OS BANCOS PREPARAM A PRÓXIMA CRISE GLOBAL
Como a
aristocracia financeira recuperou poderes e regalias que levaram ao terremoto
de 2008. Por que, ao poupar este setor, políticas como “ajuste fiscal”
brasileiro abrem caminho para novo desastre
Recebido por e-mail
Texto Susan George | Tradução: Gabriela Leite | Imagem: Sj J
Sempre otimista, não acreditei que os bancos sairiam da crise de
2007 a 2008 mais fortes que antes, sobretudo em termos políticos. É verdade que
alguns pagaram multas que os fizeram cambalear — um total de 178 bilhões de
dólares para os bancos norte-americanos e europeus — mas consideram que tais
desembolsos são “o preço de fazer negócios”. Nenhum líderes do setor que
quebrou a economia mundial passou uma só noite na prisão, nem teve que pagar,
pessoalmente, uma única multa.
Ainda não superamos os
efeitos do terremoto financeiro vivido em 2007-2008, mas os políticos e os
próprios banqueiros já estão preparando o cenário para a próxima crise. Estudos
matemáticos mostraram a densa teia interconectada dos atores financeiros
mundiais, na qual a falha de um deles poderia desencadear o colapso de todos.
Nos colocaram no fio da navalha, e temos boas razões para ser pessimistas:
– Os governos e as instituições financeiras internacionais não
demonstraram nenhuma intenção de regular os bancos, o que nos expõe ao perigo
de ter que suportar uma repetição da jogada. Os bancos e os banqueiros não só
são grandes demais para falir — ou para ser presos –, mas também para ser
desafiados. Por isso, permitem-se fazer o que lhes dê vontade.
– A adoção de
dispositivos de segurança no setor financeiro foi sistematicamente sabotada.
Não se produziu a separação necessária entre os bancos comerciais e os bancos
de investimento (o que impediria que o dinheiro dos depositantes continuasse a
ser usado para especular). Durante mais de sessenta anos, a lei norte-americana
Glass-Steagull, aprovada durante o New
Deal do governo Roosevelt separou-os,
protegendo o sistema financeiro norte-americano. Foi revogada, em 1998, sob o
mandato do presidente Bill Clinton — com um grande empurrão de seu secretário
do Tesouro, Robert Rubin, ex-executivo do banco Goldman Sachs. Foi necessário
menos de uma década para produzir-se a quebra devastadora do Lehman Brother e
do mercado. Os políticos não atendem a razões, mas sim ao lobby bancário. Por
isso, as exigências de reservas (capital) dos bancos continuam baixos demais.
Não se aprovou nenhum novo imposto sobre as transações financeiras. Um imposto
debatido por onze paízes da União Europeia ainda está em debate.
– Os volumes diários
de transações com derivativos e moedas cresceram 25% ou 30% em comparação com
os níveis de antes da crise, e somam trilhões a cada dia. As operações anuais
totais com derivados somam em torno de cem vezes o Produto Mundial Bruto. O
surgimento de transações automatizadas, impulsionadas por algorítimos, move
este crescimento, mas até as máquinas e os nerdsmatemáticos
podem cometer erros perigosos.
– Grandes quantidades
de empréstimos convertidos em bônus de risco poderiam inundar uma vez mais as
carteiras de investidores instutucionais. Desta vez não estariam associados às
hipotecas subprime, mas a lotes de outras categorias de dívida, como os
empréstimos a estudantes ou consumidores.
– Em 2008, a
especulação desenfreada nos mercados de matérias primas causou uma dramática
alta dos preços dos alimentos, acrescentando 150 milhões de pessoas às listas
dos famintos mundiais. Estas cifras não se repetirão nem nesse ano, nem no
próximo: os preços dos grãos despencaram e 150 trilhões de dólares procedentes
de Wall Street foram retirados desses mercados nos últimos dois anos. Contudo,
outras leis protetoras do New
Deal também foram revogadas e
os mercados poderão mais uma vez ser alvo de apostas sem limites, quando as
mudanças climáticas e a falta de alimento fizerem com que sejam rentáveis.
– Os paraísos fiscais
triunfaram. Eles não beneficiam apenas o 1% mais rico. Especializaram-se também
na evasão fiscal corporativa. As maiores corporações deixaram de pagar os
impostos que lhes correspondem. Por exemplo, as empresas francesas sonegam
anualmente de 60 a 80 bilhões de dólares. As corporações beneficiam-se de
serviços públicos como a polícia e os bombeiros, a energia, a água, o
saneamento, o transporte, a saúde, a educação e a formação para seu pessoal, e
o Estado de direito, mas não contribuem para mantê-los, de maneira que estes se
deterioram. Quem perde são os cidadãos e cidadãs, e a rede de infraestrutura. O
escândalo Luxleaks – que desmascarou a evasão
fiscal de mais de 300 empresas — demonstra que os Estados-membros da União
Europeia fazem intencionalmente vistas grossas, com a cumplicidade das quatro
grandes “agências de risco”, quando as empresas transferem contilmente seus
lucros para Luxemburgo, onde quase não pagam impostos. Os paraísos fiscais das
Ilhas Britânicas também contribuem para essa prática. Estima-se que 25% ou mais
do faturamento dos maiores bancos da União Europeia está em “centros
off-shore”; ninguém conhece ao certo esta cifra.
– Pesquisas realizadas
pelo Banco Central Europeu sobre os 130 maiores bancos da União Europeia descobriram
que estes não apoiam a economia real — onde as pessoas vivem, trabalham,
produzem e consomem. As pequenas e médias empresas da União Europeia oferecem
80% ou 90% de todo o emprego disponível, mas continuam tendo muitos problemas
para receber empréstimos. Desde 2008, os bancos endureceram suas condições de
concessão de crédito. OFinance Watch – um think tank
progressista de Bruxelas — afirma que só 28% de toda atividade bancária vai
para a economia real; o que sobra infla o setor dos produtos financeiros que
multiplicam o dinheiro sem passar por fases tão “incômodas” como a produção e a
distribuição…
– É verdade que os
Estados Unidos têm vivido crescimento econômico e criação de emprego, porém
mais de 90% do valor de tal crescimento tem sido abocanhado pelo 1% mais rico.
O desemprego europeu continua crescendo, e em vez de crescer, a União Europeia
escorrega rumo à deflação.
– Já em 2011, os
lucros dos bancos norte-americanos haviam chegado aos níveis recorde de antes
da crise. E ainda antes, em 2009, os nove maiores bancos desse país distribuíam
gratificações de um milhão de dólares ou mais, a mais de cinco mil banqueiros e
operadores financeiros, usando para isso o dinheiro público dos empréstimo que
receberam dos Estados. Ao menos 5 bilhões de dólares provenientes do dinheiro
dos contribuintes norte-americanos foram para indivíduos da indústria
financeira. Seus colegas britânicos receberam 20 bilhões de dólares por meio de
gratificações em 2010 e 2011, e os banqueiros franceses receberam outro tanto.
– As robustas
gratificações contribuem para o grande salto adiante da desigualdade. São
conhecidas as comparações chocantes entre a parte da riqueza mundial que é
apropriada pelos multimilionários e o que sobra para o resto do mundo. Estão
sintetizadas num relatório da Oxfan ou
nos informes sobre a riqueza mundial que falam sobre as alturas douradas, onde
moram não o um por cento — pobres perdedores! — mas um em cada dez milhões.
– A lista de
bilionários da Forbes, de 2014, enumera os 1542 terráqueos que ultrapassaram a
marca, com um volume total de 6,5 bilhões de dólares. A desigualdade não é
obscena em termos monetários. Em Desigualdade:
uma análise da (in)felicidade coletiva,Richard Wilkinson e Kate Pickett
demonstraram de maneira indiscutível que a desigualdade tem correlação
necessária com todos os fenômenos sociais desagradáveis e custosos, de doenças
à violência, à obesidade e as populações carcerárias. Mas as finanças estão
organizadas agora de tal maneira que ao chegar ao status de bilionário, é
muito difícil perdê-lo.
Recompensas,
recompensas
Os banqueiros
aprenderam também como organizar as instituições internacionais para que estas
os recompensem tanto nos momentos bons como nos maus, por investimentos
financeiros geniais ou desastrosos. Desta maneira, governos da zona do euro
como Alemanha e França trazem dinheiro ao Mecanismo Europeu de Estabilidade
Financeira; este dá dinheiro ao governo grego (irlandês, espanhol…) que, por
sua vez, o entrega aos bancos gregos (irlandeses, espanhois…) com a intenção de
que estes devolvam os empréstimos recebidos dos bancos franceses e alemães.
A maioria das pessoas
não se dá conta que os enormes “empréstimos” concedidos à Grécia pela “Troika”
(Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional)
entre 2010 e 2012 não se destinaram a “ajudar os gregos”, mas sim a canalizar
dinheiro aos bancos que haviam comprado títulos gregos. E por que compraram? É
uma boa pergunta: porque estes valiam em euros, mas pagavam juros mais altos,
por exemplo, que os títulos alemães, igualmente denominados em euros.
O trabalho da Troika
é, portanto, garantir que se devolva o dinheiro aos bancos, desde os planos de
“regate” sejam associados a condições drásticas da austeridade. Os bancos podem
perder algo em seus investimentos nos países do Sul da Europa ou da periferia —
mas não no nível em que isso ocorreria sem a porta giratória da Troika.
Os povos — que não
criaram a crise — devem, contudo, sofrer com ela. Até certo ponto, isso pode
ser medido em fome crescente, fechamento de hospitais e escolas, violência e
migração dos jovens. Mas as verdadeiras consequências para incontáveis seres
humanos que não têm responsabilidade pelos problemas econõmicos não podem ser
quantificadas. Sustento: minha afirmação de que os bancos aprenderam que podem
fazer o que quiserem não era um recurso retórico…
E chegamos ao ponto em
que o leitor diz: “sim, mas o que podemos fazer?” Em geral, as respostas são
conhecidas, e muitas delas consistem em fazer o contrário do que se resumiu
acima. Separar os bancos comerciais dos de investimento, cobrar imposto das
instituições financeiras, proscrever os paraísos fiscais, obrigar Luxemburgo a
desmantelar sua proteção às empresas sonegadoras, negar-se a assinar os novos acordos de “livre” comércio.
Mudar as regras do
Banco Central Europeu (BCE), que não empresta aos países, mas apenas aos bancos
privados. Estes pedem créditos ao BCE a menos de 1% de juros ao ano, para em
seguida emprestar os mesmos recursos aos países com os maiores juros possíveis
— às vezes mais de 6% — o que constitui outro presente à banca. O BCE deveria
emprestar diretamente aos países, cobrando os mesmos 1% ou menos, e os governos
europeus deveriam poder emitir títulos em euros.
As políticas de
“austeridade” devem ser descartadas, porque não funcionam, nem humana nem
economicamente. Os europeus do norte entendem isso: a palavra em alemão para
dívida é Schuld, que
significa também pecado ou culpa; mas a crise persistente não tem a ver com
moralidade. Necessitamos de menos golpes no peito (o dos outros) e mais
economia inteligente. Nas palavras de um economista alemão que escrevia no Financial Times: “Existem dois
tipos de economistas alemães: os que não leram Keynes e os que não entenderam.”
É preciso lembrar
primeiro que a dívida os países não se parece, em absoluto, com a de uma
família. Na verdade, ao longo da história, a maior parte da dívida soberana era
perdoada; em todo caso, como disse o economista e acadêmico norte-americano
Paul Krugman: “é preciso vigiar os fluxos, não as ações.”
Enquanto os países
continuarem obrigados ao pagamento de juros elevados, terão dúvidas eternas. As
nações não desaparecem. A Grécia, por exemplo, tem um superávit orçamentário,
quando levam-se em conta apenas a arrecadação de tributos e os investimentos e
despesas não-financeiras. Deveria estar qualificada para pagar juros de 1% do
ano. O país deveria também reduzir drasticamente seu orçamento militar,
tributar a igreja — o maior proprietário de terrenos e imóveis — e como disse o
partido governante Syriza, “perseguir a oligarquia”.
Se a próxima crise for
de fato deflagrada, será imensa e mortalmente perigosa para as pessoas comuns,
que poderiam perder sua poupança, seguros, aposentadorias e mais. Não estou
propondo que se criem refúgios antiaéreos ao estilo de 1950, construam-se
depósitos de alimentos e se autorize a posse de uma arma por casa — mas não
faria mal começar a desenvolver sistemas sociais mais resistentes e uma
autoconfiança maior. As pessoas trabalham bem quando cooperam entre si, e o
fazem instintivamente ou por necessidade quando têm que enfrentar um
colapso econômico, como fizeram os argentinos há quinze anos ou fazem os gregos
hoje. Organizam cantinas populares, hortas comunitárias, clínicas de saúde
solidárias, creches, moedas sociais, soluções habitacionais e assim por diante.
Sobretudo, precisamos
enfrentar a mortífera ideologia neoliberal que contaminou o pensamento e a
ação, enquanto os bancos podem fazer o que lhes der na telha.
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