O CRIME ASSUME DESCARADAMENTE AS INSTITUIÇÕES E TEM INÍCIO A FALÊNCIA MÚLTIPLA DE ÓRGÃOS
Sem conseguir conter a volúpia por poder e dinheiro alheia dos que lhe colocaram no poder sem um único voto, sem o destemor típico dos que homens honrados e assustado com tudo e com todos ao seu entorno, o governo balança em direção ao caos total.
A seguir, texto de Paulo Moreira Leite no 247
Dia após dia, o simulacro de governo construído em torno de Michel
Temer após o golpe parlamentar dá provas de enfrentar uma crise
gravíssima que, a falta de nome melhor, podemos definir como falência
múltipla de órgãos, que atinge a economia, a política, a vida dos 206
milhões de brasileiros.
Do lado de fora, tudo parece bem no organismo. O Congresso aprova
medidas que, pelo caráter impopular, seriam impensáveis sob um regime
democrático. A mídia amiga garante uma cobertura favorável num adesismo
que cedo ou tarde irá cobrar novos desfalques em sua já minguada
credibilidade. O país enfrenta a mais grave depressão econômica de sua
história, mas uma oposição desestruturada até agora não teve forças para
comandar protestos e mobilizações em defesa dos salários e do emprego
-- algo que foi possível fazer, todos irão recordar, mesmo durante o
regime militar, nas gloriosas lutas que permitiram o nascimento de um
barbudo de voz grossa e discurso firme, que ocuparia o centro da
história brasileira pelas quatro décadas seguintes.
A situação real é outra, como se sabe desde o início de um ano
inaugurado pelas grandes matanças que indicam a falência do sistema
prisional.
Um resumo das últimas 24 horas permite um bom quadro da situação. Um
juiz de primeira instância barrou a nomeação de Moreira Franca como
ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, onde poderia
proteger-se das investigações da Lava Jato. A AGU conseguiu derrubar a
liminar contra o amigo de Temer mas uma segunda decisão judicial manteve
o bloqueio à nomeação.
Uma semana depois de ter sua reeleição celebrada como uma vitória
colossal de Temer, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foi acusado
pela Polícia Federal de receber propina de R$ 1 milhão da empreiteira
OAS. Nos patamares inferiores da pirâmide do Estado, também ocorreram
movimentos que impressionam.
Numa ação que incluiu a exibição de armas para o alto, policiais
civis inconformados com a reforma da Previdência, invadiram o Congresso
na tarde de ontem.
No Espírito Santo, estado que até outro dia era apontado pela TV
Globo como exemplo a ser seguido pelo país inteiro, a greve da Polícia
Militar por aumento de salário deixou a população entregue a ações de
bandos criminosos, que já produziram 96 homicídios até ontem. Uma foto
na primeira página da edição de hoje do Estado de S. Paulo mostra
moradores de um condomínio na grande Vitória fazendo barreiras para
evitar a entrada de delinquentes.
No Rio, num esforço óbvio para evitar uma rebelião que só iria
agravar um estado geral de revolta, no mesmo dia em que teve o mandato
cassado no TRE por corrupção, o governador do Rio de Janeiro, Luiz
Fernando Pezão assinou um aumento de 10% para policiais e demais
integrantes da segurança pública.
Com orçamentos arrebentados pela queda nas receitas próprias e
repasses federais, o colapso de outros governos estaduais -- além do
terminal Rio Grande do Sul -- e prefeituras é uma questão de meses,
semanas, ou até menos. O horizonte real é a Emenda que reduz gastos por
duas décadas, Numa republica federativa, todos os caminhos apontam para
Brasília.
Neste ambiente, mesmo disfarces de quem se fantasia de gari são de
natureza publicitária e têm pouca duração -- exibem um anúncio sem
produto.
O mal-estar tem uma origem material, fácil de identificar, no
programa de austeridade radical e permanente que Temer-Meirelles se
empenham em aplicar deste o primeiro dia.
A dificuldade de encontrar uma saída real reside na fraqueza
congênita da coalizão golpista que assumiu o governo a partir de maio de
2016. Consumou-se ali um clássico pacto com o diabo bastante estudado
pela ciência política. Não há nada de religioso nessa visão.
Governos sem voto popular estão condenados a conviver com as
comportas do inferno social que habita os subterrâneos de uma sociedade
desigual, atrasada, de longa reincidência autoritária como a nossa.
Assim é o processo: cedo ou tarde, o demônio aparece para cobrar a
conta, que é sempre pesada e difícil de pagar.
É este o mundo que vem à luz, por baixo da superfície irresponsável
de governantes que confessam -- sem constrangimento -- não ter medo da
própria impopularidade, deixando claro que não é ao povo que pretendem
prestar contas por seus atos.
Ao contrário dos demônios bíblicos, no entanto, os infernos humanos
não são eternos e podem ser dobrados pela força da razão -- essa verdade
que, numa democracia, se traduz pelo respeito à vontade da maioria e
pelo retorno das mobilizações populares.
Os eventos das últimas 24 horas mostram que é mais o que tempo para
reagir, para impedir um colapso democrático cujo saldo final é a
consolidação do estado de exceção.
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