Encontros e Despedidas...






À minha filha Raquel.


Desembarquei em Ilhéus como se entrasse numa dessas estórias da “sessão da tarde”, onde a fantasia tem final previsível e a emoção não produzirá nada além de um coração acelerado, ou de uma lágrima escorrendo meio sem graça até os lábios.

Os contos de Jorge Amado, principalmente “Gabriela Cravo e Canela” desembarcavam comigo e traziam na bagagem o cabaré Bataclan, o bar Vesúvio, as praias ensolaradas e mais um amontoado de situações e romances impossíveis de existir na vida que conhecemos como real. Mas, não sabia eu que aquela cidade tinha seu próprio e imprevisível enredo para minha curta estada em seu solo.

Antes de conferir todos os pontos turísticos, tratei de encontrar um apartamento ou uma casa agradável para morar. Foi uma espinhosa tarefa, pois, ali não se investia em construção civil e sim em fazendas de cacau. Após uns dez dias só havia encontrado uma casa disponível, mas que não oferecia nenhuma condição para que se pudesse levar uma vida compatível com as surpresas que eu esperava daquela cidade. Quando já estava sem esperanças, uma corretora de imóveis me procurou no banco e me fez subir uma curta e escarpada ladeira por trás da catedral da cidade para, inaugurar como morador, o apartamento de primeiro andar com dois quartos e uma agradável varanda voltada para o mar. A varanda dava para o quarto, e entre os dois ficava, sempre aberta, uma grande porta corrediça a me oferecer nas quentes madrugadas daquela ilha, além de uma suave e fresca brisa sobre o corpo quase nu, o burburinho das ondas quebrando nas pedras há uns cem metros lá embaixo, servindo de fundo ao som ritmado dos atabaques de terreiros de candomblé espalhados por todos os recantos. O céu quase sempre todo estrelado de Ilhéus, podia ser admirado dali mesmo, sem tirar a cabeça do travesseiro. Aos poucos a constelação de Órion – que aprendi a identificar através daquele portal mágico – ia perdendo sua cor dourada numa briga de final previsível contra um céu que lhe impunha, gradativamente, um azul cada vez mais claro. Quando as estrelas sumiam, era hora de descer a ladeira para uma caminhada acelerada até a academia de ginástica que ficava na outra extremidade da Praia da Avenida.
Aos domingos, voltando da praia pintado com óleo de bronzear, subia lentamente a mesma ladeira e parava para uma cerveja mofada no bar de Almiro, que existia bem no meio dela, e tinha o simpático e criativo nome de “Meia Embreagem”. A parada seguinte era em casa mesmo, ou melhor, na varanda do quarto com um imenso copo de caipirinha na mão e a paisagem da Ilha de Pernambuco bem à minha frente, tudo isso ao som do disco “Cantoria” de Elomar, Vital Farias e Xangai, recém lançado. “Encontros e Despedidas” de Milton Nascimento, também foi para as lojas naquele ano de 1985, e o meu exemplar veio de Salvador dentro do malote do banco... Não dava pra esperar que chegasse ao comércio de Ilhéus.
O título desse disco de Bituca (Milton Nascimento) “Encontros e Despedidas” sintetizaria todas as emoções que estavam reservadas para mim durante aquele ano, naquela encantadora cidade.
O Teatro Municipal estava em reforma, e a prefeitura armou nas areias da Praia da Avenida uma imensa lona de circo com arquibancadas e tudo mais, para que a cidade não deixasse de receber grandes artistas nacionais. De bermuda, tênis e camisa estampada assisti shows de Wagner Tiso, Dominguinhos, Artur Moreira Lima, Oswaldinho do Acordeom e Paulo Moura. Passar todas as noites, ao sair do banco, numa barraca de acarajé para devorar dois, bem apimentados, era a melhor das obrigações. Eu, que sempre procurava nas cidades aonde chegava uma barraca de acarajé, tinha agora, ao meu dispor, baianas de verdade com acarajés de verdade. Um barzinho próximo ao cinema da cidade oferecia, numa tigelinha de cerâmica, uma deliciosa canja de galinha com pedacinhos de macaxeira mergulhados, e passou a ser o nosso “point” das sextas-feiras após o expediente. Saíamos sempre eu e mais dois ou três colegas do banco que logo se transformariam em amigos e companheiros de copo. Aos sábados, logo às primeiras horas da manhã, caminhava em direção à periferia da cidade já quase na estrada que levava a Itabuna (substituia a academia que fechava aos sábados, por essa caminhada). Ali, o pai de um dos colegas tinha um barzinho onde servia um mungunzá salgado com pé de porco defumado, que eu saboreava como café da manhã, acompanhado de umas três lapadas de uma boa cachaça.
Todas essas inocentes aventuras estavam bem enquadradas naquele meu mundo de administrador de agência bancária, onde a razão dita normas e freia arroubos de liberdade mais incontidos.
Mas, a vida tem caprichos próprios. Age como num jogo onde só ela rola os dados e nós apenas ganhamos ou perdemos. Ela segue seu curso, aparentemente sem se preocupar como aplicaremos se ganharmos ou desprezaremos se perdermos. Digo aparentemente porque, tenho percebido que ela nos interpela lá na frente, ou para cobrar participação nos lucros, ou infligir pena a quem não percebeu que ganhou, mesmo quando o resultado do jogo nos pareceu uma dolorosa derrota.
Logo nos primeiros meses, ao descer a sinuosa ladeira da Rua Muniz Sodré naquele Alto de São Sebastião onde morava, parei para apanhar alguma coisa na carteira e percebi que a janela da casa à minha frente se abriu, surgindo no peitoril uma bonita garota adolescente, de longos cabelos castanhos e olhos vivos. Ao me ver parado ali, bem em frente à sua janela, fechou-a rapidamente, entre assustada e curiosa, para em seguida abri-la outra vez e ter tempo de “despachar”, em minha direção, um lindo sorriso meio acanhado e meio sedutor, antes que eu me afastasse ladeira abaixo.
Aos poucos, os meus horários de subir ou descer aquela ladeira passaram a ser monitorados por ela, e eu me esforçava para não me atrasar em nenhum deles. Trocávamos, inicialmente, olhares que mais pareciam casuais, como se ninguém estivesse interessado em ninguém. Ainda era Janeiro, eu chegara há apenas um mês e já percebia que aquele não era um lugar qualquer. O sol abrasador, tanto enchia as praias quanto tornava estéril nosso senso de razão.
Se eu passava acompanhado dos filhos, ela disfarçava e olhava na direção contrária. Se era ela quem estava acompanhada pelos avós à janela, eu olhava as casas sem graça do outro lado da rua. Aos poucos passamos a segurar esses olhares por mais alguns segundos, tempo bastante para o coração disparar e a adrenalina trazer aquele friozinho à barriga. A brincadeira tomou feições de jogo, e a astúcia instigou a vida a participar. Ela entrou no jogo sem percebermos, deixando seu laço de sedução armado entre aquele pedaço de ladeira e aquela janela. Com sua ardilosa chegada, as estruturas da razão estavam perigosamente a mercê das emoções. 
Fevereiro chegou, e os olhares, por mais duradouros e reveladores que fossem, já não nos satisfaziam. Quais seriam os nossos nomes, os nossos cheiros, as nossas histórias? Como seriam as nossas vozes, as nossas peles, o nosso beijo?
Eu tinha consciência de que não devia ir além daqueles deliciosos olhares. Ela completara apenas 15 anos e eu tinha o dobro da sua idade e dois filhos, embora trouxesse um vazio imenso no coração, e isso me assustava. Poderia estar justamente nesse vazio a porta de entrada para que toda aquela emoção contida jogasse avassaladoramente por terra todos os meus princípios, toda a minha prudência.
Chegou o carnaval... mais precisamente o domingo de carnaval e, de repente, lá estávamos nós, frente a frente, olho no olho, na calçadinha da Praia da Avenida. Cumprimentamos-nos com um beijo na face e conhecemos, nesse mesmo instante, a pele, a voz e o cheiro um do outro. Em seguida soubemos dos nossos nomes e, meia hora depois, nas areias da praia, vi minha lucidez ceder e capitular diante da força instintiva da paixão, levando-me a roubar-lhe um beijo de forma tão inesperada que não lhe dei tempo de oferecer resistência alguma, nem de retribuir aquele primeiro carinho com a intensidade que desejava - contou-me depois.
À noite, com a cabeça no travesseiro e o céu escancarado à minha frente, fui surpreendido pela razão que voltou para me cobrar explicações. Mas, eu já não tinha certeza de que a queria por ali. Não permiti que tomasse assento, mas também não tive coragem de liberá-la. Essa dúvida fez com que mudasse meus horários de descer e subir aquela ladeira. Não sei se ela também fez o mesmo com seus horários de ficar à janela, mas, a verdade é que passamos o mês de Março sem nos vermos.
Aquela fora a última chance que a razão me dera. Em Abril nos encontramos “quase” casualmente e pudemos conversar com mais calma. Trocamos nossos números de telefones e sugeri que usássemos os codinomes de Marcelo ou Marcela, quando ligássemos um para o outro. Aos poucos nos rendíamos à paixão e permitíamos que isso acontecesse, desde que fosse lentamente, sem traumas profundos, para que o encanto não fosse quebrado.
Primeiro vieram as conversas por telefone, cada vez mais demoradas. Depois meus convites para um rápido encontro no início da noite no pedaço de praia ao lado da Catedral. Assim ela não ficaria fora de casa por muito tempo e seus avós não desconfiariam de nada. Começamos a conhecer a história um do outro, principalmente a dela e a saudade permanente da mãe; a ficar amigos e mais íntimos a cada novo encontro, embora fossem sempre encontros de um homem e uma garota que se queriam bem. Só em Julho sairíamos para nosso primeiro encontro como homem e mulher. Foi a sua primeira vez, e isso teve uma importância muito grande para nós. Muitos outros encontros aconteceram depois, sempre na parte da tarde, quando ela deveria estar na escola. Preenchíamos assim a solidão um do outro, e cuidávamos para que aquele sentimento fosse sempre cercado de carinho e admiração.
No início de Novembro recebi minha transferência para Recife, que teria que ser efetivada até o final de Dezembro. Ficamos muito tristes com aquela prematura separação e a impossibilidade de interferirmos nos fatos. “Marcela” resolveu que partiria para São Paulo ao encontro da sua mãe, e que essa viagem seria antes da minha, pois não queria assistir à minha partida. Ela viajou no dia 25 de Novembro já com suspeita de gravidez, e eu no dia 12 de Dezembro.
Nos primeiros meses de 1986 esperei algum contato de Marcela, o que não aconteceu. Só em 1989 receberia com surpresa uma ligação na qual falava que tivera uma filha comigo e lhe dera o nome de Raquel; que estava casada e tinha mais um filho. Pensei que estivesse brincando comigo, querendo me deixar apenas preocupado. A ligação foi curta e não fiquei com o número do seu telefone. Ela me ligou mais uma vez, mas não me encontraria na agência. Hoje, sabendo dos problemas de ordem afetiva que "Marcela" enfrentava quando me fez aquela ligação, sinto uma dor profunda por não haver lhe dado o crédito que merecia, por havê-la tratado ainda como uma menina.
Alguns meses depois, o banco foi extinto pela Presidência da República, e qualquer possibilidade de contato entre nós tornou-se completamente inviável.
A possibilidade de Raquel existir me atormentou durante todos esses 18 anos. Seria verdade o que “Marcela” me falou? Se fosse, como estaria, como seria? Filhos têm um significado importantíssimo em minha vida. Talvez por haver me separado dos meus pais aos dez anos e nunca mais haver voltado definitivamente para perto deles. Hoje, com o primeiro casamento desfeito, convivo muito pouco com os meus três filhos. Chorei o primeiro ano inteiro após a separação. Nós quatro tínhamos uma relação de muita próximidade e a minha presença era muito forte em suas vidas e, consequentemente, a deles na minha.
Há quatro meses “Marcela” me localizou pelo orkut. Teve mais sorte que eu, que já tentara isso diversas vezes. Na verdade foi mais fácil para ela através da Comunidade do BNCC (o banco no qual trabalhei). Voei para seu álbum de fotografias para confirmar se Raquel existia, e lá estava ela, com 22 anos, nascida em 21 de Julho. Não deu para segurar tanta emoção. Salvei todas as fotos, fiz montagens com fotos de nós dois, contei para os meus filhos (seus irmãos) e para todos os amigos, apressando-me em mostrar as fotos dessa menina linda.
Sua mãe, "Marcela", tem sido uma grande amiga. Mostrou-se uma pessoa generosa por não guardar nenhum rancor de mim, e tem, na medida do possível, feito uma ponte entre pai e filha.
Dias atrás sonhei com ela pela primeira vez. No sonho, ia a São Paulo conhecê-la, e marcávamos um encontro em um restaurante nas proximiades da sua casa. Ela chegou acompanhada do marido e não sabia que eu era seu pai, e sim apenas um amigo da sua mãe. Eu a abracei o mais demoradamente possível e depois que nos sentamos, não conseguia soltar mais suas mãos de menina. Acordei sentindo ainda o seu suave ferfume e a maciez do agasalho que usava.
Antes dela saber que sou seu pai biológico, conversamos duas vezes pelo msn de “Marcela”. Foi uma surpresa maravilhosa. Pensei que conversaria com sua mãe e, de repente: “Oiiiiiii, é Raquel, mamãe não está” Não deu para segurar as lágrimas. Ela escreve bem, raciocina rápido, é atenciosa e chegou até a ser carinhosa comigo, após me reconhecer como amigo da sua mãe. Na nossa segunda conversa, seus questionamentos sobre alguns traços do seu rosto, tão diferente dos familiares que conhece, me levaram praticamente a confessar nossa condição de pai e filha.
Desde então estamos em “off”. Ela precisa de mais tempo para digerir toda essa história e entender porque estive tão ausente todos esses anos. Tenho sofrido com esse silêncio, mas lhe devo todo esse respeito por suas vontades.
Ontem voltei a sonhar com Raquel. Numa primeira parte do sonho ela regava flores num terracinho da sua casa em São Paulo e me ensinava como fez para dar brilho na cerâmica que formava os canteiros. Numa segunda parte, ela dançava tango comigo em frente à sua casa, em plena rua, e sorria me ensinando alguns passos mais difíceis. Depois nos sentávamos em um banquinho sob uma árvore e conversávamos, de mãos dadas, sobre nossas vidas. Acordei com lágrimas nos olhos.
Sob uma das fotos dela que coloquei no meu álbum de orkut, redigi o seguinte texto. “Raquel, minha filha querida. Antes dela eu pensava que saudade era apenas a vontade de ver de novo. Hoje, sei, que saudade pode ser também, a vontade de abraçar e beijar pela primeira vez. Morro de saudades dessa menina linda, e me preocupo porque anda de moto”.


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O primeiro comentário abaixo é de "Marcela" que me autorizou a confessar seu verdadeiro nome de Valéria.
Obrigado Valéria, por ser a amiga que é, e por conseguir administrar minha ansiedade.
Beijo carinhoso.

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Comentários

  1. Anônimo12:53 AM

    Tenho certeza que o pouco tempo que cruzou a vida de Marcela,ela só tem a agradecer.Cada pessoa que passa em nossas vidas, é única deixam um pouco de si,elevam um pouco do nós.Vcs fizeram história,tenha certeza que sua filha um dia terá um orgulho muito grande de vc>Se já não tiver.Abração

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  2. Sabes que terminei de ler chorando, né? Fazer o que se "somos" assim... Ficou lindo Rodolfo. Conseguiste transmitir exatamente tudo o que vi nos teus olhos no dia que me destes esta maravilhosa notícia. Ô meu amigo querido, nem sabe ela que pai maravilhoso tem! Mas, vai saber logo, logo.

    PS. Agora se Nadja não me avisasse desta publicação, né mocinho?!!!

    Aguarde-me, viu?

    Beijosssss

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  3. Que historia mais linda tio!
    Fiquei emocionada... e o senhor hein??? Ja pensou em escrever livros? EH um poeta mesmo!!! QUe orgulho! :)
    Espero que esse silencio acabe logo e que vcs possam finalmente se encontrar e fazer todos esses lindos sonhos tornarem-se realidade!
    Felicidades pros dois!!
    Beijos

    PS. Vou la checar as fotos, no orkut. ;)

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  4. Anônimo5:05 PM

    Rorõ rapaz!!! q felicidade esse presente de vida q vcs ganharam!
    Fiquei muito emocionada, tenho certeza das gratas surpresas q teras com essa historia q ainda em começo já é p lá de bonita!
    Bjao amigo querido,
    Luíza Roberta

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  5. rodolfo meu amigo,como não chorar?Estou em lágrimas,se a Raquel nasceu em 86 ela tem hoje a idade da Anna Thereza.Que presente de Deus!!!Amei a tudo o que vc relatou,sinceramente deveria escrever um livro.Comentaremos depois,a emoção é muito grande.Abraços Tereza Cristina

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  6. Rodolfo eu já fiz duas vezes um comentário sobre Encontros e Despedidas e não chega até vc. Abraços Tereza Cristina

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