EFEITO COLATERAL ATINGE TELENOVELAS DA TV GLOBO - Por Wilson Ferreira
Será que a culpa é da Internet? Ou as séries
do Netflix seriam as culpadas? Será que o gênero é uma vítima do sucesso das
tecnologias de convergência? São vários os diagnósticos do porquê da atual
crise de audiência do principal produto da TV Globo – as telenovelas. Talvez
sejam diagnósticos muito apressados por conterem o desejo político pelo fim do
monopólio da Globo. Mas as pesquisas qualitativas com telespectadores feitas
pela própria emissora têm uma pista: falam em “teledramaturgia pesada” e
“desesperança” desde a novela “Em Família” . Em sua escalada oposicionista a
Globo recruta as telenovelas como mais uma bomba semiótica, rompendo o sutil
equilíbrio entre romantismo e realismo, projeção e identificação que sempre marcou
o sucesso do gênero – a ficção deve agora reforçar subliminarmente o “quanto
pior, melhor” do telejornalismo. A Globo estaria vivendo o efeito colateral da
sua condição esquizofrênica: ser uma empresa e ao mesmo tempo um partido
político.
Mal
recuperou-se da crise de audiência que obrigou a descaracterizar e encurtar às
pressas a telenovela Babilônia, e o núcleo de
teledramaturgia da Globo passa a viver novo sobressalto: reuniões foram
convocadas às pressas para entender o problema da baixa audiência na estreia de A
Regra do Jogo, nova produção do horários das 21 horas.
Novela das 6 segue com boa audiência. Ator Luiz Carlos Vasconcelos interpretando Bento na novela das 6. Uma ilha de salvação da audiência no desmantelamento da teledramaturgia da Rede Globo.
A Regra do Jogo teve
a pior início na história das telenovelas globais (31 pontos, enquanto as
antecessoras Babilônia (33), Império (32), Em
Família (33), Amor
à Vida (35), Salve
Jorge (35), Avenida
Brasil (37), Fina
Estampa (41), Insensato
Coração (36), Passione (37), Viver a Vida (43), Caminho das Índias (39)
e A Favorita (35)
se saíram melhor.
Desde
o último sucesso de Avenida Brasil em
2012 (que surfou no sucesso econômico neodesenvolvimentista e ascensão da
chamada “Classe C”) as audiências vêm despencando no horário nobre e mais caro
da televisão brasileira.
Muitas explicações têm sido levantadas: processo de
transformação das tecnologias de convergência que oferecem novas opções as
telespectadores mais jovens, Internet, crise criativa na teledramaturgia ou
simplesmente o início do fim do gênero telenovela – com ofertas como as series
do Netflix, por exemplo, ninguém teria mais paciência de ficar meses a fio
preso a uma história.
Último
sucesso: "Avenida Brasil" pegou carona na ascensão da chamada
"Classe C"
O que parece estar muitas vezes por trás desses
diagnósticos é na verdade um anseio político de que a TV Globo esteja se
aproximando do abismo depois de décadas de monopólio, de que finalmente a
chamada vênus platinada esteja perdendo sua força diante das novas tecnologias
ou de que um gênero televisivo que tanto serviu de agente de alienação esteja
caminhando para o fim.
Para
além desse desejo velado, o Cinegnose quer entrar
nessa discussão é lançar uma hipótese, já iniciada em postagem
anterior: partindo da constatação que a TV Globo vem nos
últimos anos assumindo o papel de partido de oposição feroz ao Governo Federal
através do seu telejornalismo e, como veremos, utilizado também a
teledramaturgia, poderíamos interpretar a atual crise das telenovelas globais
como efeito colateral da atual cruzada política da emissora?
Teledramaturgia
“pesada”
Ao recrutar seu principal produto de mais alta audiência
como bomba semiótica jogada contra o Governo, a ambição política da Globo
poderia começar a interferir na rotina de audiência da teledramaturgia da
emissora.
Pesquisas
qualitativas realizadas pela própria emissora já detectaram, como no caso de Babilônia,
de que o público considerava uma “teledramaturgia pesada” com vilãs praticando
maldades desde os primeiros capítulos, demonstrando “desesperança” sem um
“final feliz”. No geral, desde a telenovela Império,
as pesquisas vêm apontando “excessos de mau-caratismo” e “realidade”.
No
caso de Babilônia, uma estratégia desesperada de
recuperação foi acionada pelos autores Gilberto Braga e Ricardo Linhares para
tirar o pé no “realismo”: evitou-se que uma personagem virasse prostituta
(Alice, feita por Sophie Charlotte) e um galã (Carlos Alberto, personagem feito
por Marcos Pasquim) se tornasse homossexual.
"Babilônia"
em crise: personagem Carloa Alberto deixa de ser gay para tentar recuperar a
novela
Observando a história e evolução das telenovelas globais
em seu conjunto, diversos estudos clássicos sobre o gênero apontam que o
segredo do sucesso da teledramaturgia global foi sempre a busca de um
equilíbrio entre o romantismo e o realismo.
Ao
contrário do formato melodramático latino-americano, como as produções
mexicanas ou venezuelanas, as telenovelas globais encontraram uma fórmula de
equilíbrio entre drama, humor e realismo naturalista - narrativas, plots e
personagens menos estereotipados do que na fórmula do melodrama e até reflexões
sobre temas sociais como segregação, machismo, feminismo. Além de temas da
pauta do jornalismo como, por exemplo, a clonagem humana abordada pela novela O
Clone (2001-2) de Glória Perez.
Politicização
da teledramaturgia global
Porém,
percebe-se que, desde a novela Em Família (2014),
com cenas como a do estupro de uma personagem no interior de uma van no Rio de
Janeiro (repercutindo a notícia da chamada “van do terror”, sobre quadrilhas
que estariam sequestrando turistas na cidade - fato bombástico à vésperas da
Copa do Mundo), esse equilíbrio teledramatúrgico forçando as tintas no
“realismo” com os autores utilizando pautas do telejornalismo da própria
emissora como ganchos para criar situações ou plots narrativos.
Portanto,
a hipótese do Cinegnose para a
atual crise das telenovelas globais (e principalmente no horário nobre da
emissora) residente numa evidente “politização” da teledramaturgia na escalada
do papel de oposição política que a Globo assumiu.
Essa
politização mais explícita já havia se iniciado em minisséries como Felizes
Para Sempre (o achincalhamento niilista da Política na linha
do “nenhum político presta e Brasília é a cidade do pecado”) e Questão
de Família (apologia da judicialização da política através de
um juiz justiceiro). Com o acirramento político atual e o clima do “quanto pior
melhor” que a emissora parece abraçar, agora a Globo utiliza o seu principal
produto (as novelas do horário nobre) como bomba semiótica final.
"Em
Família" e a cena do estupro na van: repercutindo pautas do telejornalismo
O clima de baixo astral que domina a pauta do
telejornalismo atual com rostos cada vez mais patibulares de seus âncoras (a
voz cada vez mais grave e os olhos apertados de Bonner; as olheiras cada vez
maiores de William Waack e Sandra Annenberg; o olhar debaixo para cima com
olheiras igualmente crescentes da comentarista econômica Miriam Leitão etc. –
até o jovem Evaristo Costa, sempre as voltas com pautas positivas começa a
ensaiar feições deprimidas) deve agora também invadir a teledramaturgia com
crônicas sobre um país afundado em vilania, corrupção e imoralidade.
Numa estratégia de reforço metonímico, as telenovelas
devem reforçar na ficção a desesperança e pessimismo exibido antes no Jornal
Nacional. E parece que a atual crise de audiência das telenovelas é um
indesejável efeito colateral para uma emissora que, no final das contas, é uma
empresa como outra qualquer.
Identificação
e projeção nas telenovelas
Esse
desequilíbrio da teledramaturgia afeta um dos principais produtos ficcionais da
indústria cultural brasileira que, para pesquisadores como o francês Dominique
Waltton, foi o principal produto que ajudou a criar “o grande público” no mercado
de telecomunicações brasileiro – um produto cultural único, capaz de se dirigir
sucessivamente para as classes A,B,C e D e criando, bem ou mal, um laço e
identidade social baseado na “ficcionalização da realidade” – leia WOLTTON,
Dominique, O Elogio do Grande Público,
Ática, 1996.
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