Gabiru Sapiens
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O fedor de merda seca queimando vinha numa fumaça invisível de tão tênue, levando-me, mesmo assim, a quase sufocar, e afastando o bom humor que sempre me acompanha em todas essas caminhadas às primeiras horas.
Estava me aproximando da Praça Procurador Pedro Jorge que fica entre a minha casa e a beira mar de Olinda, e ver aquela criança arrastando e amontoando sacos de lixo das lixeiras próximas para, em seguida, numa eficiente garimpagem, fazer sua primeira refeição, era meu primeiro contato diário com a nossa própria podridão. Certamente, o que lhe parecera alguns biscoitos, não passara de fezes de cachorro, o que o levou a atear fogo naquela sacola de supermercado, numa infantil vingança com endereço equivocado.
Sentado - literalmente - naquele fétido banquete, continuava abrindo e enfiando a mão em cada uma das sacolas, aproximando-as mais dos olhos para distinguir, entre aqueles restos, o que aplacaria a sua ininterrupta fome. Passando ao largo e, entre indignado e constrangido, arrisquei uma rápida e sutil olhadela em sua direção. Coincidentemente ele também levantara a vista fazendo com que nossos olhares se cruzassem. Baixei o meu rapidamente - certamente para ver onde pisava - e voltei em seguida a procura-lo com os olhos, encontrando-o colocando alguma coisa verde na boca excessivamente aberta. Tinha o olhar fixo em algum indecifrável ponto distante; um olhar que berrava gritos surdos porque não ecoavam em ponto algum; um olhar cego porque não identificava o que estava à sua frente, e não encarava sequer o que lhe manteria mais um dia vivo, para mais uma desgraçada manhã.
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Tua imensa sensilidade desperta e aflora textos como este. Obrigado por presentear-mos assim...
ResponderExcluirBeijo carinhoso.
Você não escolhe assunto antes o contrário.Você é surpreendido pelos que surgem a medida que se movimenta,ou para.Neste caso,vc foi assaltado pela ocorrência,elas te arrancaram da quietude e o obrigaram a considera-la.
ResponderExcluirHoje ,talvez o único fato impossível de se abordar seja a própria morte.
a podridao, q cheira muito mal, muito mais q os sacos de lixo fedidos e revistados por uma criança eh a permissividade dos olhos entreabertos dos que disfaçam oq veem e assim continuam a caminhar pelas "belas manhas vindouras".
ResponderExcluirLuiza Roberta.
"O ocaso é sempre comovente
ResponderExcluirpor mais pobre ou berrante que seja,
porém mais comovente ainda
é o fulgor desesperado e final
que enferruja a planície
quando o último sol mergulhou.
É doloroso manter essa luz tensa e diversa,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e cessa de repente
quando notamos sua falsidade,
como cessam os sonhos
quando sabemos que sonhamos".
Jorge Luis Borges
Nadja Rolim