio Thomaz Bastos, depois
ministro da Justiça do presidente Lula. Esses advogados estavam a serviço da
causa, mas diziam que do Rio e de São Paulo não podiam acompanhar os
acontecimentos em Rio Maria. No entanto, se não se fizesse algo imediatamente,
o processo estaria comprometido. Aceitei então ser o advogado. E assim fui para
Rio Maria. E fui aos poucos retomando os casos já enterrados, inclusive o de
João Canuto.
CC: O
senhor foi para o Brasil em 1978. Por que o Brasil?
HBR: Em
1969, eu fui para o convento Saint-Jacques, onde estavam alguns dos dominicanos
brasileiros exilados pela ditadura. Tomamos posição clara na defesa daqueles
que estavam presos, e que foram, inclusive, torturados. A luta armada
sequestrou o embaixador Giovanni Bucher, exigiu a libertação dos presos e
foi assim que frei Tito de Alencar e outros foram soltos. Frei Tito veio para o
Saint-Jacques e também foi aqui que conheci o
dominicano Magno Vilela. Muito inteligente, ele foi determinante para que eu
decidisse trabalhar no Brasil. Decidi ir em
1976, mas as autoridades brasileiras recusaram meu visto. Os dominicanos me
diziam que eu nunca conseguiria. Cogitei então ir para o Peru, mas, quando
estava para embarcar, já em 1978, soube que o visto
fora dado. O papa Paulo VI morrera e, para ser bem-vista, a ditadura, que
defendia a candidatura do Núncio Apostólico no Brasil, Sebastiano Baggio,
resolveu dar os vistos aos quatro dominicanos franceses que estavam na lista de
espera. Foi eleito João Paulo I, morreu logo depois. Em seguida, esse
triste João Paulo II foi eleito papa. Fui para o Brasil e não para o Peru.
CC: O
senhor foi para a Amazônia?
HBR: Primeiramente,
para o Rio, depois visitei Fortaleza, Belo Horizonte, São Paulo e Brasília.
Aprendi o português. Quando conheci Magno Vilela, no convento Saint-Jacques, já
tinha experiência de jurista na região de Haute Savoie. Ele me disse que essa
experiência seria útil nas lutas populares no Brasil. Depois dessa conversa é
que fiz meu pedido para o Brasil.
CC: Em
2013, depois da eleição do papa Francisco, o senhor disse, em São Paulo: “O
papa deve mudar de vida, parar de se comportar como um príncipe. Deve ser um
homem de diálogo no interior da Igreja e deve acabar com esse aspecto de
autoridade absoluta”. O que acha agora?
HBR: Até
agora, estou feliz. Nos sentíamos no deserto, perseguidos durante 40 anos sob o
poder de João Paulo II e do triste Ratzinger-Bento XVI. Com Francisco, a gente
se sente reabilitado. O que vi até agora me dá esperança. Sobretudo o discurso
que ele fez em Roma para os movimentos populares. Disse que era preciso fazer
uma revolução. Esperamos resultados. Fico, porém, um pouco apreensivo, sua
sucessão me preocupa muito.
CC: Numa
entrevista a um jornalista francês o senhor mencionou dom Helder Câmara como
uma figura importante no seu percurso e falou dele com admiração. O senhor o
conheceu? Como inspirou seu trabalho?
HBR: Nunca
o encontrei pessoalmente. Mas a admiração vem de longe. Quando eu era capelão
dos estudantes aqui em Paris, nos anos 1960, dom Helder, o bispo vermelho dos
pobres, vinha frequentemente à Europa e passava sempre por Paris, onde fazia
conferências que atraíam multidões. Ele denunciava a pobreza terrível do Brasil,
das crianças do Nordeste. Era o bispo dos pobres, ele lembrava que naquele país
de opulência havia uma grande pobreza. A gente mandava os estudantes irem
ouvi-lo e depois fazíamos debates. Ele ficou como uma referência. Seu impacto
no público francês era muito forte. Eu lia o que ele dizia e fazia. Ele criou
um excelente centro de direitos humanos no Recife, mas outro bispo destruiu o
que ele fez.
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