“Há cinismo nos protestos anticorrupção”: o cientista político Vitor Amorim fala ao DCM
Vitor Amorim de Angelo
O
professor universitário e pesquisador Vitor Amorim de Angelo virou notícia na
internet depois que uma entrevista sua ao Bom Dia Espírito Santo, da TV Gazeta,
afiliada da TV Globo, saiu do roteiro combinado.
Na entrevista, sobre as manifestações de 15 de março, o
doutor em Ciências Sociais fez o que se espera de um acadêmico sério: analisou
as manifestações de maneira sóbria e honesta, apesar do apresentador insistir
em ideias rasas e tendenciosas.
Formado em História pela Universidade Federal do Espírito Santo,
com mestrado e doutorado pela Universidade Federal de São Carlos, Vitor dá
aulas na Universidade de Vila Velha. Na pós-graduação, foi orientado
pelo historiador Marco Antonio Villa, uma das vozes mais reacionárias do país.
Participou, como assessor, da Comissão Estadual da Memória e Verdade do
Espírito Santo.
Em entrevista ao DCM, o professor analisa as manifestações
anti-governo, fala da influência da mídia no debate político, desmistifica a
ideia de que a corrupção é restrita a determinados segmentos da sociedade e
comenta sobre sua convivência com Villa.
O advogado e ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo disse que a
classe média “tem objetividade, uma nítida visão de interesse pessoal, nunca
coletivo. E está apavorada. Quer ganho, mas não quer risco. Por isso, pede para
as Forças Armadas voltarem”. Foram interesses individuais que levaram a classe
média a protestar nas ruas ou há um sentimento de coletividade, de ajudar a
criar um país melhor?
Na realidade, todo segmento da sociedade, não só no nosso
país, tem algum interesse – palavra que não deve ser tomada necessariamente
como negativa. Alcançar esses objetivos particulares pode ser “vendido” como
parte de um processo de criação de um país melhor, como você diz. Desde Marx,
pelo menos, já está mais ou menos claro que a classe dominante universaliza
seus interesses de classe justamente para não transparecer que tais interesses
não são, no nosso caso, para “criar um país melhor”, mas para lutar contra
uma agenda que vai de encontro aos interesses particulares dessa mesma classe.
Onde está isso nas manifestações de 15 de março? Na luta contra a corrupção. É
um objetivo muito digno, certo? Ajudaria a criar um país melhor, sem dúvida.
Porém, a propósito desse caráter universal, nacional e cívico, a luta contra a
corrupção traz embutida uma luta enviesada contra um partido, associando esta
prática quase que exclusivamente ao PT.
No fim, tirá-lo do poder é que ajudaria a criar um país
melhor. E isso, a meu ver, deve-se em muito à agenda implementada pelo partido
nos últimos anos. Por outro lado, nada disso deve ser tomado como justificativa
para o partido desqualificar por completo as manifestações, pois elas tocam num
problema antigo e grave, que prosseguiu mesmo num governo que, em 2003,
prometia ser diferente no trato da coisa pública. O erro tático do PT, na minha
visão, está justamente no fato de que sua intervenção no debate político, na
maioria das vezes, não visou tematizar essas questões, mas apenas desqualificar
o discurso das oposições, ajudando a tensionar ainda mais o quadro político. A
fala dos ministros Miguel Rossetto e José Eduardo Cardozo, ainda na noite do
dia 15, é exemplo disso.
Pode-se afirmar que o debate político está polarizado entre “elite
branca” e classes populares ou seria uma análise simplista?
As pesquisas que traçaram um perfil dos que participaram
das manifestações do dia 15 apontaram que, de fato, havia, ali, não apenas
pessoas que majoritariamente tinham votado em Aécio Neves ou em Marina Silva,
mas também pessoas com um nível sócio-econômico médio e alto – o que poderia
ser interpretado como essa “elite branca” a que você se refere. Eu,
particularmente, tenha muitas reservas com conceitos assim, pois me parece que
não tem muito poder explicativo. E aí, sim, terminam sendo simplistas, à medida
que simplificam demais o perfil dessas pessoas. Por oposição, as classes
populares seriam aquelas esperadas nas manifestações do dia 13. Mas você se
refere ao debate político como um todo. Ou seja, alguma coisa que vai além das
manifestações. Então, as pesquisas de opinião pública dão bons indicativos de
que tal polaridade já não existe de modo tão acentuado. A popularidade da
presidente e de seu governo caiu mesmo entre os que você chama de “classes
populares”.
Claro, pode-se discutir as
razões, se se trata de um posicionamento
circunstancial ou não, etc. Mas é preciso considerar que, ao menos agora, ela
começa a perder parte de sua própria base de apoio eleitoral, e o discurso da
polarização “elite branca” versus “classes populares” não só não corresponde à
realidade, como não fará muito sentido do ponto de vista da mobilização
política. Seria preciso, na verdade, explicar aos seus eleitores o que ocorre
no momento, e, numa outra direção, convencer seus adversários de que os
problemas não se reduzem ao PT. Isso exige mais esforço político do governo do
que reproduzir a ideia da polaridade pura e simples.
A presidente Dilma disse que a corrupção é “uma velha senhora”.
FHC rebateu e disse que a corrupção “é um bebê”, apesar das evidências de que o
esquema de propinas na Petrobrás tenha começado em 1997. Afinal, a corrupção é
uma velha ou um bebê?
Só se este bebê já nasceu adulto! Veja, não é uma questão
ideológica. A ideia de que a corrupção nasceu em 1º de janeiro de 2003 não
resiste a um teste simples de lógica. Não se pode erigir uma estrutura tão
complexa e variada como esta que a cada dia se descobre, visando desviar
recursos públicos, assim, em poucos anos. Em recente entrevista à rádio Jovem
Pan, o próprio Fernando Henrique afirmou que, se houve corrupção em seu
governo, ele não poderia dizer; mas que tomou alguma providência com tudo o que
chegou até ele. Ora, então chegou alguma coisa até ele, certo? Historicamente,
também não se sustenta essa versão de que a corrupção é coisa nova, recente,
deste governo.
Há vários exemplos, recentes até, de casos de corrupção.
Voltando ao que disse antes, isso deveria ser ressaltado apenas para fugir
dessa leitura oportunista da história. A partir disso, este governo tem, sim,
responsabilidade de responder às razões da corrupção não apenas continuar, mas
envolver conhecidas figuras do partido que está no governo. Dizer que a
corrupção começou na Petrobras em 1997, na prática, nada mais faz do que
igualar, por baixo, o PT às práticas que ele historicamente criticou. Além do
que, não ajuda em nada no avanço ao combate à corrupção.
Você disse, na entrevista ao Bom Dia Espírito Santo, que a
corrupção não está só na política, está na sociedade. A Operação Zelotes, onde
grandes empresas estão envolvidas em esquemas de sonegação de impostos, seria
um exemplo de como a corrupção está disseminada na sociedade?
O que eu disse no Bom Dia é tão evidente que chega a me
impressionar ver como é possível, para muitos, tratar a política com tal
distanciamento, como se o que ocorre no mundo da política fosse totalmente
descolado das demais dimensões da nossa vida. Ainda que as instituições
políticas tenham certa autonomia, e que os políticos não sejam, propriamente, o
espelho da sociedade, o fato é que o Estado é formado por pessoas que partilham
da mesma cultura e da mesma história que qualquer um de nós. E nós,
infelizmente, temos uma cultura inclinada à corrupção. Desde as pequenas
coisas, como pagar propina, falsificar recibos médicos para abater no imposto
de renda, até as grandes.
Para muitos, a diferença entre uma coisa e outra é só uma
questão de oportunidade e de escala. Estou generalizando, claro! Mas este é um
traço da nossa sociedade. O que a Operação Zelotes faz é justamente mostrar que
o problema não está só no Estado. Não é só um funcionário público, não é apenas
um parlamentar ou um partido, mas também empresas, grandes e importantes, que
estão inseridas neste mesmo esquema. De um lado, isso tira o foco
exclusivamente do governo e do PT. De outro, mostra que o problema é muito mais
difícil de resolver, pois, no fim, se todos estão envolvidos, quem sobrará para
combater a corrupção?
Graça Foster: “claro que é possível haver corrupção na Petrobrás sem que sua presidente soubesse”
De que forma a sociedade também
é responsável pela corrupção política?
À medida que ela, no cotidiano de cada um, abraça as mesmas
práticas, embora em menor escala, que nós facilmente condenamos nos outros, em
particular nos políticos. Há algo de cinismo nisso. Cinismo, não apenas porque
é seletiva essa postura moralizadora e saneadora, mas porque ela é
convenientemente dirigida apenas a alguns grupos. No caso das manifestações do
dia 15, a um governo e a um partido.
O empresário Ricardo Semler, em artigo na Folha de S. Paulo, disse
que “é difícil vender para muitas montadoras e incontáveis multinacionais sem
antes dar propina para o diretor de compras”. Por que pouco se fala a respeito
da corrupção entre empresas privadas?
Talvez porque não estejamos falando de dinheiro público, e
é o desvio do recurso público que nos torna menos capazes de investir naquilo
que realmente interessa ao país. Mas o exemplo trazido por este artigo é
interessante para pensar outra questão: sendo o recurso desviado um capital
privado, o proprietário da empresa jamais deixaria que um funcionário pudesse
ganhar alguma coisa, encarecendo o custo final, não é? Mas veja que isso
ocorre. Ora, se ocorre “sob o olho do dono”, imagine numa estatal. Em outras
palavras, claro que é possível haver corrupção na Petrobrás sem que sua
presidente soubesse. Muita gente tem dificuldade em aceitar isso.
Uma parcela da população acredita que a corrupção surgiu a partir
da ascensão do PT ao governo federal. Por que é tão difícil ver esta questão de
uma maneira mais ampla, menos generalista? Seria influência da imprensa ou das
redes sociais?
Pelas razões que eu já apontei antes. Obviamente, a
imprensa tradicional, que sabidamente assume uma postura hostil ao governo
petista – isso, desde Lula –, contribui para potencializar o quadro, dando a
nítida sensação de que, sim, “nunca antes na história desse país” houve tanta
corrupção – bordão tão comum do ex-presidente e que, agora, por ironia, cai
como luva nessa interpretação. As redes sociais ajudam a atenuar este panorama,
mas não muito. No Brasil, apesar da queda na audiência e na tiragem, os veículos
da grande mídia, muito concentrados em poucos grupos de mídia, ainda são a
fonte de informação principal de muita gente. Mas, de fato, é nas redes sociais
e, ampliando um pouco, também nos blogs, que se pode encontrar uma espécie de
contrainformação, de informação não hegemônica.
Há um clamor pelo fim da corrupção, mas o que pode ser feito de
fato para diminuir este problema? Quais os caminhos institucionais? Reforma
política?
Reforma política é importante. Mas convém lembrar que ela,
como você diz, trata dos caminhos institucionais. Mas quando juntamos a
variável social-cultural, da qual já falamos antes, a pergunta que fica é: uma
mudança nas regras institucionais resolveria o problema? Sozinha, certamente,
não. Mas não há como escapar da reforma se quisermos combater este problema. Na
Ciência Política, dizemos com frequência que as instituições importam, porque
ao estabelecerem incentivos e desincentivos a determinadas ações dos atores
políticos, acabam influenciando no resultado. Então, a reforma política
orientada para este fim visa criar constrangimentos institucionais para a
prática da corrupção. Mas isso só vale para a política institucional. Ela não
alcança aquela corrupção que, conforme foi dito, transborda para além da
política formal, para além do setor público.
O fim do financiamento privado em campanhas políticas ajudaria?
Essa é uma iniciativa importante, claro. Nem tanto o
financiamento privado é o problema, mas sim o financiamento empresarial, que é
uma variante do privado. Afinal, há o financiamento privado individual, certo?
Ou seja, não é razoável pensar que empresas darão a candidatos – muitas vezes,
adversários – somas vultosas de recursos pensando, apenas, em criar um país
melhor, voltando a uma expressão sua. Aqui, não há ideologia, apenas
interesses. Agora, sim, no sentido negativo do termo. Negativo, porque é o
interesse em manter um canal privilegiado de comunicação com o eleito,
interesse em obter alguma política que lhe seja favorável. Tudo isso às custas
do dinheiro público, que, conforme vários trabalhos já apontaram, volta às mãos
privadas em muito maior quantidade do que seguiram para as campanhas
eleitorais. Em síntese, o financiamento empresarial é uma porta larga por onde
entra a corrupção na política. Não é a única, infelizmente.
Sua entrevista ao Bom Dia Espírito Santo viralizou na internet por
fugir do script normalmente visto neste tipo de matéria, na qual entrevistados
apenas reforçam o ponto de vista da emissora. Como você avalia o papel imprensa
tradicional na cobertura política atual?
Vi muita gente dizendo que nunca mais voltarei à Rede
Gazeta, que é a afiliada da Rede Globo no Espírito Santo. O que muitos talvez
não saibam é que aquela não tinha sido a primeira vez que eu havia estado ali.
Ou seja, não se tratou propriamente de um erro da produção me convidar para a
entrevista. Não disse nada que não digo semanalmente em sala de aula e que
diria em qualquer ambiente, em qualquer lugar, para qualquer público. Tentei
ser, com educação, honesto intelectualmente. A desonestidade intelectual é uma
das coisas mais abomináveis que existe, porque, primeiro, simplifica
convenientemente a complexidade da realidade sobre a qual se está falando; e,
segundo, porque é uma afronta à inteligência alheia.
A julgar pelas mensagens que recebi na sequência, creio que
foi isso o que fez com que muitas pessoas se apropriassem da minha fala para
sustentar a mesma ponderação e o mesmo equilíbrio na análise que elas disseram
ter visto. Mas eu jamais iria a uma emissora de TV, como convidado, para
deliberadamente atacá-la, para “colocar os pingos nos is”, como li em alguns
lugares. Porém, é preciso reconhecer: à luz da cobertura enviesada da grande
mídia, a entrevista foi, sim, vista como uma resposta. Não deixa de ser. Todos
têm uma perspectiva, uma visão parcial. No caso da mídia, ainda que ela siga
todos os seus protocolos (fontes diversificadas, checagem, etc), o resultado
será, sempre, parcial. O problema que a gente enfrenta, hoje, no Brasil, é de
duas ordens, a meu ver: de um lado, esta parcialidade está extremamente
acentuada; de outro, não há outras parcialidades a concorrer em igualdade de
condições com a primeira – hegemônica e refratária ao governo do PT.
Embora a regulamentação da mídia seja uma realidade em países com
EUA e Inglaterra, aqui no Brasil ela é vista pela oposição como uma forma de
censura ou medida “bolivarianista”. Qual seu ponto de vista sobre a
regulamentação da mídia?
Sou contra a regulação da mídia. A interferência no seu
conteúdo, no seu formato editorial, acho que abre um caminho para alguma forma
de censura que pode ser uma ameaça a alguns princípios da democracia. Mas
regulamentação, que é muito diferente, essa sou a favor. Só não é a favor quem
acredita que grupos privados de mídia, que detêm concessões públicas, podem
atuar sem nenhum parâmetro. Isso é regulamentar. Alguma forma de
regulamentação, a bem da verdade, já existe. Por exemplo, os critérios
indicativos de idade para esse ou aquele programa. São parâmetros. Do ponto de
vista econômico, isso já cria amarras para as emissoras de TV, por exemplo, que
não podem exibir determinado conteúdo num horário não permitido. Aqui é que
parece estar o cerne do problema: a questão econômica. A regulamentação da
mídia pressupõe desconcentrar o monopólio cruzado que existe hoje, dispor sobre
a obrigatoriedade de exibição de conteúdo regional em parte da programação, o
que é muito importante num país extenso e heterogêneo como o Brasil. Ou seja, não
dá para fazer isso sem mexer com interesses econômicos solidamente
estabelecidos. Por isso, ao invés de discutir o conteúdo dessa proposta, a
grande mídia aposta na pecha da censura. Falou em regulamentar, é censura.
Cita-se logo a ditadura, que, curiosamente, foi apoiada por parte dessa mesma
mídia, e atribui-se à iniciativa a acusação de ser “bolivariana”. No nosso
país, bolivariano é um adjetivo negativo.
Como você analisa o clima de ódio que permeia o debate político
atual? Este comportamento faz parte da cultura brasileira ou é um fenômeno
recente?
O brasileiro só é cordial em Raízes do Brasil, embora, ali,
Sérgio Buarque de Hollanda não esteja falando de homem cordial para dizer que
nós somos educados. De todo modo, é uma boa imagem. Essa imagem do Brasil como
um país pacífico renderia uma outra discussão. Então, sendo bem assertivo na
resposta, acho que não se trata de um fenômeno recente. O que é recente é o
meio pelo qual se dissemina esse ódio. A grande mídia, apesar de tudo, ainda
mantém certos códigos de conduta. Ainda que raivosa, uma reportagem
dificilmente é apresentada assim, com todas as letras. Na internet, não. Parece
um território de ninguém, especialmente quando olhamos os comentários. O nível
da “discussão” é baixíssimo. Isso indica, no mínimo, a incapacidade de
simplesmente ouvir ou ler algo diferente do que você pensa. A ideia de
pluralidade, então, já não existe mais num contexto assim. E a pluralidade é um
dos princípios elementares de uma sociedade democrática.
Nas manifestações houve pedidos pela volta do regime militar e
presença de grupos uniformizados como os Revoltados Online, com discursos que
lembram facções fascistas. Isso é uma ameaça à democracia?
Sim e não. Sim, porque um golpe significaria a interrupção
da ordem democrática legalmente estabelecida. Não, porque, na prática, esses
grupos não são tão representativos. Portanto, não ameaçam seriamente a
democracia. São estridentes, mas não muito grandes. O que não significa dizer
que não se deva prestar atenção a eles.
Você acha que essas
manifestações a favor da ditadura deveriam ser criminalizadas? Na Alemanha
falar em nazismo dá cadeia. Na França, os direitistas da Frente Ampla foram
proibidos de participar da passeata em homenagem ao Charlie Hebdo. Por que aqui
os intervencionistas podem tudo?
Essas manifestações já constituem crimes. A Lei de
Segurança Nacional, aprovada justamente no final da ditadura, em 1983, diz isso
expressamente em seu artigo 22. À luz da Constituição de 1988, que estabelece
que o Brasil é uma democracia, é crime, pela LSN, lutar contra esta ordem
legal. Isso só prova como existe um longo caminho entre a existência de uma lei
e sua aplicação. De qualquer forma, é preciso considerar que, nos exemplos que
você deu, a tipificação do crime se assenta numa memória negativa em relação
àquela experiência. Por exemplo, o nazismo. No Brasil, para muita gente, o que
se passa é exatamente o contrário. Persiste uma memória positiva sobre a
ditadura. No ano passado, por ocasião dos 50 anos do golpe de 1964, eu e dois
colegas professores da Universidade Federal do Espírito Santo organizamos um
livro sobre o estado no período da ditadura.
Num dos capítulos, escrito por mim em co-autoria com outro
pesquisador, falávamos exatamente do processo de construção dessa memória
positiva sobre a história do Espírito Santo no período 1964-1985. Associada
muito mais ao desenvolvimento econômico do que a questões políticas e sociais,
esta interpretação tendeu a supervalorizar o que, supostamente, teria ocorrido
de “bom” durante a ditadura – o desenvolvimento econômico do Espírito Santo. A
seletividade da memória e o uso político do passado no presente está justamente
em sua capacidade de esquecer determinados elementos e, ao mesmo tempo,
lembrar-se de outros. Pode ser que seja justamente isso o que explica o
engajamento de uma parcela da sociedade brasileira na defesa de um novo golpe.
Simplesmente não tem uma memória negativa sobre esse período. É uma pista.
Há quem peça o impeachment sem ao menos saber quem entraria no
lugar da presidente no caso da destituição do cargo, sinal evidente de falta de
educação política. Quais ações poderiam ser implantadas para oferecer mais
educação política à população?
Esse é um problema com muitas determinantes. Mas eu
destacaria uma, que me parece muito evidente. Há um distanciamento, um
desinteresse e, no limite, até uma aversão de muitos brasileiros à política.
Estou pensando, aqui, na política institucional. Consequentemente, compreender
como as instituições funcionam se torna algo ainda mais além do que o interesse
desse brasileiro médio. Agora, com essas mobilizações, pessoas com este perfil
saem às ruas. Muitas acreditam estar vivendo um momento histórico. Quase que
por dever cívico, abandonam momentaneamente sua inércia. É comum ouvir muitas delas
dizerem que “o Brasil está assim porque o povo não se mobiliza”. Mas essa
mobilização acontece num contexto de cinismo, como eu disse. Nessa
circunstância, como o objetivo mais imediato é abreviar este governo, não
importa se isso se dará com um impeachment ou com a intervenção das Forças
Armadas. As consequências de cada uma dessas portas de saída são deixadas para
depois. Que fazer para mudar isso? Acho que a universidade tem um papel
fundamental, especialmente as públicas, onde estão a maioria dos cursos que têm
condições de fazer esse tipo de reflexão junto à sociedade. O novo ministro da
Educação falou na necessidade de uma “educação política”. A universidade pode e
deve jogar este papel, sendo ela produtora, difusora e mobilizadora dessas
informações e dessa discussão.
Você foi orientado pelo Marco Antonio Villa em suas teses de
mestrado e doutorado, embora tenham opiniões políticas divergentes.
Villa é conhecido e avaliado pela maioria das pessoas como
figura pública, pelo que ele fala e escreve na imprensa. Eu, ao contrário, tive
a oportunidade e o prazer de conviver com ele por vários anos, durante meu
mestrado e doutorado. Sempre tive, e ainda mantenho, uma relação afetuosa com o
Villa, por quem tenho grande respeito. Nada disso, entretanto, me impediu de
ter posições políticas diferentes das dele. Nem tampouco o impediu de dialogar
comigo, a despeito dessas posições. Assim, você pode imaginar qual não foi a
minha surpresa quando o DCM me tratou como sendo o “anti-Villa”.
Esta capacidade de manter relações de amizade e respeito apesar de
opiniões políticas diferentes está faltando ao debate político?
Sem dúvida. Não vou dizer nem de amizade. Relação de
coleguismo, de respeito, já seria o bastante. Há momentos em que as
divergências políticas nos levam a nos separar mesmo daqueles com quem temos
relações pessoais amistosas. Mas, convenhamos, isso ocorre em situações-limite,
em contextos políticos extremos, e estamos muito longe disso ainda.
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